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Sigilo profissional na relação médico-paciente: conhecimento de estudantes de medicina

Resumo

A relação entre médico e paciente deve se estabelecer conforme parâmetros que garantam autonomia e liberdade a ambos. Entre tais parâmetros está o sigilo, que representa um direito essencial do paciente e uma obrigação do médico. Este estudo avalia o conhecimento de estudantes de medicina sobre o sigilo profissional mediante aplicação de um questionário a 409 alunos do primeiro ao quarto ano da graduação. Comparando a mediana de correspondência com as respostas esperadas, observou-se que o primeiro ano obteve notas menores nas situações-problemas. Concluiu-se que há diferença no grau de conhecimento entre os anos da graduação e que ele evolui no segundo ano, mantendo-se na mesma proporção até o quarto ano.

Confidencialidade; Relações médico-paciente; Conhecimento; Estudantes de medicina; Ética médica; Educação médica

Abstract

Physician-patient relations must follow parameters to ensure autonomy and liberty to both. One such parameter is confidentiality, recognized as a patient right and an obligation of physicians. Hence, this study evaluated student knowledge about medical confidentiality by applying a questionnaire to 409 medical undergraduates (first- to fourth-years). Comparing the median match to the expected answers revealed that first-years achieved the lowest scores on the problem-situations. Results show a clear difference in the degree of knowledge between years, increasing by the second year and maintained until the fourth year.

Confidentiality; Physician-patient relations; Knowledge; Students, medical; Ethics, medical; Education, medical

Resumen

La relación entre el médico y el paciente debe basarse en parámetros que garanticen la autonomía y la libertad a ambos. Entre estos parámetros se destaca el secreto profesional, que es un derecho esencial del paciente y una obligación del médico. Este estudio evaluó los conocimientos de los estudiantes de medicina sobre el secreto profesional mediante la aplicación de un cuestionario a 409 estudiantes de primer a cuarto año de la carrera. La comparación entre la mediana de correspondencia y las respuestas esperadas dio como resultado que el primer año obtuvo puntuaciones más bajas en las situaciones problemáticas. Se concluyó que existe una diferencia en el nivel de conocimientos entre los años del grado y que evoluciona en el segundo año, manteniéndose en la misma proporción hasta el cuarto.

Confidencialidad; Relaciones médico-paciente; Conocimiento; Estudiantes de medicina; Ética médica; Educación médica

A relação médico-paciente, por ser interpessoal, precisa de parâmetros que garantam autonomia e liberdade a ambos os atores 11. Lima SMFS, Silva SMM, Neves NMBC, Crisostomo LML. Avaliação do conhecimento de estudantes de medicina sobre sigilo médico. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 20 set 2023];28(1):98-110. DOI: 10.1590/1983-80422020281372
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. O sigilo médico é um aspecto relevante nessa relação, visto que o sucesso do tratamento está intimamente ligado à obtenção do máximo de informações possível da história do paciente e a confiança é um dos pilares para a sua obtenção 22. Lütz KT, Carvalho D, Bonamigo EL. Sigilo profissional: conhecimento de alunos de medicina e médicos. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 20 set 2023];27(3):471-81. DOI: 10.1590/1983-80422019273331
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. Segundo Loch 33. Loch JA. Confidencialidade: natureza, características e limitações no contexto da relação clínica. Bioética [Internet]. 2003 [acesso 20 set 2023];11(1):51-64. Disponível: https://bit.ly/3RE7zxe
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, na relação médico-paciente, a confidencialidade adquire os valores de direito e dever, pois, ao representar um direito essencial do paciente, configura a obrigação do médico em garanti-la.

