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“LA QUESTION NÉOLIBÉRALE”: as perspectivas de Foucault e Bourdieu

LAVAL, C. Foucault, Bourdieu et la question néolibérale. Paris: La Découverte, 2018. 262

Em Foucault, Bourdieu et la question néolibérale, Christian Laval1 1 Christian Laval é professor de sociologia da Université Paris Nanterre e vem se dedicando sistematicamente à investigação sobre o liberalismo e o neoliberalismo ao longo de sua carreira. Seus livros anteriores trataram da teoria de Jeremy Bentham, da sociologia clássica, das relações entre neoliberalismo, educação e democracia, além da construção social do Homo economicus. apresenta as aproximações e os afastamentos entre esses dois autores relativamente contemporâneos. Foucault tratou do tema entre 1975 e 1980, ao passo que Bourdieu se dedicou ao assunto entre 1980 e 2002. Não há livros de Foucault específicos sobre o neoliberalismo, nem mesmo exposições sistemáticas, mas apenas um conjunto de análises dispersas em cursos e entrevistas. O corpus central da análise foucaultiana sobre o assunto pode ser encontrado nas doze sessões de seu curso sobre o nascimento da biopolítica, ministrado entre janeiro e abril de 1979 no Collège de France. Se não há obras de Foucault sobre a questão neoliberal, Laval tampouco avalia que uma teoria bourdieusiana sobre esse tema seja amplamente conhecida. Para Laval, sabe-se mais acerca do lado militante de Bourdieu contra a investida dos neoliberais no espaço francês a partir dos anos 1990 do que sobre sua sociologia do neoliberalismo.

Para entender as análises de Foucault, Laval explica que o curso sobre o nascimento da biopolítica não deve ser compreendido como um ponto de ruptura com o projeto geral foucaultiano, que teria mantido seu eixo dedicado a uma tripla genealogia: do poder, do saber e do sujeito. Em Foucault, a biopolítica é uma parte componente de um fenômeno histórico mais amplo, a saber, a razão liberal. Com uma postura semelhante à de Bourdieu, Foucault ataca todo tipo de economicismo em suas análises, presente tanto entre os liberais como entre os marxistas. Com Foucault, o neoliberalismo ganha uma conotação de arte de governar, indo muito além, portanto, de uma transformação ou um desdobramento do capitalismo. Essa é, para Laval, a originalidade da análise de Foucault sobre o assunto: deslocar a questão neoliberal do âmbito econômico para o político.

Diferentemente de Foucault, Bourdieu trata da questão neoliberal sob diferentes prismas, ainda que sempre ancorado em um aparelho conceitual estável e coerente, segundo a avaliação de Laval. Ele explica que, ao longo da obra do grand professeur sobre o assunto, a questão neoliberal é investigada de maneiras variadas: a) pelos seus efeitos sociais; b) como núcleo cognitivo da ciência econômica mainstream ou nova mentalidade dominante das elites políticas; c) como uma estratégia de ataque, no campo de poder, da mão direita (isto é, oligarquias convertidas aos ideais do capitalismo internacional) à mão esquerda (isto é, todo tipo de serviço público de saúde, educação, justiça); d) como parte de uma utopia liberal arcaica, a nova “revolução conservadora” (isto é, com mutações capitalistas e o retorno aos valores tradicionais). Essa última forma de abordar o assunto revela uma diferença importante em relação à análise foucaultiana, que privilegiou o que há de novo no neoliberalismo.

