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Perfil clínico-epidemiológico de crianças em cuidados paliativos de um hospital

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar o perfil clínico-epidemiológico de crianças acompanhadas por um serviço de cuidados paliativos em um hospital pediátrico de referência no Ceará. Trata-se de estudo de coorte retrospectivo, quantitativo, do tipo série de casos, realizado com 56 pacientes de até 2 anos, 11 meses e 29 dias de idade. As doenças mais comuns foram as do sistema nervoso, circulatório, malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas. As condições incapacitantes graves e não progressivas foram o principal critério para inclusão na paliação. Na conferência familiar, a mãe esteve presente em 94,6% das ocasiões. O desfecho predominante foi óbito (58,9%), apresentando associação significativa com as doenças do aparelho circulatório, sistema nervoso, uso de dispositivo respiratório e ventilação mecânica, setor solicitante e cuidados paliativos. Conclui-se que os cuidados paliativos pediátricos não relacionados a crianças com câncer têm gerado uma nova demanda a nível hospitalar, exigindo uma equipe capacitada e sensível a essa nova realidade.

Cuidados paliativos; Pediatria; Perfil de saúde; Epidemiologia; Enfermagem

Abstract

This study analyzes the clinical-epidemiological profile of children assisted by the palliative care services of a reference hospital in Ceará, Brazil. A retrospective, quantitative, case series cohort study was conducted with 56 patients aged up to 2 years, 11 months and 29 days. Nervous system and circulatory system diseases, congenital malformations, deformities, and chromosomal anomalies were the most common illnesses. Severe and non-progressive disabling conditions were the main criteria for inclusion in palliative care. As for family conference, the mother was present in 94.6% of the cases. Death (58.9%) was the main outcome, being associated with circulatory system and nervous system diseases, use of respiratory device and mechanical ventilation, requesting sector and palliative care. In conclusion, pediatric palliative care aimed at non-cancer patients has generated new hospital demands, requiring a trained team sensitive to this new reality.

Palliative care; Pediatrics; Health profile; Epidemiology; Nursing

Resumen

Este artículo pretende analizar el perfil clínico-epidemiológico de los niños bajo cuidados paliativos en un hospital pediátrico de referencia en Ceará (Brasil). Este es un estudio de cohorte retrospectivo, cuantitativo, de tipo serie de casos, realizado con 56 pacientes de hasta 2 años, 11 meses y 29 días de edad. Las enfermedades más prevalentes fueron las del sistema nervioso y circulatorio, malformaciones congénitas, malformaciones y anomalías cromosómicas. Las condiciones incapacitantes severas y no progresivas fueron el criterio principal para incluir en paliación. En la conferencia familiar, la madre estuvo presente en el 94,6% de las ocasiones. El desenlace predominante fue la muerte (58,9%) asociada significativamente con enfermedades del sistema circulatorio, sistema nervioso, uso de aparato respiratorio y ventilación mecánica, sector demandante y cuidados paliativos. Los cuidados paliativos pediátricos no relacionados con niños con cáncer generan una nueva demanda a nivel hospitalario, requiriendo un equipo capacitado y sensible a esta nueva realidad.

Cuidados paliativos; Pediatría; Perfil de salud; Epidemiología; Enfermería

Diante do aumento de diagnósticos precoces e avanços terapêuticos que possibilitam a sobrevivência em longo prazo de pacientes com doenças crônicas complexas (DCC), os cuidados paliativos vêm ganhando cada vez mais espaço nos serviços de saúde, com o objetivo de promover o alívio do sofrimento e a melhora da qualidade de vida do indivíduo 11. Organização Mundial da Saúde. Cuidados paliativos [Internet]. Brasília: OMS; 2020 [acesso 24 jan 2021]. Disponível: https://bit.ly/2CeUzHV
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.