No Juramento de Hipócrates , reproduzido até hoje no ato da graduação médica, consta a afirmação desse dever: àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto 44. Mendonça AC, Villar HCCE, Tsuji SR. O conhecimento dos estudantes da faculdade de medicina de Marília (Famema) sobre responsabilidade profissional e segredo médico. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2009 [acesso 20 set 2023];33(2):221-9. DOI: 10.1590/S0100-55022009000200009
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. Constata-se, então, que desde os primórdios do exercício da medicina, a observância desses aspectos e o direito ao sigilo devem ser garantidos ao paciente, como forma de lhe assegurar liberdade e autonomia.

Contudo, ainda que se presuma o bom senso dos médicos em suas atuações, isso por si só não é suficiente para garantir o sigilo: a normatização e constante fiscalização são imprescindíveis para assegurar a efetivação desse direito. Diante dessa necessidade, o Código Penal brasileiro, no art. 154, classifica como passível de penalização que o profissional revele, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem 55. Brasil. Ministério da Casa Civil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal Brasileiro. Diário Oficial da União [Internet]. Rio de Janeiro, p. 23911, 31 dez 1940 [acesso 20 set 2023]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3NnM4ya
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. O Código de Ética Médica (CEM), estabelecido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) 66. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 20 set 2023]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Rh5GoY
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para reger a atuação médica, incluiu um capítulo dedicado ao sigilo profissional. As infrações cometidas sobre ele devem causar sanções e penalidades ao infrator 66. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 20 set 2023]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Rh5GoY
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, com o respaldo da Constituição Federal brasileira 77. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 5 nov 1988 [acesso 20 set 2023]. Disponível: https://bit.ly/3rIYeYc
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O sigilo não é, contudo, concebido como absoluto, e existem situações específicas – caracterizadas por motivo justo, dever legal e/ou consentimento do paciente – em que sua quebra não configura infração. Nesses casos, manter sigilo implica prejudicar terceiros ou colocar pessoas em risco e, por esse motivo, ele não deve ser mantido 22. Lütz KT, Carvalho D, Bonamigo EL. Sigilo profissional: conhecimento de alunos de medicina e médicos. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 20 set 2023];27(3):471-81. DOI: 10.1590/1983-80422019273331
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É o caso, por exemplo, da notificação obrigatória de doenças transmissíveis e, ainda, do encaminhamento de informações sobre transplantes realizados, conforme a Portaria de Consolidação 4/2017, do Ministério da Saúde 88. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 4, de 28 de setembro de 2017. Consolidação das normas sobre os sistemas e os subsistemas do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 28 set 2017 [acesso 22 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3GB0GXx
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. O dever legal, nesses casos, é a quebra do sigilo, que deve ser feita após a obtenção de consentimento do paciente por escrito 66. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 20 set 2023]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Rh5GoY
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Nesse contexto, a caracterização de motivo justo pode ser subjetiva, o que demonstra a complexidade da questão e evidencia a necessidade de observar todos os aspectos éticos e morais para garantir uma assistência adequada ao paciente 33. Loch JA. Confidencialidade: natureza, características e limitações no contexto da relação clínica. Bioética [Internet]. 2003 [acesso 20 set 2023];11(1):51-64. Disponível: https://bit.ly/3RE7zxe
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. Segundo Hermann von Tisenhausen, conselheiro do CFM, a quebra do sigilo deve ser exceção, nunca regra 99. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Sigilo profissional. Informativos do Cremesp [Internet]. 1 set 2012 [acesso 22 abr 2021]. Disponível: https://bit.ly/3K36PMg
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. Mas pode haver dificuldade para estabelecer os limites de amplitude do que se considera exceção à norma 1010. Leite FBC. A relativização do sigilo profissional médico. Revista Eletrônica do TRT da 9ª Região [Internet]. 2023 [acesso 20 set 2023];3(25):24-33. Disponível: https://hdl.handle.net/20.500.12178/95155
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No contexto da pandemia de covid-19, em que o distanciamento social no combate à propagação do vírus modificou os hábitos da população com relação à procura presencial pelos serviços de saúde, a prática da telemedicina passou a ser mais frequente. O exercício da medicina por essas ferramentas também exige do médico atenção quanto ao sigilo e à confidencialidade, tendo em vista que é preciso garantir a proteção dos dados e informações do paciente, que se tornam sujeitos a perdas e vazamentos 1111. Rodrigues GSNA, Calil IGM, Silvestre GF. A telemedicina em tempos de covid-19 e a responsabilidade civil do médico e do hospital. In: Cabral HLTB, Silvestre GF, Gonçalves Neto A, organizadores. As relações jurídicas e a pandemia da covid-19. Campos dos Goytacazes: Encontrografia; 2020. p. 79-92. . Tais mudanças apenas reafirmam a atemporalidade do tema e a necessidade de dedicar-se ao seu estudo.