De forma mais unívoca, a perspectiva foucaultiana vê o neoliberalismo como um modo de governamentalidade. É relevante explicar que as análises de Foucault sobre a governamentalidade se baseiam na investigação da relação estabelecida entre a ideia de meio – derivada, segundo Laval, da noção de milieu de Canguilhem somada à ideia de poder imanente a toda relação humana derivada de Bentham – e o sujeito. O caso do neoliberalismo permitiu a Foucault mostrar o jogo entre a liberdade individual e as condições impostas pelo meio. A lógica do governo neoliberal seria o panóptico, pela sua capacidade de ser um tipo de poder biopolítico que gerencia os indivíduos à distância, deixando-os livres para escolher em teias de relações concorrenciais. Ademais, para aprimorar sua forma de regulação, a arte neoliberal de governar promove uma transformação do sujeito moderno em homo economicus, um tipo de sujeito historicamente situado que Foucault entende como plenamente governável.

Para entender o contexto do neoliberalismo nos anos 1970, Foucault recorre à história de dois ramos fundamentais: 1) o ordoliberalismo alemão da escola de Friburgo, com autores que assumem que a prosperidade do mercado e sua lógica concorrencial garantem a legitimidade do Estado; 2) o neoliberalismo estadunidense da escola de Chicago (por exemplo, a teoria do capital humano), o responsável pela consolidação da lógica de que todos os indivíduos podem ser empreendedores e responsáveis por si mesmos. Laval explica que o refinamento disso é, por um lado, a articulação de uma construção jurídico-política da concorrência e, por outro, uma construção indivíduo-empresa da autovalorização. Para Laval, é por esse caminho que Foucault explica a coerência política do neoliberalismo.

Na sociologia de Bourdieu, o neoliberalismo se fortalece a partir das tomadas de posição dos economistas dominantes, no sentido de impor suas visões de mundo particulares. É assim que a teoria econômica adquire um poder performativo, isto é, um efeito de teoria. Em um primeiro momento, a forma neoliberal de compreender o mundo dos economistas mais adeptos da modelagem matemática (principalmente aqueles ligados à Escola de Chicago), que apresentam sua teoria como “pura” e “técnica”, é transmitida, pelo efeito simbólico da autoridade científica atribuída a banqueiros, contadores, empresários e jornalistas econômicos. A performatividade da teoria econômica é ainda maior, e foco da sociologia de Bourdieu, na medida em que se verifica uma perda de autonomia dos campos sociais regidos por mentalidades antieconômicas – os campos da arte, da educação e da religião, por exemplo – face aos preceitos da lógica econômica.

O processo de emergência do neoliberalismo, que Bourdieu chamou de revolução neoliberal, é indissociável das transformações ocorridas nos critérios de formação e de ação das novas elites de Estado (isto é, a nobreza de Estado). Laval mostra, ainda que superficialmente, como os trabalhos de Bourdieu (por exemplo, seu estudo sobre o mercado de casas próprias na França) contestam a tese de que o avanço do neoliberalismo ocorre em função da ausência ou da decadência do Estado. O Estado não se transforma de fora pra dentro, mas sim de dentro para fora, a partir das mutações nos modos de pensar e de agir dos grupos dominantes que o constituem. A análise de Bourdieu descortina a contradição do pensamento neoliberal, que prega a anulação do Estado sem abrir mão do poder estatal para se fortalecer.

Laval defende a tese de que se sabe mais sobre o engajamento de Bourdieu contra a dominação neoliberal a partir dos anos 1990 do que sobre sua sociologia do neoliberalismo. É com o movimento francês de 1995 contra as políticas neoliberais de reforma da previdência que Bourdieu é alavancado à condição midiática de “intellectuel le plus puissant de France” (Laval, 2018LAVAL, C. Foucault, Bourdieu et la question néolibérale. Paris: La Découverte, 2018. 262 p., p. 144). A condição legítima de enunciador e de líder do movimento foi garantida, segundo Laval, principalmente devido aos seus montantes de capital simbólico e cultural associados à posição de professor do Collège de France, somados ao sucesso da publicação La Misère du Monde (lançada dois anos antes e que alcançou larga audiência).

