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PEUGNY, Camille. O destino vem do berço?: desigualdades e reprodução social. Campinas: Papirus. 2014. 127p.

PEUGNY, Camille. . O destino vem do berço?: desigualdades e reprodução social. Campinas: Papirus. 2014. 127p.

Na formação da modernidade delineou-se uma perspectiva de sociedade desconhecida: a igualdade entre os indivíduos. Contra a diferença “natural” estatuída no feudalismo, onde a descendência familiar sedimentava o destino de cada um, a Revolução Francesa levantou-se em defesa do princípio da igualdade. Até então ignorada, essa nova condição de nascimento estabeleceu-se por meio de um inédito ordenamento jurídico e político: a figura do citoyen passou a pressupor que todos são iguais perante as mesmas leis e possuidores de direitos políticos idênticos. Conquanto essa concepção à época já fosse questionada, pois Babeuf (Russ, 1977RUSS, J. Pour connaître le socialisme utopique français. Bordas: Paris. 1977., 78/79) ressaltava que, enquanto não fosse também econômica, ela era formal, seu estabelecimento representou inequívoca mudança: buscar eliminar a férrea determinação da condição de nascimento. No caso francês, um dos momentos em que, de certo modo, esse formalismo foi transcendido ocorreu com a reforma escolar de Jules Ferry. Visando a realizar o ideal de igualdade de 1789, a IIIª República, entre 1881 e 1886, suprime as escolas confessionais e privadas e torna o ensino público, gratuito, obrigatório e laico, para homens e mulheres, nos sete primeiros anos da educação (Roux, 1933ROUX, M. Origines et fondation de la Troisième République, 9e edition. Montrouge: Ed. Bernard Grasset. 1933., 333-369).

É justamente esse sistema escolar que se encontra no centro das discussões e reflexões do livro de Camille Peugny, já que é confrontado com o problema da desigualdade social da França de hoje. Fundamentado em diversas pesquisas e fontes, ele mostra que as melhorias significativas nas taxas de escolarização e a massificação escolar – principalmente a partir da segunda metade do século XX e intensificada entre os anos de 1980 e 2000 – foram insuficientes para estabelecer uma sociedade com mais equidade e mobilidade social. Na verdade, a reprodução social recrudesceu: “mais de dois séculos após a Revolução, as condições de nascimento ainda determinam o destino dos indivíduos. Não nos tornamos operários, nascemos operários” (p. 19).

Peugny ressalta que a forte reprodução social atual, em que pese a robustez do sistema escolar francês, põe em xeque dois mitos. De um lado, “estilhaça o mito da meritocracia na sociedade em geral e na “escola da República” em particular” (p. 25). Doutro, abala o mito das sociedades “médias”, que pressupõe o fim das classes sociais.

Antes, porém, ele apresenta as condições históricas que permitiram a crença neste último mito e passa em revista seus teóricos. O mito da medianização da França, como de outros países, ancorou-se no crescimento econômico e na elevação do padrão de vida da população, em particular dos trabalhadores, entre o pós-1945 e meados dos anos 1970, sendo, por isso, denominado de Gloriosos Trinta. No caso francês, essa tendência foi reforçada pela reforma escolar Berthoin, de 1959, que estendeu aos 16 anos a escolaridade obrigatória. Tais mudanças repercutiram até o início dos anos 1990, quando “cerca de dois a cada três homens e de oito a cada dez mulheres estavam, dessa forma, alocados em uma categoria socioprofissional diferente daquela de seus pais. Esse resultado destaca a amplitude dos avanços da mobilidade social ao longo das quatro décadas[...]” (p. 34). Assim, com base nessa realidade, prosperou a teoria da medianização da sociedade, destacando-se os estudos de Robert Nisbet e de Henri Mendras. Para o primeiro, a teoria marxista das classes era inadequada numa sociedade caracterizada por abundância, redução das desigualdades e difusão da propriedade. Para Mendras, essas transformações econômicas esmagaram as três classes – burguesia, proletariado e o campesinato –, fazendo-as desaparecer como grupos “em si” e “para si”. Em síntese: as condições materiais e as reflexões sociológicas evidenciavam um declínio da reprodução social.

Contudo, essa realidade, na França e noutros países, foi fugaz. Em fins da década de 1970 e começo da seguinte, iniciou-se, sub-reptícia e lentamente, seu solapamento.

A mundialização da economia, as desregulamentações nacionais, a gradativa destruição dos direitos trabalhistas e a paulatina deterioração das políticas públicas fizeram retornar a imobilidade social. O pessimismo gerado por tal situação, segundo Peugny, fez surgir o conceito de rebaixamento social (entre gerações, entre diplomas e durante o ciclo de vida). Com o declínio dos setores médios, aumentou a diferença entre trabalhadores qualificados e não qualificados. Agora, há um crescente fosso separando as categorias médias e as classes populares. “Ora, esse movimento destina ainda muito mais as crianças de certas categorias populares à sua origem social; ele torna potencialmente mais difíceis e mais custosas as trajetórias de promoção social. Em poucas palavras, ele coloca a questão da intensidade da reprodução social” (p. 46).