No âmbito da pediatria, os cuidados paliativos são entendidos como o cuidado ativo e total prestado à criança e ao adolescente desde o diagnóstico até o fim da vida, abrangendo as dimensões física, emocional, social e espiritual. O principal foco é a manutenção da qualidade de vida da criança ou adolescente, bem como o suporte à família 11. Organização Mundial da Saúde. Cuidados paliativos [Internet]. Brasília: OMS; 2020 [acesso 24 jan 2021]. Disponível: https://bit.ly/2CeUzHV
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Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) 11. Organização Mundial da Saúde. Cuidados paliativos [Internet]. Brasília: OMS; 2020 [acesso 24 jan 2021]. Disponível: https://bit.ly/2CeUzHV
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estimam que 40 milhões de pessoas necessitem de cuidados paliativos anualmente. Quanto às crianças, a maioria (98%) vive em países de média e baixa renda. Sobre a quantidade de serviços de cuidados paliativos ofertados à população, o estudo de Thomas Lynch 22. Lynch T, Connor S, Clark D. Mapping levels of palliative care development: a global update. J Pain Symptom Manage [Internet]. 2013 [acesso 24 jan 2021];45(6):1094-106. DOI: 10.1016/j.jpainsymman.2012.05.011
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evidencia a expansão desses atendimentos no mundo, entretanto, no ano de 2011, apenas 136 dos 234 países (58%) tinham, pelo menos, um serviço de cuidados paliativos.

No Brasil, o mapeamento realizado pela Associação Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) 33. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Panorama dos cuidados paliativos no Brasil [Internet]. Curitiba: ANCP; 2018 [acesso 24 jan 2021]. Disponível: https://bit.ly/2JrVAyA
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aponta o aumento da quantidade de estabelecimentos que ofertam esses serviços no país. Segundo essa pesquisa, até o mês de agosto de 2018, existiam 177 serviços de cuidados paliativos. Destes, apenas 21% atendiam o público pediátrico.

Esse estudo evidenciou também que menos de 10% dos hospitais brasileiros dispõem de uma equipe de cuidados paliativos. Assim, essa realidade interfere negativamente no manejo dos usuários que estão em condições potenciais de morte e sofrimento 33. Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Panorama dos cuidados paliativos no Brasil [Internet]. Curitiba: ANCP; 2018 [acesso 24 jan 2021]. Disponível: https://bit.ly/2JrVAyA
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.

No Hospital Infantil Albert Sabin (Hias) são realizadas, em média, 830 internações por mês 44. Hospital Infantil Albert Sabin. Institucional [Internet]. Fortaleza: Hias; 2015 [acesso 24 jan 2021]. Disponível: https://bit.ly/3lqjBx0
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. A instituição oferece tratamento em várias especialidades pediátricas, clínicas e cirúrgicas, sendo referência no diagnóstico de doenças raras e DCC. Desde 2017, conta com o suporte de um serviço de cuidados paliativos pediátricos (CPP).

A equipe que compõe o serviço de CPP do Hias tem caráter consultivo e volante. Ela oferta retaguarda assistencial e suporte técnico-pedagógico nas diversas unidades de internação do hospital, exceto na oncologia, pois existe uma equipe de cuidados paliativos específica para essa especialidade na instituição.

Trata-se de uma equipe multidisciplinar mínima 55. Castilho RK, Pinto CS, Silva VCS, editores. Manual de cuidados paliativos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 2021. , composta por médico paliativista, enfermeiro, psicólogo e assistente social, que é acionada conforme a percepção do médico assistente por meio de solicitação de parecer. Esse arranjo organizacional permite estabelecer o cuidado compartilhado entre as equipes assistenciais de referência, aliando a atenção às complexas necessidades do paciente e de seus familiares.

Vale ressaltar que a equipe consultora do serviço de CPP não assume a coordenação dos cuidados. Ela atua como um grupo de suporte que orienta condutas paliativas. O plano de cuidado terapêutico é discutido e elaborado por meio da conferência familiar, uma ferramenta de abordagem sistêmica mais sofisticada de manejo comunicacional e envolvimento com a família.

