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Compreensão e comunicação de cuidados paliativos em neonatologia: abordagem bioética

Resumo

Tratar de morte e cuidados paliativos em neonatologia é desafiador para os profissionais de saúde. Esse estudo buscou conhecer a compreensão e o processo de comunicação em cuidado paliativo em neonatologia em um hospital do Sul do Brasil, e analisar os resultados sob a perspectiva da bioética, por meio de pesquisa qualitativa e descritiva de caráter retrospectivo. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 14 participantes (sete mães e sete médicos) entre junho de 2021 e agosto de 2022. Para análise dos dados, foi utilizada a análise de conteúdo de Bardin e, dentre as categorias emergentes, destacam-se duas: conhecimento sobre cuidado paliativo e comunicação em cuidados paliativos. Concluiu-se que há entraves na comunicação que podem interferir na compreensão da família sobre o conceito de cuidado paliativo. É necessário maior investimento em educação sobre temas como bioética, paliatividade e comunicação de más notícias para facilitar esses processos e instrumentalizar os profissionais.

Palavras-chave
Cuidados paliativos; Bioética; Neonatologia; Comunicação em saúde

Abstract

Dealing with death and palliative care in neonatology is challenging for health professionals. This retrospective qualitative and descriptive study sought to understand the process of neonatal palliative care communication in a hospital in southern Brazil, analyzing the results from a bioethical perspective. Data were collected by semi-structured interviews, conducted with 14 participants (seven mothers and seven doctors) between June 2021 and August 2022, and examined using Bardin’s content analysis. Two categories stood out: knowledge about palliative care and communication in palliative care. In conclusion, existing communication obstacles can interfere with the family’s understanding of palliative care. Education on topics such as bioethics, palliative care and communication of bad news require greater investments to facilitate these processes and equip professionals.

Keywords
Palliative care; Bioethics; Neonatology; Health communication

Resumen

Lidiar con la muerte y los cuidados paliativos en neonatología es un desafío para los profesionales de la salud. Este estudio buscó conocer la comprensión y el proceso de comunicación en los cuidados paliativos en neonatología en un hospital del Sur de Brasil, y analizar los resultados desde la perspectiva de la bioética utilizando investigación cualitativa y descriptiva retrospectiva. Se realizaron entrevistas semiestructuradas a 14 participantes (siete madres y siete médicos) entre junio de 2021 y agosto de 2022. Se utilizó el análisis de contenido de Bardin para analizar los datos y, entre las categorías emergentes, destacan conocimiento sobre cuidados paliativos y comunicación en cuidados paliativos. Existen obstáculos en la comunicación que pueden interferir en la comprensión de la familia sobre cuidados paliativos. Hay que invertir más en temas como bioética, cuidados paliativos y comunicación de malas noticias para facilitar estos procesos y proporcionar a los profesionales las herramientas necesarias.

Palabras clave
Cuidados paliativos; Bioética; Neonatología; Comunicación en salud