Laval não concorda com o que alguns críticos enxergaram como um caráter duplo de Bourdieu (isto é, o sociólogo e o ativista). Laval aceita a justificativa de Bourdieu de que seu envolvimento político ocorreu por um dever ético do pesquisador que conhece sobre alguns dos perigos que a comunidade humana estava correndo. Ao contrário da aposta de Bourdieu, Foucault não via projetos disponíveis para adotar, mas sim a necessidade de uma nova subjetivação, a produção de alguma coisa que ainda não existia. Foucault deixou totalmente em aberto o caminho a trilhar no combate ao neoliberalismo, ao passo que Bourdieu apostou numa solução mais disciplinar e científica: a sociologia poderia assumir o posto ocupado pela economia.

Se, para Laval, Bourdieu apresenta uma abordagem múltipla e coerente sobre o neoliberalismo, as investigações de Foucault sobre a questão neoliberal são consideradas por ele como incompletas. Ponderando que Foucault teve uma morte relativamente prematura e que teria melhorado suas investigações se tivesse mais tempo de vida, Laval identifica quatro questões que retratam pontos de fragilidade da análise foucaultiana: 1) a questão das políticas de segurança – ao contrário do que Foucault previa, o neoliberalismo não necessariamente diminuiu os processos de encarceramento em prol de formas de regulação mais flexíveis; 2) a questão das transformações do capitalismo – Foucault teria subestimado a força da financeirização e o poder das grandes corporações no governo contemporâneo; 3) a questão da igualdade – a atenção de Foucault à governamentalidade teria lhe tirado o foco de um dos maiores impactos do neoliberalismo nas últimas quatro décadas, a saber, a evolução geométrica das desigualdades de renda e de patrimônio; 4) a questão da democracia – Foucault não teria atentado suficientemente para o enfraquecimento de formas mais participativas de ação coletiva.

Ainda que elogiando mais Bourdieu do que Foucault, Laval chama a atenção para a polêmica utilização de termos advindos da disciplina econômica na sociologia de Bourdieu (por exemplo: “economia”, “capital”, “mercado”). Ao compreender as relações sociais, familiares, escolares, culturais e linguísticas como relações de interesse, Bourdieu teria oferecido terreno para os ataques que o acusam de naturalizar a condição histórica do homo economicus. Laval reconhece que Bourdieu combateu toda e qualquer forma de economicismo em toda a sua trajetória acadêmica, assim como Foucault, mas afirma que há um uso intenso de termos da economia em seus escritos. Um outro ponto polêmico seria a tomada de posição de Bourdieu como militante, que entende o neoliberalismo como uma utopia com poder de performatividade ancorada na disciplina econômica, que deveria ser criticada e substituída por uma sociologia melhor fundamentada. Laval questiona se Bourdieu não teria defendido uma espécie de partido da sociologia.

Quando compara Foucault e Bourdieu de forma mais direta, Laval mostra como suas vidas, suas formações, seus engajamentos e suas trajetórias acadêmicas possuem vários pontos em comum. Ambos possuem formação em filosofia, integram a mesma geração, têm itinerários nas instituições mais prestigiadas da França, uma filiação epistemológica francesa comum marcada por Bachelard e Canguilhem, um afastamento crítico em relação ao partido comunista, uma postura rebelde combinada a uma forte exigência intelectual, uma associação, em um só corpo, do ator-pesquisador e do ator-político. Apesar das semelhanças, suas pesquisas não convergem, sendo um dos sinais a extrema raridade de citações de um ao outro em seus trabalhos, o que Laval entende como uma ignorância mútua.

Para Laval, essa ignorância é mais grave no caso de Bourdieu, uma vez que, lembremos, ele começa a estudar a questão neoliberal no fim dos anos 1980. Além de não citar os cursos no Collège de France de Foucault, Bourdieu tampouco se refere ao campo de estudos dedicados ao tema da governamentalidade, já razoavelmente estabelecido naquela época, sobretudo na Itália, na Inglaterra e nos EUA. Por outro lado, Laval identifica um claro ponto de convergência entre os dois autores, em meio às suas evidentes diferenças de abordagem: a historicidade do homo economicus. Por caminhos diferentes, os dois oferecem o prognóstico de que o processo neoliberal avança para realizar a ficção do homo economicus nos corpos dos indivíduos.