A vivência enquanto enfermeiro residente em pediatria nesse cenário permitiu reconhecer a equipe de CPP como uma potente disseminadora da abordagem dos cuidados paliativos, que está em constante contato com as equipes assistenciais de várias unidades do hospital. Apesar disso, percebe-se que ainda existem dificuldades em trabalhar com equipes não sensibilizadas a essa perspectiva e que é preciso mais tempo para essa adaptação.

Levando em consideração a necessidade de potencializar o cuidado às crianças por meio dos cuidados paliativos, verificou-se que na literatura do campo da pediatria o tema foi melhor explorado a partir do início do século XXI, apresentando maior quantidade de pesquisas relacionadas à abordagem da assistência paliativa a crianças com câncer.

Em contraste, são poucos os estudos sobre a abordagem paliativa em doenças pediátricas não oncológicas. Nesse sentido, a ampliação do conhecimento acerca de características clínicas e epidemiológicas de crianças em cuidados paliativos não oncológicos pode potencializar o cuidado a esse público, favorecendo a elaboração de estratégias que visem à atenção integral a esses indivíduos.

Objetivo

Analisar o perfil clínico-epidemiológico de crianças acompanhadas por um serviço de cuidados paliativos de um hospital pediátrico de referência na rede pública no estado do Ceará.

Método

Desenho, período e local do estudo

Trata-se de um estudo de coorte retrospectivo, com delineamento quantitativo, do tipo série de casos, guiado pela ferramenta Strengthening the reporting of observational studies in epidemiology (Strobe) 66. von Elm E, Altman DG, Egger M, Pocock SJ, Gøtzsche PC, Vandenbroucke JP. Strengthening the reporting of observational studies in epidemiology (STROBE) statement: guidelines for reporting observational studies. Ann Intern Med [Internet]. 2007 [acesso 24 jan 2021];147(8):573-7. DOI: 10.7326/0003-4819-147-8-200710160-00010
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. A pesquisa foi desenvolvida no serviço de cuidados paliativos pediátricos do Hias, instituição de referência na rede estadual de saúde do Ceará, no período de agosto de 2020 a fevereiro de 2021.

População, critérios de inclusão e exclusão

A população do estudo foi composta por 56 crianças com idade até 2 anos, 11 meses e 29 dias, admitidas nos CPP entre os anos de 2018 e 2019. Como critério de inclusão era necessário que tivesse sido realizada uma conferência familiar com a presença dos parentes da criança, da equipe assistencial de referência e da equipe do serviço de CPP. Foram excluídas da pesquisa crianças com diagnóstico de câncer por não fazerem parte do público-alvo.

Protocolo do estudo

A coleta de dados foi feita por meio de um instrumento elaborado pelo autor para extrair dados clínicos (incluindo informações obstétricas, parto e pós-parto), epidemiológicos e sociodemográficos. Na primeira etapa, foram avaliadas as fichas de solicitação de inclusão nos CPP, observando os critérios de inclusão e exclusão e os dados referentes ao instrumento. Na segunda etapa, foram analisados os prontuários de todos os pacientes com critério de elegibilidade da pesquisa.

Análise dos resultados e estatística

Os dados coletados foram digitados e armazenados no programa Microsoft Office Excel, versão 2010, e analisados no software Statistical Package for Social Sciences (SPSS), considerando a classificação da Association for Children with life Threatening Conditions and their Families (ACT). As condições elegíveis para CPP foram classificadas em quatro grupos, como apresentado no Quadro 177. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Medicina da Dor e Cuidados Paliativos. Cuidados paliativos pediátricos: o que são e qual a sua importância? Cuidando da criança em todos os momentos [Internet]. Rio de Janeiro: SBP; 2017 [acesso 24 jan 2021]. p. 10. Disponível: https://bit.ly/3JPRPDF
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.

