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ELEIÇÕES E DEMOCRACIA NO BRASIL: um desafio analítico permanente

INTRODUÇÃO

Há mais de três décadas, a ciência política brasileira avançou consideravelmente nos estudos eleitorais diante do contexto desafiador de redemocratização do país, o que demandou uma ampla agenda de pesquisa novamente voltada a compreender a construção democrática no Brasil (Arantes & Couto, 2008ARANTES, R. B.; COUTO, C. G. "A Constituição sem Fim". In: S. Dinize S. Praça (orgs.) Vinte Anos de Constituição. São Paulo, Paulus, p. 31-60, 2008.; Melo & Sáez, 2007MELO, C.R, SÁEZ, M.A (orgs.). A Democracia Brasileira: Balanço e Perspectivas para o Século XXI. Belo Horizonte, UFMG/Humanitas, p. 237-265, 2007.; Dagnino, 1994DAGNINO, E. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.; Kinzo, 1980KINZO, Maria D.'Alva Gil. Representação política e sistema eleitoral no Brasil. São Paulo: Edições Símbolo, 1980.; Limongi & Figueiredo, 1999; Boschi, 1987)BOSCHI, R. R. A arte da Associação: política de base e democracia no Brasil. São Paulo: Vértice, 1987.

A segunda experiência democrática do nosso país segue seu rumo com “arranhões” visíveis diante de tensões e desafios permanentes, embora tenhamos sobrevivido com instituições poliárquicas em pleno funcionamento até aqui. No entanto, o ciclo político vivido pelas instituições nos últimos anos e operado a partir das manifestações de junho de 2013 apontam para uma crise de representação (Singer, 2018SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.; Souza, 2018SOUZA, Cláudio André. Para Onde Vai a Política Brasileira? Breve ensaio sobre a crise de representação e o pós-impeachment. Curitiba: Appris, 2018.), mas vai além: a vitória do então deputado federal ultradireitista Jair Bolsonaro (PSL) nas eleições presidenciais de 2018 foi a expressão da ascensão de forças políticas antidemocráticas que encerraram a polarização entre PT e PSDB que perdurou por 20 anos (1994-2014). Se alguém acordasse de um sono profundo durante quatro anos (2014-2018) não entenderia em que país estava,

a lista de episódios que teriam que ser contados para que o nosso rip tropical fosse atualizado do que aconteceu na política brasileira durante seus quatro anos de sono é gigantesca. É provável que poucos brasileiros consigam enumerar o volume de eventos impressionantes que aconteceram no período: a presidente Dilma, mesmo contando com uma ampla base parlamentar do Congresso, sofreu o impeachment; milhões de pessoas participaram de manifestações de rua comandadas pela direita, que protestavam contra a corrupção e a favor do afastamento da presidente contra o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) se tornou presidente da Câmara dos Deputados, comandou o impeachment, e meses depois teve o seu mandato cassado pelos colegas e ainda foi preso; o ex-presidente Lula foi nomeado ministro pela presidente Dilma, mas foi impedido de tomar Posse por uma decisão de um único ministro do STF (Gilmar Mendes), e depois foi condenado e preso. Entre todos os eventos, porém, o mais surpreendente é a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. Revi muitas entrevistas e a participação de Bolsonaro em programas de auditório televisivos do começo dos anos 2010. Ele é tratado pelos apresentadores como uma figura excêntrica e folclórica. Suas ideias - como a defesa do uso da tortura ou a disposição para participar de pelotões de fuzilamento caso a pena de morte fosse aprovada- chocam até hoje ponto cada vez que acabava de assistir a um desses programas, eu era tomado pelas mesmas perguntas: como alguém com esse perfil chegou à presidência? O que aconteceu no Brasil? (Nicolau, 2020NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. São Paulo: Zahar, 2020., p. 8).

Como observou Singer (2022)SINGER, André. A reativação da direita no Brasil. Opinião Pública, v. 27, p. 705-729, 2022., a ascensão eleitoral em nível nacional de um ex-capitão do Exército, admirador da ditadura e cercado de militares, reviveu o sentimento de regresso a 1964, operando um projeto político autoritário com base social e ideológica que foi resiliente até a eleição seguinte, a qual fora derrotado por Lula com a menor margem de votos entre dois candidatos desde a redemocratização.

Além da discussão sobre esse processo, este dossiê tenta ir um pouco além ao reunir oito artigos sobre temáticas diversas que nos ajudam a compreender de forma mais ampla, em alguns casos de forma particular, as eleições que ocorreram em 2022 e seus desdobramentos.

Para iniciar a apresentação dos artigos, temos o trabalho de Jairo Nicolau “Afinal, quem foi votar em 2022?” que analisa um tema que despertou muitas indagações na classe política, sobre a influência da abstenção no resultado eleitoral. O autor tenta identificar se existe uma diferença na taxa de comparecimento de eleitores na comparação com diferentes características sociodemográficas, tais como sexo, faixa etária e escolaridade. E também no caso dos que justificam o voto. Os resultados reforçam muitos achados da literatura, mas traz algumas novidades importantes sobre o tema.