Embora possa parecer que lidar com a morte torne-se algo rotineiro para profissionais de saúde que atuam no intensivismo, essa situação sempre se apresentará como um grande desafio. Hospitais recebem diariamente indivíduos com condições de saúde, agudas ou crônicas, que demandam algum tipo de cuidado. Nesse processo, pode ser descoberta uma doença incapacitante ou que ameace a vida, implicando a necessidade de medidas de cuidado paliativo 11. Cavalcante AES, Mourão Netto JJ, Martins KMC, Rodrigues ARM, Goyanna NF, Aragão OC. Percepção de cuidadores familiares sobre cuidados paliativos. Arq Ciênc Saúde [internet]. 2018 [acesso 15 jul 2021];25(1):24-8. DOI: 10.17696/2318-3691.25.1.2018.685
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2. Maciel MGS. Definições e princípios. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 15 jul 2021]. p. 15-33. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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-33. Parravicini E. Neonatal palliative care. Curr Opin Pediatr [Internet]. 2017 [acesso 15 jul 2021];29(2):135-40. DOI: 10.1097/MOP.0000000000000464
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Esses diagnósticos também podem se referir àqueles que estão no início de sua vida, como bebês, tornando o cuidado ainda mais difícil. Estudos sobre cuidado paliativo em neonatologia ainda são muito recentes e escassos na literatura. Doenças como síndromes genéticas graves, malformações fetais, alterações ósseas e anencefalia estão entre as principais causas de cuidados paliativos e morte em bebês 11. Cavalcante AES, Mourão Netto JJ, Martins KMC, Rodrigues ARM, Goyanna NF, Aragão OC. Percepção de cuidadores familiares sobre cuidados paliativos. Arq Ciênc Saúde [internet]. 2018 [acesso 15 jul 2021];25(1):24-8. DOI: 10.17696/2318-3691.25.1.2018.685
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2. Maciel MGS. Definições e princípios. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 15 jul 2021]. p. 15-33. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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-33. Parravicini E. Neonatal palliative care. Curr Opin Pediatr [Internet]. 2017 [acesso 15 jul 2021];29(2):135-40. DOI: 10.1097/MOP.0000000000000464
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Nessas situações, a comunicação com familiares de pacientes é desafiadora para os profissionais, e um dos principais obstáculos está relacionado à dificuldade dos médicos em falar de forma direta e clara sobre condutas de limitação terapêutica e de fim de vida, por receio de destruir as esperanças da família. Estudos apontam, no entanto, que uma boa comunicação entre equipe de saúde e família beneficia o processo de tomada de decisão e é primordial para um cuidado adequado. A família deve ser suficientemente informada sobre o quadro de saúde do paciente por meio de uma comunicação sensível e empática, que respeite o tempo de elaboração dos pais 44. Schmidt B, Gabarra LM, Gonçalves JR. Intervenção psicológica em terminalidade e morte: relato de experiência. Paidéia (Ribeirão Preto) [Internet]. 2011 [acesso 12 ago 2022];21(50):423-30. DOI: 10.1590/S0103-863X2011000300015
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5. Monteiro DT, Siqueira AC, Trentin LS. Comunicação de notícias difíceis em uma unidade de oncologia pediátrica. Bol Acad Paul Psicol [Internet]. 2021 [acesso 18 ago 2022];41(101):205-16 Disponível: https://bit.ly/3uw3i64
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-66. Silva MJP. Falando da comunicação. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 20 nov 2021]. p. 33-45. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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Protocolos de comunicação são ferramentas desenvolvidas para auxiliar profissionais de saúde, a fim de diminuir possíveis prejuízos advindos de uma comunicação de más notícias inadequada. Esse é o caso do protocolo Spikes, que capacita o médico para se comunicar e lidar de maneira apropriada com as emoções suscitadas pela situação. A forma como uma notícia de grande impacto é comunicada é potencialmente tão importante quanto o seu conteúdo 77. Gazzola LPL, Leite HV, Gonçalves GM. Comunicando más notícias sobre malformação fetal congênita: reflexões bioéticas e jurídicas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 8 maio 2022];28(1):38-46. DOI: 10.1590/1983-80422020281365
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,88. Schneider AS, Ludwig MCF, Neis M, Ferreira AM, Issi HB. Percepções e vivências da equipe de enfermagem frente ao paciente pediátrico em cuidados paliativos. Ciênc Cuid Saúde [Internet]. 2020 [acesso 20 jun 2022];19:e41789. DOI: 10.4025/ciencuidsaude.v19i0.41789.

A bioética complexa é uma abordagem por meio da qual se busca refletir sobre a adequação das ações tomadas no âmbito da saúde e pode ser compreendida como uma proposta de reflexão complexa, interdisciplinar e compartilhada, que mobiliza questionamentos e aplicações práticas no âmbito da saúde e da doença. As condutas médicas baseadas na bioética clínica colaboram para a resolução de conflitos 99. Goldim JR. Bioética complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Rev AMRIGS [Internet]. 2009 [acesso 10 dez 2021];53(1):58-63. Disponível: https://bit.ly/46sZujq
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,1010. Dadalto L, Carvalho S. Os desafios bioéticos da interrupção voluntária de hidratação e nutrição em fim de vida no ordenamento jurídico brasileiro. Rev Latinoam Bioét [Internet]. 2021 [acesso 20 ago 2022];21(2):127-42. DOI: 10.18359/rlbi.5181.

Quatro princípios fundamentais, provenientes da teoria principialista, serviram de base para a bioética clínica no âmbito biomédico: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Esses princípios guiam a tomada de decisão em saúde perante problemas éticos. Em cuidados paliativos o princípio da autonomia tem determinada relevância, pois ressalta-se a importância de preservar a vontade do paciente, levando em conta sua concepção de vida e morte digna 99. Goldim JR. Bioética complexa: uma abordagem abrangente para o processo de tomada de decisão. Rev AMRIGS [Internet]. 2009 [acesso 10 dez 2021];53(1):58-63. Disponível: https://bit.ly/46sZujq
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,1010. Dadalto L, Carvalho S. Os desafios bioéticos da interrupção voluntária de hidratação e nutrição em fim de vida no ordenamento jurídico brasileiro. Rev Latinoam Bioét [Internet]. 2021 [acesso 20 ago 2022];21(2):127-42. DOI: 10.18359/rlbi.5181.

