Expressão da espiritualidade nos cuidados paliativos: revisão narrativa

Resumo

A terminalidade da vida requer uma abordagem ampla, com o alívio das dores física, emocional, familiar e social. Ademais, questões espirituais devem ser abordadas como forma de garantir ao paciente todas as fontes de conforto. Em vista disso, esta revisão narrativa da literatura tem o intuito de discutir os efeitos da espiritualidade/religiosidade nos cuidados paliativos. A partir de uma busca manual de trabalhos nas bases PubMed e Biblioteca Virtual em Saúde, foram selecionados 11 trabalhos para a revisão. As discussões foram divididas em três eixos: espiritualidade dos pacientes terminais, espiritualidade dos profissionais da saúde e espiritualidade dos familiares. Conclui-se que as práticas espirituais durante o fim da vida e no enfrentamento das angústias são cruciais tanto para pacientes e familiares quanto para os profissionais.

Cuidados paliativos integrativos; Espiritualidade; Religião; Medicina paliativa

Abstract

End of life requires a comprehensive approach to relief physical, emotional, family and social pain, addressing spiritual issues as a way to ensure patients all sources of comfort. Given this scenario, this narrative literature review discusses the effects of spirituality/religiosity in palliative care. Based on a manual search for papers in the PubMed and Virtual Health Library databases, 11 articles were selected for the review. The discussions were divided into three axes: spirituality of terminally ill patients, spirituality of health professionals and spirituality of family members. In conclusion, spiritual practices during the end of life and in coping with anguish are crucial both for patients and their families and for professionals.

Integrative palliative care; Spirituality; Religion; Palliative medicine

Resumen

El final de la vida requiere un enfoque amplio, con alivio del dolor físico, emocional, familiar y social. Además, las cuestiones espirituales deben abordarse como forma de ofrecer confort al paciente. En este contexto, esta revisión narrativa de la literatura tiene como objetivo discutir los efectos de la espiritualidad/religiosidad en los cuidados paliativos. A partir de una búsqueda de artículos en PubMed y en la Biblioteca Virtual de Salud, se seleccionaron 11 artículos para la revisión. Los debates se dividieron en tres ejes: espiritualidad de los pacientes terminales, espiritualidad de los profesionales sanitarios y espiritualidad de los familiares. Se concluye que las prácticas espirituales durante el final de la vida y en el afrontamiento de la angustia son cruciales tanto para los pacientes y sus familias como para los profesionales de la salud.

Cuidados paliativos integrativos; Espiritualidad; Religión; Medicina paliativa

Muito já se discutiu sobre a interferência da espiritualidade e da religiosidade no processo saúde-doença. Entende-se espiritualidade como crença abrangente em um ser superior que influencia a vida do ser humano em seus diversos âmbitos; já religiosidade consiste na orientação e no direcionamento dessa crença. Os benefícios atribuídos à espiritualidade/religiosidade durante o adoecimento podem estar associados ao suporte oferecido por redes de apoio, principalmente para pessoas que frequentam grupos religiosos. Além disso, em pessoas religiosas, estimula-se a manifestação de emoções positivas, como amor, perdão e paz, e a redução de emoções negativas, como medo, preocupação e tristeza ¹ .

Os cuidados paliativos são uma abordagem em ascensão, baseada em princípios que visam a melhora da qualidade de vida daqueles que sofrem de alguma condição que ameaça a vida. Busca-se, por meio dessa abordagem, avaliar e tratar problemas nos âmbitos físico (principalmente a dor), emocional, familiar, social e espiritual. É importante ressaltar que, de modo inédito na área, a espiritualidade passou a ser vista como uma dimensão do ser humano digna de cuidado e atenção ² .

Há alguns princípios que devem direcionar a equipe multiprofissional, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Eles são: propiciar o alívio da dor e de sintomas desconfortáveis, considerando o conceito de dor total; resgatar a noção da morte como processo natural da vida; buscar a ortotanásia, sem acelerar ou adiar a morte; incluir aspectos psicológicos e espirituais no manejo do cuidado; propiciar autonomia e preservação da atividade até o momento da morte, quando possível. Além disso, a equipe deve auxiliar familiares a lidar com a doença e o posterior processo de luto; realizar uma abordagem multiprofissional a fim de oferecer a plenitude do cuidado; e proporcionar melhora na qualidade de vida. Os cuidados paliativos devem ser iniciados precocemente, junto com outros tratamentos ³ .