O artigo “Quem se torna congressista? O impacto das alterações legais na composição da Câmara dos Deputados (2002-2022)” de Humberto Dantas, Bruno Silva e Cláudio André de Souza apresenta dados relevantes sobre as alterações legais dispostas no sistema político brasileiro. A tese central dos autores é que o perfil das candidaturas, em maior medida, e dos eleitos, sob menor impacto, mudam de acordo com variações de natureza legal, com incidência maior entre as candidaturas e o seu perfil.

As eleições de 2022 também motivaram o artigo de Vitor Vasquez, Vitor Eduardo Veras de Sandes-Freitas e Luciana Santana sobre o fim das coligações eleitorais nas disputas proporcionais, algo que aconteceu nas eleições de 2020 e agora no âmbito estadual e federal. Os resultados encontrados pelos autores reforçam que houve desde 2020 um processo de diminuição do número de siglas já no processo de lançamento de candidaturas. Mas os partidos passaram a lançar mais candidatos, o que indica que houve um movimento estratégico dos políticos de buscarem siglas com maior potencial de bancar uma lista em uma disputa proporcional. Ou seja, com menos partidos e mais candidatos por partido, preponderam as maiores agremiações, que saíram fortalecidas do pleito de 2022.

Ainda sobre mudanças eleitorais, os autores Bruno Bolognesi, Graziella Testa e Lara Mesquita analisaram no artigo “Do fisiologismo ao centro do poder: as reformas eleitorais e o centrão 2.0” os resultados da reforma política de 2017 no Brasil, que buscou punir partidos com comportamento fisiológico. O estudo utilizou a abordagem do “centrão 2.0”, grupo aglutinado em torno de demandas clientelistas, relegando a agenda ideológica. Para a análise foram utilizados três conjuntos de dados: um questionário respondido por cientistas políticos, dados de carreira dos parlamentares e informações sobre o comportamento das bancadas partidárias na Câmara. A conclusão aponta que a reforma, ao reduzir o número de partidos menores fisiológicos, concentrou recursos e poder nos partidos médios com comportamento semelhante. Isso reforça a ideia de que reformas em democracias tendem a favorecer as elites.

O artigo de Simone Viscarra, Helga Almeida, Thiago Silame e Joscimar Silva intitulado “O arrefecimento da polarização afetiva: análise dos discursos dos governadores no Twitter na campanha eleitoral de 2022” avança no estudo do engajamento dos governadores nas redes sociais em torno do apoio aos candidatos a presidente. O principal resultado apresentado pelos autores reforça o fato que os discursos políticos por parte dos candidatos são poucos efetivos, ou seja, uma estratégia dos governadores foi “moderar” nas redes as tensões políticas entre os eleitores de Lula e Bolsonaro.

A desinformação impactou todo o processo eleitoral, instituições e atores políticos no país. Rafa Rubio Nuñez, Vitor Andrade Monteiro e Frederico Franco Alvim discutem essa temática no artigo intitulado “Confiança e integridade nas eleições: a atuação do TSE no enfrentamento à desinformação eleitoral no pleito de 2022”. O artigo detalha as iniciativas adotadas pelo TSE e suas parcerias com plataformas digitais e com a sociedade civil para garantir a transparência e construir confiança e integridade nos processos eleitorais no Brasil. Medidas consideradas importantes, conforme conclusões dos autores, por desempenharem um papel fundamental e sua efetividade pode ser observada em todos os momentos do plano e na obstinada previsão de marcos de monitoramento do progresso de todas as iniciativas. Apesar das limitações do próprio ambiente de desinformação, foi possível identificar resultados práticos, como o Sistema de Alerta, que conseguiu avançar em uma área bastante nebulosa das plataformas, dando acesso a dados.

Outra análise sobre a desinformação política é de Jaime Barreiros Neto no artigo “Desinformação política e o enigma da tolerância nas disputas eleitorais” que tem como objeto uma reflexão sobre a ponderação entre a viabilização do combate à desinformação nas eleições e a ameaça, inerente a este processo, de supressão da liberdade de expressão e da livre circulação das ideias, fundamental para a plena efetivação da democracia e do pluralismo político. A questão central é compreender como viabilizar o combate à disseminação em massa de mentiras ou “fake news”, prejudiciais à manutenção de um ambiente político tolerante e saudável, em face da necessidade de garantia da liberdade e da tolerância próprias das sociedades democráticas e o do risco do autoritarismo estatal. Para isso, segundo o autor, é necessário estabelecer, a partir de um modelo multifatorial, em que o exercício da jurisdição repressiva do Estado se apresente como a solução final e excepcional, e não como a salvaguarda definitiva da normalidade e da legitimidade democrática. Considera a necessidade de investimento da boa informação como contraponto à desinformação, além de investimento em educação, a fim de que o cidadão possa ser habilitado a melhor distinguir uma informação verdadeira de uma informação falsificada.