Quadro 1
Condições elegíveis para cuidados paliativos em pediatria (Fortaleza/CE, Brasil, 2021)

Além disso, foi aplicado o teste qui-quadrado de Pearson em variáveis dicotômicas, considerando como significativo p menor ou igual a 0,05 e índice de confiança de 99%.

Resultados

Os resultados serão apresentados em tabelas que abordam os dados sociodemográficos e clínico-epidemiológicos, permitindo visualizar mais claramente o perfil dos pacientes em cuidados paliativos pediátricos.

Os dados apresentados na Tabela 1 apontam uma discreta superioridade do sexo feminino (51,8%) e predomínio de crianças na faixa etária de lactentes (76,8%). Com relação à procedência, observou-se que a maior parte dos pacientes era oriunda de municípios fora da capital e região metropolitana de Fortaleza (51,9%).

Tabela 1
. Dados sociodemográficos e características de crianças acompanhadas em um serviço de cuidados paliativos pediátricos (Fortaleza/CE, Brasil, 2021)

As doenças mais prevalentes nessa faixa etária, de forma cumulativa – ou seja, que poderiam se manifestar aliadas a outro tipo de doença –, foram as do sistema nervoso (53,6%), seguidas das malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas (48,2%) e das doenças do aparelho circulatório (32,1%). Nesse sentido, destaca-se que 76,8% das crianças com doenças do aparelho circulatório tinham algum tipo de cardiopatia congênita.

Clinicamente, 58,9% das crianças necessitavam de algum suporte respiratório, como máscara/cateter de oxigênio, ventilação não invasiva ou ventilação mecânica invasiva, enquanto 48,2% precisavam de sonda gástrica/enteral ou gastrostomia para alimentação.

Quanto às internações, 48,2% foram internadas uma única vez, 19,6 % tiveram duas internações e 32,1% apresentaram mais de três internações. O número de admissões na UTI evidenciou que 69,6% da amostra passou pelo menos uma vez por essa unidade.

A Tabela 2 mostra os dados obstétricos e de parto das crianças acompanhadas em CPP. As mães tinham idade entre 15 e 35 anos (77,5%) e realizaram entre uma e seis consultas de pré-natal (56,8%). Com relação ao parto, observa-se que a maioria das crianças nasceu de cesariana (56,3%), a termo (61,7%), com peso normal (65,2%) e boa vitalidade (67,5%).

Tabela 2
Características obstétricas, de parto e pós-parto de crianças acompanhadas em um serviço de cuidados paliativos pediátricos (Fortaleza/CE, Brasil, 2021)

A Tabela 3 apresenta os dados relacionados ao perfil de cuidados paliativos pediátricos. Nela, identifica-se que a maioria das crianças tinha condições incapacitantes graves e não progressivas (58,9%) e estava em cuidados paliativos continuados (71,4%). As unidades de terapia intensiva pediátrica e neonatal foram os setores que mais solicitaram o parecer da comissão de CPP (60,7%). Observou-se que 89,3% das crianças tiveram apenas uma conferência familiar, com participação do médico assistente em 46,7% das ocasiões, da mãe em 94,6% e do pai em 55,4%. Evidenciou-se pouca participação de outras categorias profissionais (1,7%). Quanto ao desfecho, a maioria das crianças foi a óbito (58,9%) e 41,1% tiveram alta/transferência hospitalar.

Tabela 3
Características quanto aos cuidados paliativos pediátricos em um serviço de cuidados paliativos pediátricos (Fortaleza/CE, Brasil, 2021)

A Tabela 4 apresenta a associação entre óbito e algumas variáveis clínicas e quanto aos CPP. Houve associação significativa entre o desfecho estudado e as seguintes variáveis: doenças do aparelho circulatório, sistema nervoso, uso de dispositivo respiratório e ventilação mecânica, setor solicitante e tipos de cuidados paliativos. Não foi evidenciada associação significativa entre as demais variáveis estudadas.