Percebe-se, tendo em vista tais princípios, a importância de considerar também os aspectos espirituais na terminalidade da vida. A fim de evitar o sofrimento espiritual, baseando-se no princípio de alívio da dor total, a espiritualidade deve ser incluída como um outro sinal vital ⁴ . Alguns sentimentos associam-se à angústia espiritual, como a desesperança, a falta de sentido, o desapontamento e o remorso, manifestando-se comumente no fim da vida, o que evidencia a relevância de atentar para esse aspecto, juntamente com os outros cuidados ⁵ .

O objetivo desta revisão é analisar, a partir da literatura, os efeitos da espiritualidade e da religiosidade nos cuidados paliativos e no enfrentamento da morte. Serão consideradas a visão do paciente e a perspectiva das famílias que têm um ente em terminalidade de vida, e avaliados os meios de inserir essa abordagem no trabalho da equipe multiprofissional.

Método

Considerando o objetivo do presente trabalho, elaborou-se uma revisão narrativa da literatura, a fim de discutir a temática proposta de forma ampliada e descritiva. Realizaram-se buscas, de forma não sistemática, nas bases de dados PubMed e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) durante o período de dezembro de 2022 a fevereiro de 2023. Foram utilizados os seguintes descritores, em língua inglesa e portuguesa, somados aos operadores booleanos “ and ” e “ or ”: cuidados paliativos integrativos/ integrative palliative care , espiritualidade/ spirituality , religião/ religion . A intenção, ao realizar tal pesquisa, era responder à questão: quais são os efeitos da expressão da espiritualidade nos cuidados paliativos?

Foram considerados trabalhos em língua portuguesa e inglesa, da área de conhecimento da medicina, e excluídas outras revisões de literatura. Apesar de configurar-se uma seleção arbitrária de artigos, sujeita a viés, optou-se pela construção de uma revisão narrativa, justamente por proporcionar liberdade para o debate de uma temática tão essencial. Ao fim, foram selecionados 11 artigos, que serão apresentados, discutidos e comparados com a literatura atual acerca da temática da espiritualidade nos cuidados paliativos.

Dessa forma, para fins didáticos, dividiram-se os resultados e as discussões dos assuntos nas seções: “Espiritualidade dos pacientes terminais”; “Espiritualidade dos profissionais da saúde” e “Espiritualidade dos familiares”.

Resultados e discussão

Espiritualidade de pacientes terminais

A distinção entre os conceitos de espiritualidade e religiosidade é significativa e a maioria das pessoas se consideram antes espirituais do que religiosas ⁶ , no entanto um episódio de sofrimento aumenta a tendência de recorrer a fontes religiosas ou espirituais para obter suporte, esperança e conforto. Frequentemente a própria religião fornece ferramentas para encarar os desafios de um problema de saúde: textos religiosos fornecem orientações, e líderes religiosos ajudam pacientes a encontrar uma nova perspectiva para lidar com tais situações. Além disso, pessoas não religiosas podem sofrer de estresse psicológico mais agudo do que aquelas que possuem forte identidade espiritual ⁷ .

Para o paliativista, essas práticas exercem um papel importante no suporte interdisciplinar, diante da terminalidade da vida ⁸ . Contudo, em contraste a outros tipos de intervenções, como a farmacológica, é difícil dosar ou balancear o suporte espiritual, assim como seus benefícios – o que contradiz alguns lemas da medicina ocidental ⁷ . Nesse caso, é necessário que a medicina integrativa saiba agir, em relação ao processo de cura e ao alívio do sofrimento, com base no auxílio espiritual buscado pelo paciente.

Religiosamente, os conceitos de espírito e alma apresentam interfaces semelhantes e muitas religiões de prevalência ocidental referem-se a esses conceitos como uma parte metafísica, eterna e incorruptível do “eu”. Em contraposição a isso, práticas budistas reconhecem o ciclo de nascimento, sofrimento, morte e renascimento, com o “espírito” representado por uma força que transcende a morte e segue para outras vidas. O hinduísmo, por sua vez, também relaciona o metafísico eterno ao chamado Ãtman, uma essência interior ⁷.

