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A representação dos cuidados paliativos como ars moriendi moderna

Resumo

Nos tempos medievais, o surgimento de uma doença era quase equivalente a enfrentar a morte, de modo que a família e a igreja iniciavam a assistência adequada. A assistência aos doentes e moribundos era uma parte essencial da doutrina cristã. Com esse modelo de ars moriendi, os pacientes e seus familiares tinham a oportunidade de compartilhar suas necessidades espirituais e estreitar as relações na terminalidade da vida, sendo, portanto, uma forma de cuidar dos doentes terminais. Atualmente, podemos aplicar esse tipo de modelo ao que conhecemos como cuidados paliativos, que se referem aos cuidados promovidos na terminalidade da vida, e podemos equipará-lo a ars moriendi. Este estudo busca compreender as semelhanças entre ambos para aproximar diferentes formas de entender a morte.

Palavras-chave
Morte; Cuidados paliativos; História; Humanismo

Resumen

En la época medieval la aparición de la enfermedad era casi equivalente a enfrentarse a la muerte, de manera que la familia y la iglesia iniciaban la conveniente ayuda asistencial. El cuidado de los enfermos, y de los moribundos, era parte esencial de la doctrina cristiana. Con este modelo del ars moriendi, los pacientes y sus seres queridos tenían la oportunidad de compartir sus necesidades espirituales y profundizar en las relaciones al final de la vida, por lo tanto, era una forma de cuidar de los enfermos al final de la vida. En estos días podemos trasladar este tipo de modelo a los que conocemos actualmente como cuidados paliativos, referentes del cuidado de los enfermos al final de la vida, en que podemos colocar en el estudio al mismo nivel del ars moriendi. Este estudio trata plasmar las similitudes de ambos con el fin de acercar formas distintas de entender la muerte.

Palabras clave
Muerte; Cuidados paliativos; Historia; Humanismo

Abstract

In the Middle Ages, the onset of an illness was almost similar to facing death, so relatives and the Catholic church initiated the appropriate care. Caring for the ill and dying was an essential part of the Christian doctrine. By following this model of ars moriendi, patients and their loved ones had the opportunity to share their spiritual needs and deepen relationships at the end of life. A way of caring for the ill at the end of life. Nowadays, palliative care can be understood as a similar to this model. Palliative care refers to end-of-life care, where we can place the ars moriendi on the same level in the study. This study attempts to capture the similarities between the two models in order to bring together different ways of understanding death.

Keywords
Death; Palliative care; History; Humanism

Marco histórico

A Ars moriendi são compêndios escritos no século XV para promover os cuidados tradicionais que deveriam ser prestados a um moribundo. A importância dessa assistência se devia à crença cristã de que, no momento da agonia, o demônio se aproveitava da fraqueza do sofredor para atormentá-lo com as últimas tentações, motivando a condenação de sua alma. No entanto, nessa luta final entre o bem e o mal, do sagrado e do divino com a maldade, o homem não está sozinho, pois os anjos e os santos, invocados pelas orações daqueles que o acompanham, podem ajudá-lo a superar essas tentações 11. Haindl AL. Ars bene moriendi: el arte de la buena muerte. Revista Chilena de Estudios Medievales [Internet]. 2013 [acesso 31 ago 2023];(3):89-108. Disponível: https://bit.ly/3Rcdjgp
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A Dança geral da morte e a Ars moriendi seriam dois esforços voltados para a tomada de consciência sobre a própria morte, embora apresentados com ênfases muito diferentes, sem que cheguem a ser manifestações opostas. O medo da morte ou aquele gerado pela representação da morte tem sido uma constante na pastoral da Igreja Católica. Ao longo da história, essa manipulação religiosa tem sido mais ou menos intensa de acordo com os tempos, e foi durante as crises que essa manobra espiritual foi mais acentuada 22. Pascua Sánchez MJ. La muerte y sus discursos en la España del antiguo régimen. Trocadero [Internet]. 2011 [acesso 31 ago 2023];1(8-9):149-74. DOI: 10.25267/Trocadero.1997.i8.07
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Tal como nos outros países europeus, a Espanha também conheceu a Ars moriendi tanto em textos castelhanos quanto catalães. A versão mais antiga, publicada em castelhano, foi impressa por Hurus e editada em Saragoça entre 1479 e 1484; enquanto a edição catalã do Art de be morir, também impressa pelo citado Hurus e em Saragoça, só apareceu em 1493 33. Cantarellas C. La versión española del "Ars Moriendi". Traza y Baza: Cuadernos Hispanos de Simbología, Arte y Literatura [Internet]. 1973 [acesso 31 ago 2023];(2):97-105. Disponível: https://bit.ly/3RcdTuB
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Embora não esteja claro quem foi o autor, não há dúvida de que Jean Gerson foi a principal inspiração por meio de sua obra Opusculum tripartitum. A composição, conhecida pelo nome Tractatus ou speculum artis bene moriendi 44. Ruiz García E. El Ars moriendi: una preparación para el tránsito [Internet]. Madrid: Universidad Complutense; 2011 [acesso 31 ago 2023]. p. 314-44. Disponível: https://bit.ly/3R3aeiI
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, alcançou uma enorme difusão. Era composta por seis capítulos nos quais se abordavam as seguintes questões:

  1. Elogio da morte.

  2. Tentações que assaltam os moribundos e o modo de superá-las.

  3. Perguntas que devem ser feitas ao doente para reafirmar sua fé e conseguir o arrependimento por seus pecados.

  4. Necessidade de imitar a vida de Cristo.

  5. Comportamento que deve ser adotado pelos leigos que acompanham o moribundo: apresentação de imagens sacras; exortação para receber os últimos sacramentos; e incitação ao interessado à concessão de um testamento.

  6. Recitação de orações pelos presentes a favor do moribundo.

A boa recepção desse tratado fez com que fosse disponibilizado aos fiéis um exemplar da obra resumido em seus elementos essenciais, principalmente a partir do segundo capítulo da composição original. Assim nasceu a Ars moriendi (A arte de morrer bem).

O consenso geral é o de que o texto foi escrito por um membro das ordens mendicantes, provavelmente um dominicano, e foi por meio deles que o texto se espalhou tão rapidamente por toda a Europa. O texto foi escrito originalmente em latim, e as traduções para as diversas línguas vernáculas surgiram posteriormente. A Ars moriendi aparece em quase todas as línguas europeias importantes 55. Campbell J. "The Ars Moriendi": an examination, translation, and collation of the manuscripts of the shorter Latin version [dissertação] [Internet]. Ottawa: University of Ottawa; 1995 [acesso 31 ago 2023]. Disponível; https://ruor.uottawa.ca/handle/10393/10313
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Por outro lado, não há dúvida de que, ao longo da história, o ambiente social e de saúde que rodeia os moribundos mudou, sendo essencialmente transformado pelos avanços técnicos e pelas novas pesquisas sobre o fim da vida. Essa perspectiva que relaciona a Ars moriendi aos cuidados paliativos tem sido uma constante no estudo do autor 66. Yagüe Sánchez JM. Claves históricas de la muerte: del ars moriendi a los cuidados paliativos. ResearchGate [Internet]. 2019 [acesso 31 ago 2023]. DOI: 10.13140/RG.2.2.26751.66724
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O artigo de Alberto Tenenti intitulado Ars moriendi: algunas notas sobre el problema de la muerte a finales del siglo XV 77. Tenenti A. Ars moriendi: quelques notes sur le probleme de la mort à la fin du XVe siècle. Annales Histoire, Sciences Sociales [Internet]. 1951 [acesso 31 ago 2023];6(4):433-46. DOI: 10.3406/ahess.1951.1994
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enfatiza, claramente, que a morte e sua abrangência dependerão dos tempos em que estejam situadas. Para esse autor, a morte pode ser abordada em dois níveis que não se fundem: o nível étnico e o nível histórico. As cerimônias, os monumentos e o culto, tudo o que envolve a simbologia da morte, na maioria das vezes, tendem a fugir da história; mas sua linguagem está em harmonia com a linguagem das atividades humanas. Parece haver uma simbiose entre a simbologia e o ato humano. O autor realiza uma análise da origem não cristã ou popular das representações macabras em relação à iconografia que surgiu a partir de meados do século XIV às danças da morte e a outros tipos, como o “Trionfi” e a diferença com a Ars moriendi 88. Mateo Bretos L. La historiografía de la muerte: trayectoria y nuevos horizontes. Manuscrits [Internet]. 1994 [acesso 31 ago 2023];(12):321-56. Disponível: https://ddd.uab.cat/record/39485
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Como salienta Castelbón Fernández, o papel das confrarias é fundamental, pois o acompanhamento do moribundo para ajudá-lo a “morrer bem” era uma prática comum. Portanto, podemos apontar que a assistência do moribundo na agonia, bem como no sepultamento e após a morte, indica sua razão de ser. A morte se torna, assim, um ponto de referência para a solidariedade entre os vivos e também entre os vivos e os mortos 99. Castelbón Fernández EM. La muerte vivida. Indagación: Revista de Historia y Arte [Internet]. 1995 [acesso 31 ago 2023];(1):161-80. Disponível: https://bit.ly/47LMK8M
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. Basta indicar que as confrarias medievais evoluíram com os interesses da sociedade, na qual surgiram de forma espontânea.