Tabela 4
Associação entre variáveis clínicas e de cuidados paliativos em relação ao desfecho óbito (Fortaleza/CE, Brasil, 2021)

Discussão

Historicamente, os cuidados paliativos têm sido associados a pacientes em fase terminal, geralmente acometidos por doenças neoplásicas. Na pediatria, apesar de a maioria das publicações se concentrar em crianças e adolescentes com câncer, esse conceito se amplia para outras condições 88. Souza TCF, Correa AJS Jr, Santana ME, Carvalho JN. Cuidados paliativos pediátricos: análise de estudos de enfermagem. Rev Enferm UFPE Online [Internet]. 2018 [acesso 24 jan 2021];12(5):1409-21. DOI: 10.5205/1981-8963-v12i5a231304p1409-1421-2018 .

A dificuldade no entendimento acerca dos cuidados paliativos, ou mesmo a obstinação terapêutica, tem impactado a qualidade de vida de crianças e adolescentes em todo o mundo. Segundo Irina S. Tirado-Perez 99. Tirado-Perez IS, Zarate-Vergara AC. Classificación de la Association for Children’s Palliative Care (ACT) en una institución pediátrica de referencia en el Caribe colombiano. Rev Salud Pública [Internet]. 2018 [acesso 24 jan 2021];20(3):378-83. DOI: 10.15446/rsap.V20n3.6079
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, poucas crianças com doenças incuráveis têm acesso aos serviços de cuidados paliativos, levando muitas a viver sem alívio de sintomas, em condições inadequadas, longe do contato familiar e em um ambiente hospitalar até o momento do óbito.

Os dados apresentados neste estudo apontam que a maioria das crianças acompanhadas pelo serviço de CPP do Hias têm condições incapacitantes graves e não progressivas e estão em conformidade com os critérios para receberem cuidados paliativos concomitantes aos tratamentos da doença. Evidenciou-se que as doenças do sistema nervoso, malformações congênitas, anomalias cromossômicas e doenças do aparelho circulatório, como as cardiopatias congênitas, também são agravos elegíveis de receberem a paliação. Nesse sentido, houve associação significativa ( p =0,011) entre a presença de doenças do aparelho circulatório e o desfecho óbito.

Nessa perspectiva, apesar de não ter evidenciado associação estatística, as malformações congênitas prefiguram uma das principais causas de mortalidade em crianças de até 1 ano de idade. Entre as malformações, a cardiopatia congênita é a mais frequente, sendo a segunda causa de morte em até 30 dias de vida 1010. Soares AM. Mortalidade em doenças cardíacas congênitas no Brasil: o que sabemos? Arq Bras Cardiol [Internet]. 2020 [acesso 24 jan 2021];115(6):1174-5. DOI: 10.36660/abc.20200589
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. Embora seja uma malformação, neste estudo consideraram-se as cardiopatias congênitas como doenças do aparelho circulatório, o que pode explicar a associação significativa.

O perfil de pré-natal e parto mostrou que 75,6% das mães não estavam na faixa de risco gestacional, tinham realizado entre uma e seis consultas de pré-natal e tiveram seus filhos em idade gestacional a termo e com peso normal. Esses dados apontam que, além das condições obstétricas, as doenças passíveis de CPP também são reflexos dos avanços terapêuticos ocorridos a partir da segunda metade do século XX. Melhorias tecnológicas têm possibilitado maior expectativa de vida e, por conseguinte, aumento na prevalência de doenças crônicas pediátricas 1111. Pinho AAA, Nascimento IRC, Ramos IWS, Alencar VO. Repercussões dos cuidados paliativos pediátricos: revisão integrativa. Rev bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 24 jan 2021];28(4):710-7. DOI: 10.1590/1983-80422020284435
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, 1212. Passone CGB, Grisi SJ, Farhat SC, Manna TD, Pastorino AC, Alveno RA et al. Complexidade da doença crônica pediátrica: estudo transversal com 16237 pacientes seguidos por múltiplas especialidades médicas. Rev Paul Pediatr [Internet]. 2020 [acesso 24 jan 2021];38:1-8. DOI: 10.1590/1984-0462/2020/38/2018101
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.