Além da precária vida da juventude, que, em 2012, na zona do euro, apresentava 5,5 milhões de desempregados entre aqueles com menos de 25 anos, atingindo 22% na França, essa intensificação é também perceptível quando se compara a geração que nasceu nos anos 1940 com aquela dos anos 1960. A primeira, ao ingressar no mercado de trabalho, viu seus níveis salariais subirem continuamente; a segunda, ao começar a trabalhar nos anos 1980, sofreu um revés quanto a esse aspecto. Segundo Peugny, isso se evidencia no quesito moradia: a geração dos anos 40 era maciçamente proprietária no início dos anos 80, e a dos anos 60, ainda hoje, não tem sua situação resolvida. O que ratifica a avaliação que Robert Castel, há quase vinte anos, fez da primeira geração, que acreditava no progresso social e que “haveria possibilidade de uma queda progressiva das desigualdades e ampliação das vantagens da justiça social” (Castel, 2010CASTEL, R. As transformações da questão social. In: BELFIORE-WANDERLEY, M.; BÓGUS, L.; YAZBEK, Maria C. (Orgs.) Desigualdade e a questão social, 3ª edição. São Paulo: EDUC. 2010., p. 288).

Peugny mostra o retorno da reprodução social, detendo-se sobre a atual situação da juventude francesa. Se ela se encontra, em maior número, na universidade – realidade distinta da que foi tratada por Bourdieu e Passeron em Os Herdeiros –, a parte que trabalha não possui “as mesmas chances sociais” (p. 52/53) daquela privilegiada que só estuda. Ao mesmo tempo, as condições dos que trabalham são aviltantes: entre os jovens de 15 a 24 anos, em 2010, o emprego precário atingiu quase 35%. Na mesma faixa etária, o emprego por tempo indeterminado caiu de 78%, em 1983, para 49%, em 2010 (pp. 55/56). Aí a reprodução é clara: mesmo ocorrendo uma queda no percentual de filhos de operários que se tornam operários – passou de 49%, em 1980, para 40%, em 2010 –, houve um crescimento no número de funcionários que, por serem desqualificados, não diferem muito dos operários. Por exemplo, “[...] as operadoras de caixa... não se distinguem das operárias, nem pelas condições de trabalho, nem pelas perspectivas de carreira, nem pelos rendimentos, nem pelo prestígio social.” (p. 59/60). Ou seja, parece “ocorrer uma convergência entre a maior parte dos empregos de operário e os funcionários, de tal maneira que se tornar funcionário quando se advém de uma família operária assemelha-se, em geral, a uma forma de reprodução social.” (p. 61).

Na França, como define o autor, há uma reprodução pela base e outra pelo topo. Assim, enquanto 83% dos filhos de operários tornaram-se funcionários e operários, em 1983, passando para 73%, em 2009, no mesmo período, os filhos de pais com cargos superiores ou de profissões intermediárias, que assumiram essas atividades, passaram de 66% para 79%. Ademais, se verificarmos, entre esses anos, a “probabilidade de se tornar executivo ou profissional intelectual superior, ela não ultrapassa os 5% para os filhos de operários, ao passo que sobe de 33% para 39% para os filhos de executivos” (p. 64).

Esse vigoroso retorno da reprodução social, à primeira vista, parece estar em descompasso com a massificação e a democratização da escola francesa, pois, “entre 1960 e 2010, o número de estudantes foi multiplicado por 7, passando de 300.000 a mais de 2,3 milhões, dos quais 11% tinham um pai operário e 12%, um pai empregado.” (p. 73). Peugny explica esse aparente paradoxo relacionando as novas configurações políticas e econômicas com a natureza dessa democratização.

Na verdade, o robusto sistema escolar francês mostra-se impotente frente essa realidade e também excludente, já que não consegue reter e formar boa parte dos jovens das classes populares. Essa parcela de jovens fica pelo meio do caminho, possuindo no máximo o ensino médio, tendo de amargar condições adversas; em 2010, 56% dessa parcela estavam desempregados e, dos 21% empregados, apenas 7% possuíam contrato por tempo indeterminado (p. 74). O percurso escolar é revelador: “38% dos alunos de sexto ano em 1995 eram filhos de operários (ou de inativos), mas, sete anos depois, eles representavam apenas 19% dos bacs [exames de acesso ao ensino superior] gerais. Inversamente, os filhos dos altos executivos veem sua proporção duplicar, passando de 16% a 33%.” Já “em 2011, os filhos de operários representavam 28% dos estudantes primários, mas apenas 19% dos secundários, normais e técnicos” (p. 77).

Mesmo o acesso dos filhos dos setores populares à universidade é revelador, pois afirma a natureza excludente do sistema escolar francês. Para o autor, um dos principais fatores é o escalonamento hierárquico entre os vários diplomas superiores: enquanto os filhos de operários e empregados sem qualificação dirigem-se para os cursos profissionalizantes, os filhos das elites econômica e intelectual ocupam as grandes instituições do ensino superior. No ano universitário de 2010-2011, por exemplo, os filhos de operários representavam somente 5% dos estudantes de medicina (p. 81).