Apesar da importância da bioética no contexto da saúde, há uma falta de profissionais com formação correspondente nas instituições, bem como dificuldade institucional de capacitar os profissionais com o desenvolvimento das habilidades de comunicação apropriadas para enfrentar situações difíceis. Adequar-se às medidas terapêuticas baseadas em cuidados paliativos exige uma construção de protocolos claros e embasados, tanto no âmbito técnico-científico quanto no âmbito legal. Para lidar com esses casos, é necessário oferecer instrumentos aos profissionais e implementar protocolos 1111. Souza DB. Aspectos éticos e bioéticos na comunicação de notícias difíceis por médicos residentes da clínica cirúrgica em um hospital do sul do Brasil [dissertação] [Internet]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria; 2019 [acesso 13 jun 2022]. Disponível: https://bit.ly/47IiZWJ
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12. Arnaez J, Tejedor JC, Caserío S, Montes MT, Moral MT, González de Dios J et al. La bioética en el final de la vida en neonatología: cuestiones no resueltas. An Pediatría [Internet]. 2017 [acesso 5 jun 2022];87(6):356.e1-356.e12. DOI: 10.1016/j.anpedi.2017.03.014
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-1313. Lampert MA, Billing AE, Onófrio LF, Seeger GG, Thomaz RP. Adequação terapêutica: apresentação de um protocolo hospitalar. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 6 maio 2022];30(1):94-105. DOI: 10.1590/1983-80422022301510PT.

Diante dessas questões, é fundamental que os profissionais envolvidos conheçam os princípios do cuidado paliativo e da bioética para pautar suas decisões de forma adequada, avaliando constantemente a suspensão ou inclusão de terapêuticas e modulando as intervenções de acordo com a progressão e individualidade de cada caso. Por essa razão, questões importantes, como comunicação de más notícias e cuidados paliativos, deveriam fazer parte do treinamento médico.

A literatura aponta que um treinamento adequado pode melhorar o cuidado e a comunicação em situações de cuidado paliativo, visto que geralmente programas de treinamento são voltados ao paciente agudo. No entanto, há déficit no treinamento de profissionais médicos em questões que envolvam cuidados paliativos e comunicação de más notícias 1414. Balbino FS. Cuidado paliativos ao recém-nascido pré-termo e à família. In: Gaiva MAM, Rodrigues EC, Toso BRGO, Mandetta MA, organizadoras. Cuidado integral ao recém-nascido pré-termo e à família [Internet]. São Paulo: Sociedade Brasileira dos Enfermeiros Pediatras; 2021 [acesso 6 maio 2022]. p. 288-313. Disponível: https://bit.ly/49Uz2lt
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,1515. Torres LF, Oliveira NMS. Educational program in palliative care for healthcare professionals: a systematic review. Res Soc Dev [Internet]. 2022 [acesso 20 mar 2022];11(6):e18011628885. DOI: 10.33448/rsd-v11i6.28885
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Método

Realizou-se estudo retrospectivo de caráter qualitativo, com amostra por conveniência composta por sete casos de bebês que estiveram em cuidado paliativo, internados nas unidades de neonatologia e pediatria de um hospital universitário do Sul do Brasil. Foram convidados a participar dois grupos de indivíduos, médicos e mães, totalizando 14 participantes: sete mães e sete médicos. As entrevistas foram contemporâneas, abordando um recordatório da vivência e com essa amostra alcançou-se a saturação de dados.

As participantes foram mães – maiores de 18 anos sem diagnóstico de transtorno psiquiátrico grave – de bebês que estiveram em cuidados paliativos entre os anos de 2019 e 2022, cujos casos foram identificados mediante revisão de prontuário. Já os médicos contemplados foram pediatras e/ou neonatologistas que compuseram equipe responsável pelos cuidados assistenciais ao bebê, com mínimo de 1 ano de experiência no hospital.

Coleta e análise dos dados

Os dados foram obtidos por meio de entrevista semiestruturada e questionário sociodemográfico, elaborados pelos autores, além de dados coletados a partir da revisão de prontuários. Foram coletados dados gerais e sociodemográficos, incluindo idade, sexo, crença religiosa e escolaridade. Buscou-se compreender diversos aspectos da paliatividade em bebês, entre eles a comunicação, a apreensão do conceito e o processo de tomada de decisão, bem como percepções e sentimentos dos entrevistados.

Após aplicação do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), devido à pandemia de covid-19, a maioria dos dados foram coletados por chamada de vídeo ou áudio. As entrevistas presenciais ocorreram em uma sala privativa dentro das unidades hospitalares. Depois da coleta, as falas foram transcritas na íntegra, preservando a integridade e o sigilo das informações a fim de evitar a identificação dos entrevistados.

Submeteram-se os dados qualitativos à análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin 1616. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011., metodologia que permite abordar de forma sistemática a subjetividade e a complexidade do tema examinando os discursos dos participantes. Esse método propõe a descrição analítica das entrevistas pela divisão em categorias.

Essa pesquisa atendeu às determinações das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, conforme a Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS)1717. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial União [Internet]. Brasília, 13 jun 2013 [acesso 20 mar 2022]. Disponível: https://bit.ly/3mnoWSV
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. O projeto foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e pela Plataforma Brasil. Além disso, os participantes foram informados sobre a pesquisa, receberam TCLE e autorizaram sua participação.