Diante da importância da manutenção do sigilo profissional na relação médico-paciente, em razão da subjetividade ensejada pela temática e da necessidade da ampliação do conhecimento de médicos sobre ela, realizou-se este estudo. Seu objetivo é avaliar o conhecimento dos estudantes de medicina do primeiro ao quarto anos da graduação sobre questões éticas intrínsecas à lida com sigilo, confidencialidade e sua quebra.

Método

Trata-se de estudo transversal, analítico-descritivo e de abordagem quantitativa realizado mediante aplicação de questionário on-line, adaptado de Sales-Peres e colaboradores 1212. Sales-Peres SHC, Sales-Peres A, Fantini AM, Freitas FDR, Oliveira MA, Silva OP, Chaguri RH. Sigilo profissional e valores éticos. RFO UPF [Internet]. 2010 [acesso 20 set 2023];13(1):7-13. DOI: 10.5335/rfo.v13i1.583
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e Lütz, Carvalho e Bonamigo 22. Lütz KT, Carvalho D, Bonamigo EL. Sigilo profissional: conhecimento de alunos de medicina e médicos. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 20 set 2023];27(3):471-81. DOI: 10.1590/1983-80422019273331
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, pela plataforma Google Forms. O questionário foi oferecido aos alunos de medicina da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), matriculados entre o primeiro e o quarto anos. A amostra final foi constituída por todas as respostas voluntárias de alunos, que concordaram com o termo de consentimento livre e esclarecido.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FMB-Ufba, observando as recomendações da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 1313. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 13 jun 2013 [acesso 20 set 2023]. Disponível: https://bit.ly/3mnoWSV
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, sobre ética em pesquisa. Os critérios de inclusão foram: ser estudante regularmente matriculado no curso de medicina da Ufba e estar cursando do primeiro ao quarto anos. Os critérios de exclusão foram: ser oriundo de outras escolas médicas, ainda que que estivesse cursando disciplinas na FMB por mobilidade acadêmica, ou não estar nos semestres pré-definidos.

A coleta de dados se deu pela divulgação do link do questionário nos grupos de WhatsApp das turmas envolvidas, no período de julho a setembro de 2021, ao longo de três tentativas de envio, com intervalo de 20 dias entre elas. O questionário continha duas partes: uma destinada à coleta de dados demográficos (como sexo, faixa etária, cor, semestre, estudo prévio do CEM e sigilo profissional), e outra com 12 situações-problemas com dilemas éticos referentes ao sigilo profissional. Nessa segunda parte, o estudante deveria escolher a alternativa que julgava expressar a postura ética a ser adotada, segundo o CEM.

As variáveis categóricas foram descritas como frequências e porcentagens, e a normalidade das variáveis contínuas foi aferida com o teste de Kolmogorov-Smirnov. As variáveis contínuas de distribuição normal foram descritas como média e desvio-padrão (DP), e as não normais como mediana e intervalo interquartil (IIQ).

Para a análise bivariada das variáveis não normais, utilizou-se o teste de Mann-Whitney e para a análise de variáveis não normais com variáveis categóricas com mais de duas categorias, foi utilizado o teste de Kruskal-Wallis. Foram considerados estatisticamente significantes valores de p <0,05, com intervalo de confiança de 95%. As análises foram feitas utilizando-se o programa estatístico SPSS versão 20.0.