Esses devem ser pontos de interesse para o cuidador e a área adscrita ao seu cuidado: o cuidado espiritual ao paciente é, provavelmente, convergente à sua crença e pode executar reparos em nível espiritual, mesmo quando a cura biológica não é possível ⁹ .

Paiva e colaboradores ¹⁰ realizaram estudo observacional a fim de analisar a influência da prática religiosa na qualidade de vida de mulheres em tratamento de câncer de mama em um hospital no interior do estado de São Paulo. Eles encontraram uma associação positiva entre religiosidade, sobretudo na presença de atividade de oração, e aceitação da autoimagem corporal, desafio comum para pacientes com câncer de mama.

Além disso, a oração foi relacionada com uma melhora do funcionamento emocional e cognitivo, e com a manutenção da qualidade de vida, sem que houvesse piora de sintomas que costumam se manifestar em pacientes sem hábito religioso. Conclui-se que a prática religiosa pode influenciar na resiliência ao tratamento quimioterápico, diminuindo a vulnerabilidade dos pacientes.

King e colaboradores ¹¹ também desenvolveram um estudo com pacientes com câncer em estágio terminal a fim de avaliar se a espiritualidade está relacionada a menores índices de ansiedade e depressão e à redução da prescrição de analgésicos e antidepressivos. Eles utilizaram a escala de crenças e valores, que permite determinar a natureza e a força da crença, e não encontraram relações significativas entre as variáveis, o que foi explicado pelo estresse psicológico causado pela morte, o qual pode não ser superado pelas crenças espirituais. Esse estudo teve como limitação a ausência de análise da influência das práticas religiosas.

Por fim, o estudo de Balboni e colaboradores ¹² também resultou em algumas ressalvas sobre suporte de comunidades religiosas a pacientes em cuidados de fim de vida. Eles sugerem que esses grupos costumam enfatizar a crença em milagres, bem como a santificação pelo sofrimento, o que pode influenciar na aceitação de terapias médicas mais agressivas, no entanto esse estudo notou melhora inicial da qualidade de vida e do bem-estar existencial do paciente, decorrentes do apoio espiritual. Como forma de resolver esse impasse, os autores evidenciam a importância de que o suporte espiritual parta da equipe médica, pois, por estar mais preparada para lidar com situações de terminalidade, ela pode evitar o aumento de tratamento mais agressivo.

Espiritualidade dos profissionais de saúde

Como vimos, é importante que a equipe de cuidado saiba abordar a espiritualidade e a religiosidade. Também sob essa ótica, Longuiniere, Yarid e Silva ¹³ analisaram, em uma unidade de tratamento intensivo na Bahia, a influência da espiritualidade de profissionais de saúde no entendimento do processo saúde-doença, investigando se a crença modifica a forma de cuidado de pacientes críticos. Eles observaram que, estando essa dimensão associada ao bem-estar e à valorização do outro, profissionais mais espiritualizados são capazes de estabelecer uma conexão maior com os pacientes e com os outros colegas.

Essas relações, por sua vez, permitem melhorar a tomada de decisões e diminuir o estresse do ambiente de trabalho. Apesar da importância dessas questões, percebe-se ainda que muitos profissionais as negligenciam ou sentem-se despreparados para abordá-las ¹³ .

Além disso, O’Brien e colaboradores ¹⁴ desenvolveram estudo que ofereceu treinamento acerca de espiritualidade para enfermeiros e cuidadores que lidavam com pacientes em cuidados paliativos. O curso abordava temas sobre reconhecimento da espiritualidade, seu significado e a importância de diferenciá-la da religiosidade, e, como apoio às necessidades espirituais dos pacientes, oferecia aulas de reconhecimento de estresse espiritual e desenvolvimento de habilidades de comunicação. Os participantes demonstraram maior confiança para lidar com tais temas e mais capacidade de oferecer cuidado holístico, sem negligenciar questões espirituais que antes eram evitadas.

A pesquisa de Van Meurs e colaboradores ¹⁵ proporcionou um treinamento de comunicação para médicos e enfermeiros de uma equipe de cuidados paliativos a fim de explorar a dimensão espiritual no cuidado oferecido. Com o uso de pacientes atores, essa abordagem obteve bons resultados por se aproximar da prática clínica. Um dos pontos fortes do trabalho foi incentivar também a descrição desses aspectos não somáticos no prontuário do suposto paciente, o que contribui para a aplicação dos aprendizados na rotina de cuidados da equipe multidisciplinar.