Neste estudo, 58,9% das crianças necessitavam de algum suporte respiratório e/ou de dispositivo para nutrição, como a gastrostomia. A tecnologia na saúde tem como principal função suprir os limites e as dependências da criança, colaborando para manter o equilíbrio das funções corporais 1313. Azevedo CS, Pfeil NV. No fio da navalha: a dimensão intersubjetiva do cuidado aos bebês com condições crônicas complexas. Physis [Internet]. 2019 [acesso 12 jul 2021];29(4):1-17. DOI: 10.1590/S0103-73312019290406
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. Nessa perspectiva, compreende-se que o grupo de condições crônicas complexas apresenta maior dependência de tecnologias e uso de múltiplos medicamentos e tratamentos. Este estudo evidenciou associação significativa entre o uso de dispositivo respiratório ( p =0,002) – como a ventilação mecânica invasiva ( p =0,026) – e o desfecho óbito, revelando que esses pacientes, por seu nível de gravidade e dependência, têm maior risco de morte.

Além disso, as internações podem ocorrer de forma prolongada e frequente nesse grupo, sendo comum acontecer admissões em unidades de terapia intensiva pediátrica (Utip). Nesse sentido, os dados desta pesquisa revelam que 32,1% das crianças avaliadas passaram por mais de três internações hospitalares.

Destaca-se que 60,7% dos pedidos de suporte dos serviços de cuidados paliativos partiram da Utip. Essa constatação pode apontar uma solicitação tardia de suporte dos cuidados paliativos junto ao paciente, reflexo de um equivocado entendimento de muitos profissionais de saúde sobre o início dessa prática, pois eles acreditam que a paliação deve iniciar apenas quando o paciente está em processo ativo de morte. Tal fato foi evidenciado pela associação significativa entre solicitação do parecer partindo da Utip e o desfecho óbito, reflexo da maior gravidade e do risco iminente de morte desses pacientes.

Vale ressaltar que a literatura vigente indica a inclusão nos cuidados paliativos a partir do diagnóstico de uma doença limitante ou ameaçadora da vida 77. Sociedade Brasileira de Pediatria. Departamento Científico de Medicina da Dor e Cuidados Paliativos. Cuidados paliativos pediátricos: o que são e qual a sua importância? Cuidando da criança em todos os momentos [Internet]. Rio de Janeiro: SBP; 2017 [acesso 24 jan 2021]. p. 10. Disponível: https://bit.ly/3JPRPDF
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. Essa medida auxiliaria na aceitação e na adaptação da doença por parte do paciente e de seus familiares, impactando sua qualidade de vida.

Uma das estratégias para implementar esses cuidados é a realização da conferência familiar. Neste estudo, 89,3% das crianças tiveram pelo menos uma conferência familiar. Essa ferramenta possibilita o contato da equipe de cuidados paliativos com a família e o paciente, além de ser um momento para discutir a doença, a resposta ao tratamento, os planos e as perspectivas e para compartilhar anseios, preocupações e dúvidas 1414. Silva RS, Trindade GSS, Paixão GPN, Silva MJP. Conferência familiar em cuidados paliativos: análise de conceito. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018 [acesso 24 jan 2021];71(1):218-26. DOI: 10.1590/0034-7167-2016-0055
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.

A conferência familiar contribui para a elaboração de um plano terapêutico mais democrático, que favoreça a adesão ao cuidado e o protagonismo da família, levando em consideração os desejos do paciente. Além disso, melhora a relação terapêutica/de confiança entre a equipe assistencial, a família e o paciente.