Resultados

Caracterização sociodemográfica

No segundo semestre de 2021 (2021.2), 662 alunos estavam matriculados entre o primeiro e o oitavo semestres do curso de medicina da FMB-Ufba, dos quais 409 (61,8%) responderam ao questionário. Conforme a Tabela 1 , a maioria é do gênero feminino (50,6%), tem idade entre 21 e 25 anos (62,8%) e cor parda (49,6%). Estudantes de todos os semestres do primeiro ao quarto anos da graduação responderam ao questionário, com predominância daqueles pertencentes ao segundo ano (30,8%) e menor participação dos alunos do terceiro ano (17,3%).

Tabela 1
Características gerais da amostra de estudantes entre o 1º e 4º anos (2021.2)

Conhecimento sobre sigilo e confidencialidade

Com relação ao estudo prévio e conhecimento sobre sigilo médico, a maioria dos estudantes afirma que leu o CEM de forma parcial (74,6%), já assistiu a aulas sobre sigilo médico e confidencialidade durante a graduação (86,6%) e já foi orientado sobre sigilo médico durante a graduação (91,4%). A maioria também avalia como regular (43%) e suficiente (40,1%) o seu nível de conhecimento sobre a temática. O estudo da ética médica é considerado relevante para a formação médica por 99,8% dos participantes.

Entre as situações-problemas presentes no questionário da pesquisa, conforme pode ser visto na Tabela 2 , a situação 8 teve o maior percentual de acerto em todas as turmas, sendo respondida corretamente por 365 alunos (89,2%). A questão fazia referência a um paciente que revela ao psiquiatra que matará sua ex-namorada nos próximos dias, colocando o dilema sobre revelar ou não o fato às autoridades. Por outro lado, a situação-problema 1 – que dizia respeito à possibilidade de revelar à mãe de uma menor de idade que ela foi sozinha ao seu consultório e disse ser usuária de drogas pesadas – obteve o menor percentual de acerto (51,1%). A nota, em mediana, dos alunos do primeiro ano foi de 6,67 (intervalo interquartil – IIQ 5,83-8,33), e a nota dos alunos do segundo ao quarto anos foi semelhante, 7,50 (IIQ 6,67-8,33).

Tabela 2
Conhecimento sobre sigilo médico de acordo com ano do curso, e nota obtida no questionário

Na comparação das medianas do total de acertos dos estudantes de cada ano da graduação nas situações-problemas acerca do sigilo médico, foi feito o teste de Kruskal-Wallis e encontrado valor de p =0,001, o que mostra diferença estatisticamente significante no grau de conhecimento entre os anos. Em análise mais detalhada, por meio do teste de Mann-Whitney, comparou-se a mediana de cada ano da graduação par a par, revelando significância estatística apenas nas seguintes comparações: primeiro e segundo anos ( p =0,005), primeiro e terceiro anos ( p =0,006) e primeiro e quarto anos ( p =0,002), com associação do primeiro ano a notas menores em relação aos outros três.

Quando se compararam estudantes que tiveram aula prévia sobre sigilo com os que não tiveram, houve diferença estatisticamente significante da mediana da nota ( p <0,001), com associação a notas maiores do primeiro grupo. Na comparação entre os estudantes que em algum momento da graduação receberam orientação acadêmica prévia acerca do sigilo médico e os que não receberam, também houve diferença estatisticamente significante ( p <0,001), com associação à maior nota em mediana do primeiro grupo. Já em relação à leitura completa ou parcial do CEM, não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos, sendo as medianas de quem leu semelhantes às de quem não havia lido, conforme Tabela 3 .