Resultados e discussão

Para otimização do processo de análise e discussão dos resultados, os dados provenientes das entrevistas foram divididos em dois grupos: grupo A e grupo B, referindo-se, respectivamente, aos médicos assistentes e às mães. Quatro categorias amplas emergiram da análise de cada grupo, sendo elas: 1) entendimento sobre cuidado paliativo; 2) comunicação; 3) percepções; e 4) sentimentos. Também foram obtidas duas subcategorias, uma de cada grupo: 1a) processo de tomada de decisão em cuidado paliativo; e 1b) entendimento sobre o diagnóstico do bebê. Esse estudo se propõe a analisar apenas duas categorias: 1) entendimento sobre cuidado paliativo; e 2) comunicação.

Os quadros 1, 2 e 3 apresentam os dados dos bebês, médicos e mães.

Foram identificados sete bebês que haviam estado ou estavam, no momento de realização da pesquisa, em cuidado paliativo, em sua maioria do sexo feminino, sendo apenas dois do sexo masculino. A coleta de dados foi realizada com três bebês que ainda estavam em atendimento e com quatro que já haviam falecido na ocasião de realização da entrevista.

As idades foram calculadas com base no momento da coleta ou do óbito, variando desde 27 semanas de gestação a 1 ano e 7 meses de vida, e o tempo de internação hospitalar foi de 17 a 132 dias. Cada paciente apresentou diagnóstico diferente, e em apenas três casos foi solicitada consultoria para a equipe de bioética.

Quadro 1
Apresentação dos dados dos bebês

Quadro 2
Apresentação dos dados dos profissionais

Quadro 3
Apresentação dos dados das mães

No grupo A, foram entrevistados sete médicos,com idade entre 28 e 45 anos, que prestavam assistência a esses bebês, sendo seis do sexo feminino e quatro católicos. Todos os médicos entrevistados eram pediatras, especialistas ou estavam realizando a residência em neonatologia no momento da entrevista, e apenas um tinha curso de cuidados paliativos e outro tinha realizado curso de comunicação de más notícias. O restante dos entrevistados afirmou ter participado de palestras breves sobre os temas durante sua formação médica.

No grupo B, foram entrevistadas sete mães de bebês que estavam ou estiveram internados em cuidados paliativos. As mães tinham idade entre 23 e 41 anos, e três delas eram católicas, duas afirmaram acreditar em Deus, uma era umbandista, e apenas uma disse não ter religião. Três mães declararam ter o ensino médio completo, duas tinham ensino superior incompleto, e duas estavam desempregadas no momento da entrevista.

Das sete mães, três receberam a comunicação de cuidado paliativo na neonatologia, outras três, na pediatria e uma na unidade de internação obstétrica. Duas mães estavam no período gestacional quando ocorreu a comunicação, após ser identificada doença de grave prognóstico em exames pré-natais.

É importante ressaltar que, embora apenas mães tenham sido entrevistadas nesse estudo, alguns pais estiveram presentes durante os cuidados com seu bebê ao longo da internação. Por essa razão, em alguns momentos faz-se referência aos termos “família” e “pais”, considerando também que o cuidado paliativo deve ser estendido à família, e não somente aos pais dos bebês 66. Silva MJP. Falando da comunicação. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 20 nov 2021]. p. 33-45. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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Categoria 1: entendimento sobre cuidado paliativo

Os participantes foram questionados sobre o que consideravam cuidado paliativo, com o objetivo de compreender sua construção desse conceito. No grupo A, todos os profissionais afirmaram ser um cuidado que prioriza o conforto e que deve ser dispensado a paciente cuja doença não tem cura, e apenas um profissional ressaltou que o cuidado deve ser realizado por equipe multiprofissional.

Três participantes afirmaram ser um cuidado que se diferencia da terminalidade e pontuaram que por vezes os dois conceitos podem ser confundidos. Uma participante referiu-se ao conceito como um cuidado realizado para além da cura: “não é porque a gente tem uma perspectiva de cura que a gente vai deixar de fazer o paliativo, né” (P6).

O cuidado paliativo é entendido como um cuidado ativo, integral, desempenhado por equipe multiprofissional, que prioriza a qualidade de vida e a diminuição do sofrimento. Trata-se de conceito ainda pouco claro para profissionais de saúde, apesar de ser muito frequente nas unidades de cuidado intensivo, o que possivelmente se deve à falta de suporte teórico durante a formação médica. Temáticas como a morte e o morrer acabam sendo pouco abordadas durante a graduação e a pós-graduação, e os profissionais, consequentemente, enfrentam dificuldades em lidar com essas vivências em sua prática diária 1515. Torres LF, Oliveira NMS. Educational program in palliative care for healthcare professionals: a systematic review. Res Soc Dev [Internet]. 2022 [acesso 20 mar 2022];11(6):e18011628885. DOI: 10.33448/rsd-v11i6.28885
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,1818. World Health Organization. Integrating palliative care and symptom relief into pediatrics: a Who guide for health care planners, implementers and managers [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2018 [acesso 23 nov 2021]. Disponível: https://bit.ly/3urUvlD
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Das sete mães entrevistadas, quatro referiram-se ao cuidado paliativo como um cuidado para uma criança com uma doença que não tem cura. Três disseram não ter informações a respeito de cuidado paliativo ou não terem sido comunicadas sobre o caráter do cuidado com seu bebê. Três das mães entrevistadas o definiram como um cuidado para evitar sofrimento e dar mais qualidade de vida.