O século XVIII foi o século de ouro para as confrarias de almas em toda a Espanha 1010. López Muñoz ML. Consideraciones sobre la muerte en las cofradías de ánimas de la ciudad de Granada. In: Álvarez Santaló LC, Vremades Griñán CM, editores. Mentalidad e ideología en el antiguo régimen [Internet]. Espanha: Universidad de Murcia; 1993 [acesso 31 ago 2023]. p. 293-304. DOI: 10.20350/digitalCSIC/11156
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. Hoje em dia, certas organizações religiosas independentes, como as Testemunhas de Jeová, mergulham nessa ideia, realizando o acompanhamento dos seus paroquianos tanto nos hospitais como nas residências dos moribundos. Trata-se de organizações que velam por eles e os acompanham em seus últimos dias, tal como acontece atualmente com diversas organizações religiosas ou laicas.

Ao longo da história, os países europeus tiveram grandes diferenças culturais, religiosas e políticas. Existem diferenças entre os países do Norte e do Sul a respeito disso; a ideia da morte também é um aspecto diferenciador. Ajudar os moribundos em seus últimos dias, juntamente com seus cuidadores, é parte fundamental do trabalho do pessoal de saúde nas unidades de oncologia e cuidados paliativos. E isso não vem sendo uma norma contemporânea, tem feito parte da cultura ocidental desde a época medieval em que era conhecida como ars moriendi (a arte de morrer bem). Para alguns autores, é necessário recuperar essa forma de ver a morte, para ultrapassar os limites da medicina paliativa, uma vez que esta lida com questões que desempenham um papel fundamental em todos os conteúdos de intervenção e tratamento médicos 1111. Leget C. Retrieving the ars moriendi tradition. Med Health Care Philos [Internet]. 2007 [acesso 31 ago 2023];10(3):313-19. DOI: 10.1007/s11019-006-9045-z
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As danças macabras são, juntamente com os triunfos da morte, uma expressão artístico-literária, surgida no século XIV, que representa a morte personificada. Mas, diferentemente dos triunfos, sua ação é mais personalizada porque não é um monstro ameaçador que prende suas vítimas indefesas. No entanto, as danças espanholas têm características próprias que as diferenciam das danças europeias. Assim o faz ver Martínez Gil, destacando o fato de que aquelas são mais moderadas, menos aterrorizantes e mais coerentes com a tradição cristã, além de promoverem uma atitude serena perante a morte.

Neste século, encontramos referências a ars moriendi em diversos artigos científicos; especialmente aqueles dedicados à disciplina da bioética. Como apontado pelo prof. Moratalla em seu artigo “Claves para una ética de la ancianidad” 1212. Moratalla AD. Claves para una ética de la ancianidad. Bioética y Debate [Internet]. 2000 [acesso 31 ago 2023];4(20): 1-4. Disponível: https://bit.ly/3RewGFJ
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, em que ele faz uma resenha para dar uma explicação a uma ars moriendi para viver em plena forma, destacando que uma ética do bem morrer não pode resignar-se perante a morte injustificada, prematura ou evitável, daí que a batalha médica contra essas formas de morrer não seja apenas um imperativo médico, mas uma exigência da ética social para a qual não podemos economizar recursos.

De fato, essa forma de chegar aos últimos dias do moribundo poderia provocar um benefício ou um desconforto, principalmente espiritual. Cabe se perguntar se essa ars é uma verdadeira arte de morrer. Añua Tejedor hesita e reflete sobre as conclusões de seu trabalho El Ars moriendi: ¿un manual del buen morir? 1313. Añua-Tejedor D. El Ars moriendi: ¿un manual del buen morir? Erebea: Revista de Humanidades y Ciencias Sociales [Internet]. 2017 [acesso 31 ago 2023];(7):225-52. Disponível: https://bit.ly/46ON0T8
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sobre se o fim da vida, em plena solidão, na ausência de familiares e cercado de clérigos ou representantes da Igreja; com a sensação de abandono e a impossibilidade de dialogar com as pessoas queridas, não nos leva a uma morte tranquila ou desejada — muito ao contrário do que deveria ser uma boa morte, em que o papel da família é proeminente, essencialmente para dizer o último adeus. As crenças religiosas podem ou não estar nos últimos dias, mas o acompanhamento deve ser inquestionável. Aprofundando-se no moribundo e em sua vivência, ela recorre a Elisabeth Kübler-Ross para significar a generalidade do ato de morrer, independentemente de religião, estrato social ou idade 1414. Kübler-Ross E. Sobre la muerte y los moribundos. Barcelona: Grijalbo; 1993..