Por fim, o estudo de Pessagno, Foote e Aponte ¹⁶ explora as experiências de acadêmicos de medicina que se confrontaram com a perda de seus pacientes. Os mecanismos de luto foram diversos: conversar sobre suas emoções, exercer a autoconfiança para continuar o curso, chorar, participar de rituais e exercer atividades religiosas. Como resultado, quase toda a amostra manifestou algum grau de estresse perante a morte de pacientes, principalmente em casos de crianças e de erro profissional em decisões médicas.

Além disso, a parte da amostra que contava com a religião como mecanismo de luto admitiu que esse exercício envolvia o pensamento de eventualmente rever as pessoas queridas. Assumiram que a religião os ajudava a se sentir menos incapazes na atividade médica, além de potencializar a vontade de ajudar pacientes com chances de melhora.

Espiritualidade dos familiares

Miqueletto e colaboradores ¹⁷ entrevistaram diversas famílias que tinham algum ente em estado terminal a fim de analisar a influência da espiritualidade e religiosidade no enfrentamento desse processo. Os entrevistados relataram encontrar forças para passar por esse momento por receberem a oportunidade de falar sobre essas questões. Para os familiares, a fé permite ter esperança de que o doente se encontrará melhor em algum momento, o que evidencia a importância de abordar tal dimensão também com a família do paciente, haja vista os relatos de que geralmente a equipe não está disponível para tratar do tema.

Com o objetivo de examinar a relação entre espiritualidade e doença na narrativa de famílias que conviveram com um familiar doente, Bousso e colaboradores ¹⁸ concluíram que certas crenças e práticas religiosas facilitavam o enfrentamento da doença e da morte, enquanto outras dificultavam a assimilação da situação. A adaptação e o ajuste ao sofrimento foram facilitados em cultos que professavam a continuidade da vida após a morte. Em contrapartida, famílias que pregavam a doença como punição, consequência ou culpa de atos do doente permaneceram mais resistentes ao direcionamento do cuidado médico.

O estudo ainda identificou que instituições religiosas eram suscetíveis à busca tanto de apoio emocional pelos familiares como de respostas. No entanto, era comum que a explicação dada por uma religião não respondesse a todos os questionamentos da família, que passava a procurar elucidações mais convincentes em outros suportes religiosos.

Puggina e Silva ¹⁹ , ao analisar mensagens de familiares a pacientes com desordem de consciência a partir de um ensaio clínico pregresso, encontraram formas de enfrentamento por meio da espiritualidade. Elas foram divididas em cinco categorias temáticas: fé em uma influência divina como desfecho; oração como estratégia confortante; fé como algo necessário para cura; intercessão divina na recuperação do ente querido; e pedido de benção e livramento ao paciente.

Observa-se, nesses casos, a estratégia de terceirizar a responsabilidade por aquele ente em sofrimento, em vista da incapacidade humana perante a terminalidade da vida. A espiritualidade fomentada, portanto, traz sobriedade ao enfrentamento dessas situações, de modo que, por meio dela, a família oferece apoio social ao paciente, ainda que este não seja capaz de exercer sua própria atividade espiritual.

Considerações finais

Em suma, percebe-se que as práticas espirituais ou religiosas são essenciais ao lidar com o processo de finitude da vida. Dessa forma, entende-se que pacientes terminais demandam apoio no âmbito espiritual e, portanto, paliativistas e cuidadores devem estar envolvidos com essas questões. Além disso, com base nas evidências da literatura, constata-se que profissionais de saúde com treinamento para desenvolver a comunicação sobre espiritualidade puderam se conectar mais profundamente com seus pacientes, oferecendo cuidado integral.

Ademais, um diferencial da presente revisão consiste na abordagem dos efeitos da espiritualidade no enfrentamento da doença e no processo de luto pelos familiares dos pacientes. Esse suporte mostrou-se eficaz tanto para as pessoas próximas aos pacientes no final da vida quanto para o próprio paciente, que se sente mais acolhido. Logo, destaca-se a necessidade de desenvolver novas pesquisas relacionadas a essa dimensão do cuidado médico, para que os profissionais estejam preparados e dispostos a atender particularidades do paciente terminal também no âmbito espiritual.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  22 Mar 2024
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  9 Mar 2023
• rev-rec
  13 Jul 2023
• Aceito
  20 Set 2023