Uma das mães disse que sua compreensão mudou ao longo do tempo de internação de seu filho, após um primeiro entendimento resistente. Sua fala manifesta uma concepção de cuidado paliativo ligado ao momento da morte e sinaliza um senso de abandono do paciente.

“Não existe mais nada pra fazer, a gente vai dar conforto pra ela enquanto ela ainda vive. [Eu falava] ‘Ah, não, a minha filha tá viva e ela vai viver bastante ainda, eu não quero saber de cuidados paliativos…’. Mas não, hoje em dia eu penso de uma forma diferente, eu penso que eles precisam dos cuidados paliativos pra ter uma vidinha melhor” (M3).

Outra mãe verbalizou compreender que o cuidado paliativo envolve uma equipe maior e se ocupa de outros membros da família, além dos pais do bebê, como os avós, por exemplo.

“A minha mãe veio falar com a psicóloga, então ela conversou com toda a família, digamos assim. Então cuidados paliativos, acho que é isso pra mim, essa sensação de cuidado” (M2).

As mães entrevistadas demonstraram conhecimento limitado sobre o conceito de cuidado paliativo, pois, embora certo nível de desconhecimento seja esperado, percebe-se dificuldade de compreensão possivelmente decorrente de comunicação não efetiva. Algumas mães afirmaram que compreendiam inicialmente o cuidado como “deixar morrer” ou “não ter mais o que fazer”, e que ao longo do tempo passaram a entendê-lo com uma noção de cuidado que proporciona conforto.

Silva 66. Silva MJP. Falando da comunicação. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 20 nov 2021]. p. 33-45. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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ressalta a importância de proporcionar um tempo de elaboração para a família, que é subjetivo e pode variar de acordo com as necessidades de cada família, destacando que um profissional deve estar disponível para novos esclarecimentos sempre que possível. Quanto à compreensão inicial das mães sobre “deixar morrer”, Dadalto e Carvalho 1010. Dadalto L, Carvalho S. Os desafios bioéticos da interrupção voluntária de hidratação e nutrição em fim de vida no ordenamento jurídico brasileiro. Rev Latinoam Bioét [Internet]. 2021 [acesso 20 ago 2022];21(2):127-42. DOI: 10.18359/rlbi.5181 dissertam sobre o não abandono como um dos princípios do cuidado paliativo: cuidar e aliviar mesmo quando não é possível curar. Assim, a explicação sobre o conceito e os princípios do cuidado paliativo é fundamental para uma compreensão adequada de que paliar consiste, sobretudo, em cuidado.

É possível perceber que os profissionais manifestaram um conhecimento similar ao abordado pelas mães dos bebês quando questionados sobre sua compreensão de cuidado paliativo. Embora haja entendimento adequado em ambos os grupos, poderia existir, da parte dos profissionais de saúde que prestam assistência nesse contexto, mais informações e elaborações acerca do tema.

Categoria 2: comunicação de cuidados paliativos

Ao serem questionados sobre como ocorreu a comunicação de cuidado paliativo, três participantes disseram ter tido mais de um momento de comunicação com a família, visando possibilitar uma melhor elaboração sobre as informações comunicadas e mais oportunidades para esclarecimento de dúvidas. Em um caso, foram realizados encontros semanais; em outro, foram necessárias conversas diárias com a família com informações sobre o estado de saúde do bebê e prognóstico.

Apenas um participante foi abordado pelos pais com questionamentos sobre os cuidados paliativos, situação em que declararam não perceber melhora, apenas muito sofrimento no bebê. É importante pontuar que a família deve estar inserida no cuidado e ser ouvida em suas dúvidas e angústias, pois os familiares cuidadores – nesse caso, os pais – têm participação ativa no processo de adoecimento e nas decisões em relação ao tratamento 11. Cavalcante AES, Mourão Netto JJ, Martins KMC, Rodrigues ARM, Goyanna NF, Aragão OC. Percepção de cuidadores familiares sobre cuidados paliativos. Arq Ciênc Saúde [internet]. 2018 [acesso 15 jul 2021];25(1):24-8. DOI: 10.17696/2318-3691.25.1.2018.685
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Um dos participantes referiu-se a um processo de comunicação em etapas: pontuou a realização de uma apresentação para a família e ressaltou a necessidade de explicar o conceito de cuidado paliativo e a importância de ouvir a família em seu entendimento, estimulando-a a explicitar seu conhecimento prévio a respeito do tema e do bebê. Segundo esse profissional, a abordagem teria sido elaborada a partir do entendimento da família sobre o cuidado para com o seu filho.