Assim, no atual ensino superior, deparamo-nos com uma reprodução diferente da que Bourdieu e Passeron identificaram na década de 1960: ela passa a ser preponderantemente qualitativa. As consequências não são poucas. Por um lado, a possibilidade de os filhos das classes populares chegarem ao ensino superior faz a reprodução social parecer não mais vinculada ao nascimento. Por outro, como corolário, a ideia da meritocracia ganha força, mesmo que os dados contra-arrestem esse mito.

O estudo de Peugny permite concluir que, em que pese a importância da democratização do acesso e da massificação escolar, elas, por si sós, não garantem a neutralização das condições de nascimento, tampouco rompem a imobilidade social. Nesse sentido, o projeto iniciado na IIIª República revela-se limitado: do maternal à universidade, a escola mostra-se incapaz de corrigir as desigualdades.

Para romper o ciclo dessa reprodução social, pelo menos no que tange ao sistema escolar, Peugny indica vários aspectos que devem ser superados ou implementados. Para os primeiros anos escolares, ele ressalta a necessidade de “mais educadores, com uma formação apropriada, em salas menos abarrotadas” (p. 94/95). Ao mesmo tempo, urge mitigar o caráter escolar da escola, de modo a retardar a avaliação e classificação e, com isso, evitar a segregação desde a mais tenra idade; segundo ele, só assim seria minimamente possível realizar a igualdade inculcada pelo sistema escolar republicano. A formação superior, por sua vez, além do ensino público, necessitaria de uma política de formação continuada, onde os recursos familiares deixassem de ser imprescindíveis, como eram e já apontavam nos anos de 1960 os autores de Os Herdeiros (Bourdieu & Passeron, 1985BOURDIEU, P.; PASSERON, J-C. Les héritiers: les étudiants et la culture. Paris: Les Éditions de Minuit. 1985., p. 28/29). Peugny enfatiza que esse seria um dispositivo universal que permitiria o acesso ao ensino superior no momento que conviesse, com isso afastando a ameaça aos jovens das classes populares de renunciarem “aos estudos superiores por motivos financeiros” (p. 106), o que explica o fato de a Dinamarca e a Noruega colocarem mais de 70% dos seus jovens na universidade, ao passo que a França só alcança 40%.

O livro de Peugny mostra-se importante porque nos permite conhecer a desigualdade social num país como a França, decorrente de políticas públicas, em particular daquela voltada para a educação. Mas, não só. Ela pode servir de contraponto para melhor compreendermos uma realidade como a brasileira. Marcio Pochmann, que faz o prefácio à edição brasileira, salienta que o livro interessa aos brasileiros, dentre outros aspectos, em razão das diversas políticas de inclusão social dos últimos anos e da “melhora na repartição interpessoal da renda da população e a elevação da participação do rendimento do trabalho no conjunto da renda nacional” (p. 12). Contudo, avaliamos que é possível acrescentar outro: o livro nos permite ver o quanto é frágil a crítica que afirma que essa inclusão é problemática porque ocorreu via consumo individual. Isso porque, ao nos voltarmos para o caso francês, com toda expansão e massificação escolar, verificamos que uma política pública via consumo coletivo não conseguiu ser inclusiva, mas segregativa, reforçando as diferenças e a imobilidade social.

REFERÊNCIAS

  • BOURDIEU, P.; PASSERON, J-C. Les héritiers: les étudiants et la culture. Paris: Les Éditions de Minuit. 1985.
  • CASTEL, R. As transformações da questão social. In: BELFIORE-WANDERLEY, M.; BÓGUS, L.; YAZBEK, Maria C. (Orgs.) Desigualdade e a questão social, 3ª edição. São Paulo: EDUC. 2010.
  • ROUX, M. Origines et fondation de la Troisième République, 9e edition. Montrouge: Ed. Bernard Grasset. 1933.
  • RUSS, J. Pour connaître le socialisme utopique français Bordas: Paris. 1977.
  • ERRATA

    PEUGNY, Camille. O destino vem do berço?: desigualdades e reprodução social. Campinas: Papirus. 2014. 127p - http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000100013 - Caderno CRH – Volume 29, Número 76, jan./abril 2016, p. 183-186:
    Na página 183:
    Onde se lia:
    “José Benevides Queiroz”
    Leia-se:
    “José Benevides Queiroz
    Mariana Mont’Alverne Barreto Lima”
    Na página 186
    Onde se lia:
    “José Benevides Queiroz – Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Maranhão. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFMA. jbenevidesq@ufma.br”
    Leia-se:
    “José Benevides Queiroz – Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Maranhão. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFMA. jbenevidesq@ufma.br
    Mariana Mont’Alverne Barreto Lima – Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Professora Adjunta II do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. mariana.barreto@pq.cnpq.br ”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2015
  • Aceito
    14 Nov 2015
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