Foi possível observar que o médico assistente não compareceu a 53,6% das conferências familiares, estando presente apenas o médico paliativista, o que denota relativa adesão aos cuidados paliativos e pouca compreensão por parte dos profissionais da saúde sobre a importância e o papel central dos CPP nesses momentos.

Identificou-se baixa participação de trabalhadores de outras categorias assistenciais na conferência familiar. Tal fato pode estar associado à sobrecarga de trabalho, o que desfavorece a presença desses profissionais ou mesmo sua sensibilização quanto ao assunto. Nesse sentido, ressalta-se que as decisões a respeito dos cuidados paliativos devem envolver e reconhecer que todos os interlocutores são importantes, incluindo nesse escopo a equipe multiprofissional e a família, e não somente o médico 1515. Troncoso MP, Romero BP, Schnake MC. Reflexão bioética no cuidado da criança em estado terminal. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 24 jan 2021];28(2):281-7. DOI: 10.1590/1983-80422020282390
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.

Com relação à participação familiar, observou-se presença expressiva da mãe. Isso denota a importância das mulheres no cuidado durante o processo saúde-doença da criança. Entretanto, também revela a sobrecarga assumida por elas, visto que, além de mães, exercem os papéis concomitantes de esposas, trabalhadoras, filhas, donas de casa etc.

Ainda, o processo de hospitalização de um(a) filho(a) desorganiza o cotidiano familiar e o bem-estar físico e emocional das mães, se manifestando por meio de sentimentos como insegurança, medo e tristeza 1616. Lima RM, Gomes FMA, Aguiar FAR, Santos EB Jr, Dourado JVL, Ferreira AR Jr. Experiências de mães durante a internação hospitalar de seus filhos. Rev Fund Care Online [Internet]. 2019 [acesso 12 jul 2021];11(5):1286-92. DOI: 10.9789/2175-5361.2019.v11i5.1286-1292
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.

Diante disso, ressalta-se a importância de incluir toda a família nesse processo, visto que nem sempre a criança tem o desenvolvimento cognitivo necessário para entender sua condição de saúde. Além disso, para que o processo de CPP ocorra de forma efetiva, faz-se necessária a presença de uma rede de apoio familiar, forte, interligada e sensibilizada quanto ao seu papel.

Limitações do estudo

As principais limitações desta pesquisa são o tamanho amostral e a dificuldade de obter informações em prontuários, visto que muitos dados não foram localizados ou estavam superficialmente registrados. Recomendam-se estudos futuros que acompanhem de forma prospectiva os pacientes sob cuidados paliativos, com o objetivo de obter dados não contemplados neste estudo.

Contribuições para a área

A pesquisa favorece a ampliação do conhecimento sobre crianças tratadas com cuidados paliativos, cujo diagnóstico de base não é o câncer, colaborando, dessa forma, para uma prática que considere as especificidades desse público. Além disso, poderá subsidiar estratégias que visem à promoção da qualidade de vida para esses indivíduos.

Considerações finais

Dado o exposto, vê-se que os CPP antes associados à terminalidade de vida têm ampliado seu significado e escopo. Nesse sentido, este estudo revelou predomínio das condições incapacitantes graves e não progressivas, sinalizando os impactos decorrentes dos avanços na área da saúde. Tal realidade tem permitido a sobrevida de crianças e adolescentes.

Paralelamente a essa situação, a oferta dos serviços de CPP tem aumentado, embora ainda de forma não expressiva. A capacitação dos profissionais de saúde nessa área é essencial, visto que eles são os responsáveis pelos cuidados em saúde ao binômio criança/família.

O desfecho óbito apresentou associação significativa com as doenças do aparelho circulatório, sistema nervoso, uso de dispositivo respiratório e ventilação mecânica, solicitação do parecer do serviço de CPP em Utip e cuidados paliativos exclusivos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2022
  • Revisado
    24 Jan 2023
  • Aceito
    2 Fev 2023
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