Outro participante também relatou a importância de construir primeiramente um vínculo de confiança com a família, para depois proceder com a comunicação da má notícia. Silva 66. Silva MJP. Falando da comunicação. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 20 nov 2021]. p. 33-45. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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afirma que uma relação de confiança é o principal alicerce para estabelecer o cuidado paliativo e recomenda que essa confiança seja buscada ativamente pelo profissional mediante comunicações no dia a dia do cuidado.

Também se deve levar em consideração que comunicar notícias difíceis é um grande sofrimento para a maioria dos profissionais, pois a própria comunicação trará sofrimento ao outro e o profissional pode não se sentir preparado para amparar essa pessoa 55. Monteiro DT, Siqueira AC, Trentin LS. Comunicação de notícias difíceis em uma unidade de oncologia pediátrica. Bol Acad Paul Psicol [Internet]. 2021 [acesso 18 ago 2022];41(101):205-16 Disponível: https://bit.ly/3uw3i64
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. A comunicação em etapas, ao viabilizar o tempo de elaboração, mencionado por Silva 66. Silva MJP. Falando da comunicação. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 20 nov 2021]. p. 33-45. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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, e o esclarecimento de dúvidas podem ser adotados como estratégias para auxiliar o profissional nesse processo difícil. Assim, por meio de encontros múltiplos e espaçados, possibilita-se uma compreensão mais efetiva por parte da família.

Um profissional apontou como complicadores em uma situação de más notícias a carência na rede de apoio familiar e a baixa escolaridade dos membros da família, fatores que podem interferir na compreensão adequada do caso e dos possíveis desfechos. Dois participantes manifestaram preocupar-se com a possibilidade de o familiar compreender o cuidado paliativo como “deixar morrer” ou como “desistir” de seu bebê.

“Tem famílias [com] que a gente consegue evoluir mais rápido, tem outras que a gente tem que deixar um tempo pra ela assimilar melhor e depois ir adiante” (P2).

Quatro médicos afirmaram ter realizado uma reunião com a equipe multidisciplinar para discutir o caso e alinhar condutas antes de fazer a comunicação à família. Também houve menção à dificuldade adicional decorrente da ausência de diagnóstico: dos quatro, um apontou para a comunicação com a família como uma construção, pois nesse caso não havia diagnóstico exato. Uma das estratégias utilizadas por um dos participantes foi mostrar imagens comparativas entre um paciente saudável e o seu paciente, para auxiliar a família na compreensão do diagnóstico e na comunicação de como seriam os cuidados.

Em dois casos, o diagnóstico foi dado durante o pré-natal. Um dos participantes apontou para a importância de reforçar a comunicação após o nascimento do bebê, pois a confirmação do diagnóstico foi importante para a compreensão e elaboração da família.

“Isso foi sendo construído, e conforme a gente foi tendo mais exames e mais dados a gente foi… dando pequenas amostragens de que talvez o prognóstico não fosse tão favorável. (…) Então quando a gente chegou a essa conclusão final, a gente fez uma reunião prévia entre as equipes e depois comunicou[-se] com os pais” (P6).

Para que a comunicação de cuidados paliativos seja feita, o profissional precisa primeiro se convencer de que não há nenhuma outra conduta curativa a ser feita 55. Monteiro DT, Siqueira AC, Trentin LS. Comunicação de notícias difíceis em uma unidade de oncologia pediátrica. Bol Acad Paul Psicol [Internet]. 2021 [acesso 18 ago 2022];41(101):205-16 Disponível: https://bit.ly/3uw3i64
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. Na comunicação, esse processo de convencimento – que pode ser identificado na fala anterior – deve ser entendido como parte da dinâmica de compreender ou assimilar, em uma ação partilhada pela equipe. Por isso, ele pode ser mais difícil em casos em que não há diagnóstico.

Apenas duas mães disseram ter sido informadas por mais de um profissional a respeito dos cuidados paliativos. Quatro verbalizaram ter recebido informações da “médica dos cuidados paliativos”, apontando para um profissional de referência na comunicação desse cuidado em contraste com outros profissionais da equipe que informavam sobre o quadro de saúde dos pacientes. Duas das mães entrevistadas revelaram ter sido informadas apenas de questões do quadro de saúde de seu filho, sem que houvesse menção a cuidado paliativo, embora tenham sido discutidas as condutas de limitação terapêutica diante dos momentos finais do bebê.

“Só disseram que, quando ela falecesse, eles não podiam reanimar ela… eu entendi, porque senão ela ia ficar sofrendo, ia machucar ela cada vez mais…” (M4).