Carlos Ranulfo Félix Melo faz uma análise dos desdobramentos da eleição de 2022. Em “Democracia, direita e Lula - o que nos diz a eleição de 2022”, ao autor parte do argumento de que, em um segundo mandato, Jair Bolsonaro poderia aumentar seu poder de atração sobre os partidos de centro e de direita no Congresso para então avançar sobre os órgãos de justiça, colocando em risco a democracia brasileira. Entretanto, como apontado, a vitória de Lula não impediu que os partidos de direita mantivessem uma trajetória de crescimento, consolidando uma posição majoritária tanto na Câmara como no Senado, e analisa as razões para tanto. Desta forma, ao tomar como base esse crescimento da direita e das mudanças na relação entre os poderes Executivo e Legislativo verificadas nos últimos anos, o terceiro mandato de Lula passa a ser considerado o mais difícil na comparação com os anteriores. A principal evidência apresentada para sustentar os limites de ação do presidente diz respeito ao desempenho da coalizão de governo nas votações mais importantes realizadas ao longo do ano de 2023.

Conforme apresentado, a proposta deste dossiê compreendeu uma análise sob vários aspectos sobre o resultado das eleições de 2022 e o ambiente institucional da política brasileira em um período mais longo, o que reforça a pluralidade de análises e suas temporalidades sobre os desafios permanentes da democracia brasileira, considerando-se, em especial, as eleições de 2022 ocorridas sob intenso fogo cruzado das forças favoráveis a uma ruptura institucional, o que culminou posteriormente com a tentativa de golpe de estado no 08/01 (2023) organizado pelo núcleo palaciano, lideranças militares e demais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Cláudio André Souza – Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor Adjunto de Ciência Política da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus dos Malês. Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Suas mais recentes publicações são a organização do livro “Dicionário das Eleições” (Juruá, 2020) e o artigo “Governismo em cena: notas preliminares sobre a influência dos prefeitos na eleição ao governo estadual da Bahia em 2022. Cadernos do CEAS: Revista crítica de Humanidades, 47(257), 513–542. https://doi.org/10.25247/2447-861X.2022.n257.p513-542

Luciana Santana – Professora de Ciência Política (UFAL) e Docente no PPGCP-UFPI. Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Realizou estância de doutorado Sanduíche/Capes-DGU na Universidade de Salamanca (USAL/Espanha). Diretora do Instituto de Ciências Sociais da UFAL (2022-2026). Secretária Executiva da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), após ter sido Diretora (e vice-diretora) da Regional Nordeste da ABCP. Participou da Comissão de relações regionais da ANPOCS. Coordenadora na Rede Análise Covid-19 e membro da coordenação da Rede Solidária de Pesquisa. Integra também a Red Politólogas, o PRILA/UFMG e Observatório das eleições do INCT - Instituto da Democracia). Colunista no Blog Legis Ativo /Estadão, no Latinoamerica 21 e na Rádio Nova Brasil FM/Maceió. Integra, desde 2004, a equipe de pesquisadores do Centro de Estudos Legislativos e do Prila no DCP/ UFMG, com participação ativa em vários de seus projetos com parcerias nacionais e internacionais. Líder do grupo de pesquisa: Instituições, Comportamento político e Democracia, onde coordena o projeto “Governos estaduais e ações de enfrentamento à pandemia de Covid-19 . Foi coordenadora do Curso Ciências Sociais modalidade EAD (UFAL) e do coordenadora do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UFAL) (2015/2022). Em 2009 foi contemplada com o Stein Rokkan Award concedido pelo IPSA/AISP. Os principais temas de pesquisas acadêmicas são: Instituições políticas, Governos, Eleições e Políticas públicas.

REFERÊNCIAS

  • ARANTES, R. B.; COUTO, C. G. "A Constituição sem Fim". In: S. Dinize S. Praça (orgs.) Vinte Anos de Constituição. São Paulo, Paulus, p. 31-60, 2008.
  • BOSCHI, R. R. A arte da Associação: política de base e democracia no Brasil. São Paulo: Vértice, 1987.
  • DAGNINO, E. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • FIGUEIREDO, Argelina Cheibub; LIMONGI, Fernando M. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
  • KINZO, Maria D.'Alva Gil. Representação política e sistema eleitoral no Brasil. São Paulo: Edições Símbolo, 1980.
  • MELO, C.R, SÁEZ, M.A (orgs.). A Democracia Brasileira: Balanço e Perspectivas para o Século XXI. Belo Horizonte, UFMG/Humanitas, p. 237-265, 2007.
  • NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. São Paulo: Zahar, 2020.
  • SINGER, André. A reativação da direita no Brasil. Opinião Pública, v. 27, p. 705-729, 2022.
  • SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • SOUZA, Cláudio André. Para Onde Vai a Política Brasileira? Breve ensaio sobre a crise de representação e o pós-impeachment. Curitiba: Appris, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2023
  • Aceito
    27 Fev 2024
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