Sem exagerar na criação de um diálogo fictício entre ambos, Laval contribui com uma análise de duas empreitadas intelectuais que possuem, como ponto comum, uma explicação e uma resistência diante do surgimento do neoliberalismo. Destacam-se ainda as cuidadosas notas de rodapé de Laval, somadas às referências constantes a pesquisadores contemporâneos que promoveram avanços nas perspectivas foucaultiana e bourdieusiana. A avaliação desta resenha é a de que a empreitada de Laval é coerente e bem desenvolvida.

Como contraponto, em determinados aspectos do livro, principalmente no que concerne às possibilidades práticas de uma sociologia do neoliberalismo, tem-se a impressão de que caberia um maior aprofundamento às análises de Laval. Essa falta de profundidade é mais problemática no caso da obra de Bourdieu, sobretudo pela escassa presença de pesquisas dedicadas aos fenômenos econômicos (ver, por exemplo, Bourdieu, 2000). De fato, Laval não se propõe a tal nível de detalhamento das obras de Bourdieu: ele antevê essa crítica e se exime, explicitamente, já na introdução do seu livro. Entretanto, se considerarmos que Laval pretende uma apresentação da question néolibérale em Bourdieu, seria coerente uma análise que privilegia as implicações políticas de sua sociologia do neoliberalismo?

A avaliação aqui é a de que Laval prestou uma atenção excessiva às tomadas de posição de Bourdieu no campo intelectual e no campo político, relegando ao segundo plano um conjunto de categorias sociológicas e métodos de pesquisa. Esses elementos são, em última instância, aqueles que mais estimularam desdobramentos das linhas de pesquisa de Bourdieu por sociólogos inspirados por esse autor. Laval parece enxergar uma certa duplicidade coerente em Bourdieu, marcada por uma afinação louvável entre o ator-pesquisador e o ator-político, endossando as justificativas do próprio Bourdieu. De certa forma, ele desconsiderou as críticas dos sociólogos mais aderentes a epistemologias reivindicatórias, além dos elogios incontestes de outros que viram, na famosa proposta de objetivação participante, uma nova possibilidade de produzir conhecimento objetivo nas ciências sociais (Paugam, 2015PAUGAM, S. A pesquisa sociológica. Petrópolis: Vozes, 2015. 384 p.).

Sem dúvida, essas críticas não ofuscam o valor da obra de Laval e sua atenção ao que esses dois grandes autores podem aportar à compreensão dos desdobramentos do neoliberalismo contemporâneo. Ao fim e ao cabo, o livro Foucault, Bourdieu et la question néolibérale se constitui, além de um exame aprofundado dos posicionamentos de Foucault e Bourdieu diante do neoliberalismo, como uma fonte de estímulo para as investigações sobre essa arte de governar ou esse modo de dominação que marcam a contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

  • BOURDIEU, P. Les structures sociales de l’économie Paris: Éditions du Seuil, 2000. 289 p. (Col. Liber).
  • LAVAL, C. Foucault, Bourdieu et la question néolibérale Paris: La Découverte, 2018. 262 p.
  • PAUGAM, S. A pesquisa sociológica Petrópolis: Vozes, 2015. 384 p.
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    Christian Laval é professor de sociologia da Université Paris Nanterre e vem se dedicando sistematicamente à investigação sobre o liberalismo e o neoliberalismo ao longo de sua carreira. Seus livros anteriores trataram da teoria de Jeremy Bentham, da sociologia clássica, das relações entre neoliberalismo, educação e democracia, além da construção social do Homo economicus.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    27 Nov 2018
  • Aceito
    14 Dez 2019
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