Esse trecho sinaliza dificuldades advindas da falta de formação profissional em cuidados paliativos, uma vez que, nesse caso, havia somente uma profissional de referência na unidade ou com o preparo adequado para realizar a comunicação. A literatura aponta a falta de formação profissional nesse tema e a dificuldade dos profissionais em falar sobre morte nas unidades, de modo que cada profissional acaba fazendo a comunicação a sua maneira, sem protocolo ou orientações específicas. Sabe-se que uma comunicação ineficaz, como quando profissionais se contradizem, aumenta o nível de sofrimento e desgaste emocional do familiar que cuida, podendo interferir em sua participação no tratamento e no processo decisório 55. Monteiro DT, Siqueira AC, Trentin LS. Comunicação de notícias difíceis em uma unidade de oncologia pediátrica. Bol Acad Paul Psicol [Internet]. 2021 [acesso 18 ago 2022];41(101):205-16 Disponível: https://bit.ly/3uw3i64
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,11. Cavalcante AES, Mourão Netto JJ, Martins KMC, Rodrigues ARM, Goyanna NF, Aragão OC. Percepção de cuidadores familiares sobre cuidados paliativos. Arq Ciênc Saúde [internet]. 2018 [acesso 15 jul 2021];25(1):24-8. DOI: 10.17696/2318-3691.25.1.2018.685
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Duas mães mencionaram acompanhamento de profissional de psicologia durante ou logo após a comunicação do cuidado paliativo. Outras duas relataram comunicação e acompanhamento por uma equipe de profissionais, envolvendo psicologia e genética. Seis mães entrevistadas disseram estar sozinhas, sem acompanhante, no momento da comunicação de cuidado paliativo.

Em um dos casos, a comunicação de cuidado paliativo se deu de forma diferente. Os pais, ao perceberem a ausência de melhora do bebê e o sofrimento, tanto do filho quanto deles próprios, decidiram conversar com a equipe a respeito de seu desejo de que o bebê não sofresse mais. Após esse pedido dos pais, deu-se início às discussões entre a equipe a fim de refletir sobre a adequação dos cuidados paliativos ao caso e, após a reunião com a equipe, comunicou-se aos pais a decisão de implantar cuidados paliativos.

De acordo com esses depoimentos, não há protocolo ou orientações específicas para comunicar más notícias, embora a literatura aponte estratégias efetivas e dê aporte teórico e técnico. Geovanini e Braz 1919. Geovanini F, Braz M. Conflitos éticos na comunicação de más notícias em oncologia. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 23 nov 2021];21(3):455-62. Disponível: https://bit.ly/3sQsRhH
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apontam em seu estudo uma resistência dos profissionais a utilizar protocolos e ferramentas para comunicar diagnósticos, com argumentos contrários à padronização, tendo em vista o contexto delicado. Porém, os protocolos devem ser usados apenas como parâmetros, pois não abarcam a complexidade envolvida nesse tipo de comunicação 77. Gazzola LPL, Leite HV, Gonçalves GM. Comunicando más notícias sobre malformação fetal congênita: reflexões bioéticas e jurídicas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 8 maio 2022];28(1):38-46. DOI: 10.1590/1983-80422020281365
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, visto que comunicar más notícias exige dos profissionais aptidões de caráter pessoal e a sua recepção envolve aspectos subjetivos 2020. Monteiro DT, Siqueira AC, Trentin LS. Comunicação de notícias difíceis em uma unidade de oncologia pediátrica [internet]. Bol Acad Paul Psicol [Internet]. 2021 [acesso 20 jul 2022];41(101):205-16. Disponível: https://bit.ly/3SWipzJ
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Alguns participantes disseram ter realizado a comunicação em etapas e/ou com a equipe multiprofissional, priorizando o estabelecimento de vínculo com os pais e informando aos poucos a família, para que ela tivesse mais tempo para elaborar e compreender a situação. Também nesse sentido, Caneco e colaboradores 2121. Caneco EOV, Milbrath VM, Freitag VL, Amestoy SC. Revelando o diagnóstico da asfixia perinatal grave à família: perspectiva dos profissionais da saúde. Arq Ciênc Saúde [Internet]. 2016 [acesso 16 jan 2021];23(2):23-9. Disponível: https://bit.ly/3sRyQTx
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afirmam que uma comunicação inadequada pode causar prejuízos no entendimento dos familiares. De acordo com os autores, muitas vezes a comunicação ocorre de forma verticalizada, como um simples “repasse de informações” que pode atrapalhar o entendimento da família.

Os profissionais relataram aprender a comunicar-se por meio de sua experiência profissional e pessoal, na assistência a pacientes. Segundo Geovanini e Braz 1919. Geovanini F, Braz M. Conflitos éticos na comunicação de más notícias em oncologia. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 23 nov 2021];21(3):455-62. Disponível: https://bit.ly/3sQsRhH
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, alguns fatores podem explicar a comunicação inadequada de más notícias, como o não investimento no desenvolvimento de habilidades relacionadas durante a graduação, representações sociais, fantasias e crenças relativas a adoecimento e terminalidade.