No livro Dying into grace é apresentada uma experiência íntima e detalhada de uma pessoa em luto pela mãe e seu próprio papel como cuidadora, no qual podemos encontrar uma solução para velhos padrões e ações que superam feridas e perdas 1515. Valentine C. A contemporary ars moriendi? Death Studies [Internet]. 2009 [acesso 31 ago 2023];33(4):382-8. DOI: 10.1080/07481180802708506. Além disso, representa um ars moriendi ocidental contemporâneo, que fornece instruções detalhadas sobre a melhor forma de ajudar alguém a se preparar e levar sua vida a um final satisfatório.

Diferentemente da ars moriendi histórica, essa obra não visa garantir que a pessoa moribunda esteja suficientemente preparada para encontrar seu criador, mas sim ajudá-la a morrer, na medida do possível, à sua maneira 1515. Valentine C. A contemporary ars moriendi? Death Studies [Internet]. 2009 [acesso 31 ago 2023];33(4):382-8. DOI: 10.1080/07481180802708506 (ideia fundamental em cuidados paliativos). A teoria e a prática pastoral consistiam, entre outras coisas, em educar os fiéis numa arte tão especial como é a ars moriendi. O sacerdote era o educador. O médico ignorante, mesmo que seja virtuoso, mais prejudica o paciente do que beneficia. Assim, os confessores médicos espirituais devem ser sábios para ensinar e curar o pecador doente 1616. Partyka J. Ars moriendi en los manuales para confesores de los Siglos XVI-XVII. In: Cagnolati A, Hernández Huerta JL. La pedagogía ante la muerte: reflexiones e interpretaciones en perspectivas histórica y filosófica [Internet]. Valladolid: FahrenHouse; 2015 [acesso 31 ago 2023]. p. 147-51. Disponível: https://bit.ly/47ZAQIR
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Ars moriendi e cuidados paliativos

Nos últimos tempos, a ars moriendi tem sido usada no contexto do movimento Hospice e cuidados paliativos 1717. Fuchs M. Ars senescendi. In: Fuchs M, editor. Handbuch Alter und Altern [Internet]. Stuttgart: J.B. Metzler; 2021 [acesso 31 ago 2023]. p. 317-323. DOI: 10.1007/978-3-476-05352-7_34
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. A ars moriendi e os cuidados paliativos têm em comum a convicção de que uma morte boa e adequada depende não somente das circunstâncias, mas também, num certo sentido, de aprender a viver o fim. Ambas as ideias de uma boa morte concordam e estão em sintonia, trata-se de um processo em que cabe agarrar-se ao tempo para tomar certas decisões importantes antes do final da vida (transcendentais, entre outras), para dizer o último adeus, isto é, para resolver questões pessoais que estão pendentes.

Norbert Elias em seu ensaio La soledad de los moribundos 1818. Elias N. La soledad de los moribundos México. México: Fondo de Cultura Económica; 1982. nos oferece 16 cenas ou excursus breves nos quais se vislumbram formas culturais de vivenciar a morte que vão além do século XX. Não cabe a menor dúvida de que a solidão é um estado de alarme para os mais vulneráveis nesta sociedade, mas se acentua quando o fim da vida se aproxima. De fato, esse ensaio é uma análise do questionamento que o ser humano faz sobre sua própria existência e a extrema solidão que se vive face à morte na sociedade contemporânea 1919. Ponce de León OG. La soledad de los moribundos, Madrid y México DF, Fondo de Cultura Económica, 1987. Reis: Revista Españlola de Investigaciones Sociológicas [Internet]. 1991;(53):239-242. Disponível: https://bit.ly/3uL5R4v
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. Ninguém pode garantir que não morreremos na solidão.

Outros autores insistem na ideia de ter que morrer sozinho como uma característica de uma fase relativamente tardia do processo de individualização e de desenvolvimento da autoconsciência. Esse modo de vivenciar a morte na solidão coincide — pelo menos em alguns aspectos — com a criação desse espaço que chamamos de “o íntimo” 2020. León D. Saber sobre la muerte: en torno a La soledad de los moribundos de Norbert Elias. Telar: Revista del Instituto Interdisciplinario de Estiudios Latinoamericanos [Internet]. 2016 [acesso 31 ago 2023];11(16):105-16. Disponível: https://bit.ly/47H4nqk
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. Aprofundando-nos na solidão da morte, encontramos no estudo de Holly Nelson-Becker e Christina Victor 2121. Nelson-Becker H, Victor C. Dying alone and lonely dying: Media discourse and pandemic conditions. J Aging Stud. [Internet]. 2020 [acesso 31 ago 2023];55:100878. DOI: 10.1016/j.jaging.2020.100878
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que as respostas culturais e sociais à morte solitária são importantes para aliviar o fardo emocional de morrer sozinho, para ajudar as pessoas a se preparar para essa possibilidade e para integrar melhor a morte no curso da vida.