Nas entrevistas com as mães, foi possível perceber que a maioria das informações transmitidas dizia respeito ao prognóstico e à limitação de condutas, não ao conceito de cuidado paliativo. Segundo Ribeiro, Silva e Silva 2222. Ribeiro TGP, Silva TM, Silva NA. Comunicação de más notícias: repercussões emocionais em médicos de um hospital de oncologia em Recife-PE. Rev. SBPH [Internet]. 2020 [acesso 20 ago 2022];23(2):38-50. Disponível: https://bit.ly/46t1Qig
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, há uma tendência dos profissionais da saúde de amenizar notícias ruins, preocupando-se em evidenciar possíveis aspectos positivos da situação para suavizar o impacto da notícia. Essa estratégia pode atrapalhar os pais no entendimento da real gravidade em casos como os abordados aqui.

Sabendo que uma compreensão adequada sobre o quadro de saúde da criança facilita o processo de tomada de decisão dos pais e o enfrentamento da situação de hospitalização 66. Silva MJP. Falando da comunicação. In: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Cuidado paliativo [Internet]. São Paulo: Cremesp; 2008 [acesso 20 nov 2021]. p. 33-45. Disponível: https://bit.ly/3sLdAPl
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, entende-se a importância de uma maior atenção e investimento nessas etapas do cuidado. Algumas mães chegaram a pontuar uma percepção de abandono do paciente; ademais, deve-se ter em mente os princípios de autonomia – com respeito, dentro das possibilidades, aos desejos da família – e de não abandono, com vistas ao melhor interesse de cada paciente 1010. Dadalto L, Carvalho S. Os desafios bioéticos da interrupção voluntária de hidratação e nutrição em fim de vida no ordenamento jurídico brasileiro. Rev Latinoam Bioét [Internet]. 2021 [acesso 20 ago 2022];21(2):127-42. DOI: 10.18359/rlbi.5181.

Considerando que os profissionais não apresentaram uma formação adequada em cuidados paliativos, é importante refletir sobre a importância da bioética nesse contexto. Em tais situações, é necessário ir além do aprendizado pela prática e pela intuição, com a promoção de uma reflexão complexa que possibilite a ação mais adequada em cada caso 1111. Souza DB. Aspectos éticos e bioéticos na comunicação de notícias difíceis por médicos residentes da clínica cirúrgica em um hospital do sul do Brasil [dissertação] [Internet]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria; 2019 [acesso 13 jun 2022]. Disponível: https://bit.ly/47IiZWJ
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. A adequação das ações relaciona-se à necessidade de realizar um diagnóstico de cada situação, uma leitura a respeito dos fatos envolvidos e da realidade na qual se insere a busca de uma solução mais adequada 2424. Goldim JR. Bioética complexa. In: Abejas A, Antunes ML. Bioética complexa. Lisboa: Lidel, 2022. p. 22-32..

A bioética contribui para essa reflexão acerca da adequação das ações em cuidados paliativos, pois é fundamental compreender os aspectos envolvidos em cada situação, tanto práticos e técnicos quanto afetivos. Entre os fatores que influenciam em tais situações estão os vínculos e desejos dos indivíduos, bem como seus sistemas de crenças e valores 2424. Goldim JR. Bioética complexa. In: Abejas A, Antunes ML. Bioética complexa. Lisboa: Lidel, 2022. p. 22-32.. Dessa forma, os princípios da bioética podem favorecer a reflexão compartilhada da situação, e o conhecimento correspondente pode auxiliar os profissionais no seu processo de comunicação, de tomada de decisão e, principalmente, no processo de cuidado, visando o melhor interesse do paciente e sua família.

Considerações finais

Nos relatos obtidos, é possível notar que há muitos aspectos a serem esclarecidos acerca do conceito de cuidado paliativo, bem como dos fatores comunicacionais envolvidos. O objetivo inicial dessa pesquisa foi esclarecer o entendimento sobre o conceito e os processos, dentro das possibilidades de cada grupo, a respeito dos temas abordados, e identificou-se que os profissionais conhecem aspectos-chave da prática de cuidados paliativos, como proporcionar conforto e qualidade de vida. No entanto, visto que somente dois médicos tinham realizado cursos sobre o tema, é necessária instrumentalização técnica e teórica a respeito do conceito e da comunicação de más notícias.

As entrevistas com as mães reforçam esse entendimento: embora as informações necessárias sobre o quadro de saúde tenham sido compreendidas, muitos aspectos importantes não foram comunicados adequadamente a elas. A fim de evitar comunicação inadequada, há necessidade de desenvolver habilidades para assegurar que houve compreensão suficiente, por parte da família, para a tomada de decisão e assimilação emocional da evolução da doença. A capacitação em bioética pode contribuir para esse cenário, auxiliando os profissionais a refletir e tomar decisões a partir dos princípios da beneficência e da não maleficência.

Por fim, é importante ressaltar que, devido à pandemia de covid-19, apenas mães foram entrevistadas neste estudo. Essa é, a despeito de trabalhos que apontam a mãe como o principal familiar cuidador de pacientes pediátricos hospitalizados, uma limitação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2023
  • Revisado
    05 Jul 2023
  • Aceito
    13 Out 2023
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