Para Elias, existem quatro formas de enfrentar o fato do fim da vida: usar a forma mais antiga, que é pensar que existe vida após a morte; reprimir a ideia da morte; pensar na morte dos outros, mas não na própria morte; e a última, que o autor colocou em prática nos últimos 40 anos de sua vida, encarar a morte de frente.

Para apresentar o estudo da morte pelos historiadores do século passado, cabe destacar aqueles que são movidos — especialmente — pela antropologia e pela historiografia francesa, em que se destacam os estudos sobre atitudes perante a morte em clássicos como Philippe Ariès e Michel Vovelle 2222. Ovalle Pastén D. Muerte y larga duración histórica: hacia el sentido de la muerte en el siglo XXI. Revista de Historia y Geografía [Internet]. 2018 [acesso 31 ago 2023];(38):213-28. DOI: 10.29344/07194145.38.1289
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. Atualmente, para proteger os desejos dos doentes no fim da vida, observa-se certo paralelismo com o protagonismo dos moribundos na chamada “morte domesticada”.

Definitivamente, com esse modelo, os pacientes e seus entes queridos têm a oportunidade de compartilhar suas necessidades espirituais e aprofundar-se nos relacionamentos em cuidados paliativos e de fim de vida. No estudo de Vermandere, com base em suas conclusões, resgato a ideia de que no modelo de ars moriendi os profissionais de saúde podem reunir informações sobre o contexto, a história de vida e as conexões significativas dos pacientes, o que lhes permite facilitar o cuidado voltado para o indivíduo 2323. Vermandere M. The ars moriendi model for spiritual assessment: a mixed-methods evaluation. Oncol Nurs Forum [Internet] 2015 [acesso 31 ago 2023];42(4):E294-301. DOI: 10.1188/15.ONF.294-301
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A abordagem dialética da ars moriendi pode oferecer tanto aos médicos quanto aos demais profissionais de saúde uma forma de refletir, de modo crítico e aprofundado, sobre a possível discordância entre sua ideia de morte e a variedade de “boas mortes” culturalmente valorizadas 2424. Thornton K, Phillips CB. Realizar la buena muerte: el ars moriendi medieval y los médicos contemporáneos. Med Humanit [Internet]. 2009 [acesso 31 ago 2023];35(2):94-7. DOI: 10.1136/jmh.2009.001693
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. O conceito majoritário de morrer em casa na presença da família, expresso na ars moriendi, continua fazendo parte de muitas noções modernas de boa morte; os cuidados paliativos são um elo nessa forma de compreender o fim da vida.

Para alguns autores, mais do que nunca, nos dias atuais, deveria ser reeditada uma ars moriendi contemporânea, como aponta o historiador Arthur E. Imhof em sua conferência sobre a arte de morrer, talvez os cuidados paliativos sejam o ajuste necessário para uma boa morte.

Considerações finais

Poderíamos comparar a ars moriendi, essa forma de morrer ou de querer morrer, com cuidados paliativos, com nuances, de origem moderna quando os ritos de dor e de morrer podem ter algum paralelismo com os paliativos atuais. Existe alguma semelhança entre a forma de tratar o sofrimento e essas duas formas de entender a transição para a morte? É evidente que os instrumentos para acompanhar o fim da vida mudaram. Do final do século XV até os dias atuais, o cuidado ao moribundo, em essência, acredito que não mudou excessivamente. Continuam existindo os acompanhamentos físicos e espirituais (religiosos) com diferentes componentes.

Diante da tanatofobia, que parece estar presente hoje em dia, os cuidados paliativos podem ser o elo necessário para promover um transe que alivie o caminho para a morte.

A expectativa de vida é um claro triunfo da medicina. A pesquisa, juntamente com as novas tecnologias, tem sido crucial para isso. No entanto, não podemos esquecer que vem acompanhada de certas doenças que aumentam o sofrimento no fim da vida.

Referencias

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2023
  • Revisado
    31 Ago 2023
  • Aceito
    13 Set 2023
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