Tabela 3
Comparação das notas de acordo com leitura prévia do CEM, aulas e orientação acadêmica prévias sobre sigilo médico

Discussão

A análise dos dados identificou diferença estatisticamente significante no grau de conhecimento entre os anos de graduação, de forma que o primeiro ano tem associação a notas menores nas situações-problemas quando comparado com os demais anos. A variação possibilita inferir que o grau de conhecimento acerca do sigilo médico evolui a partir do segundo ano. Esse resultado está em concordância com o estudo de Lima e colaboradores 11. Lima SMFS, Silva SMM, Neves NMBC, Crisostomo LML. Avaliação do conhecimento de estudantes de medicina sobre sigilo médico. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 20 set 2023];28(1):98-110. DOI: 10.1590/1983-80422020281372
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, que concluiu que estudantes em estágio mais avançado da formação têm entendimento melhor acerca do tema.

Contudo, não foi observada diferença significante no desempenho entre os estudantes do segundo, terceiro e quarto anos, embora se esperasse que o último grupo apresentaria desempenho maior. Esse resultado entra parcialmente em concordância com os estudos de Almeida e colaboradores 1414. Almeida AM, Bitencourt AGV, Neves NMBC, Neves FBCS, Lordelo MR, Lemos KM et al. Conhecimento e interesse em ética médica e bioética na graduação médica. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2008 [acesso 21 abr 2022];32(4):437-44. DOI: 10.1590/S0100-55022008000400005
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, Mendonça, Villar e Tsuji 44. Mendonça AC, Villar HCCE, Tsuji SR. O conhecimento dos estudantes da faculdade de medicina de Marília (Famema) sobre responsabilidade profissional e segredo médico. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2009 [acesso 20 set 2023];33(2):221-9. DOI: 10.1590/S0100-55022009000200009
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e Yamaki e colaboradores 1515. Yamaki VN, Teixeira RKC, Oliveira JPS, Yasojima EY, Silva JAC. Sigilo e confidencialidade na relação médico-paciente: conhecimento e opinião ética do estudante de medicina. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2014 [acesso 21 abr 2022];22(1):176-81. Disponível: https://bit.ly/3tcG6cN
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, em que o grau de conhecimento se apresentou o mesmo entre os estudantes de todos os semestres. O que pode explicar o resultado obtido no presente estudo é o fato de o segundo ano ser exatamente o momento em que as discussões teóricas específicas acerca do sigilo profissional são introduzidas nos componentes curriculares da FMB-Ufba 1616. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Medicina da Bahia. Matriz curricular do curso de medicina. Portal acadêmico [Internet]. 2009 [acesso 17 set 2020]. Disponível: https://bit.ly/41p4kgI
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.

Lütz, Carvalho e Bonamigo 22. Lütz KT, Carvalho D, Bonamigo EL. Sigilo profissional: conhecimento de alunos de medicina e médicos. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 20 set 2023];27(3):471-81. DOI: 10.1590/1983-80422019273331
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, em estudo semelhante, concluíram que os estudantes que já haviam tido aulas de ética durante a graduação tiveram desempenho melhor na resolução dos conflitos éticos simulados, em comparação com aqueles que não haviam tido. Esse resultado corrobora o encontrado neste estudo, com diferença estatisticamente significante na mesma comparação. Esse dado reforça a necessidade e importância de dedicar relevante carga horária curricular ao ensino da ética dentro da graduação.

Em seu estudo, Lima e colaboradores 11. Lima SMFS, Silva SMM, Neves NMBC, Crisostomo LML. Avaliação do conhecimento de estudantes de medicina sobre sigilo médico. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 20 set 2023];28(1):98-110. DOI: 10.1590/1983-80422020281372
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não obtiveram diferença estatisticamente significativa no grau de conhecimento de estudantes que leram o CEM quando comparados aos que não leram, o que também foi observado nesta pesquisa. Esse resultado pode se relacionar com a tese de que, apesar de importante, o ensino da ética não deve acontecer apenas vertical e teoricamente, mas também ser estimulado com metodologias ativas e diversas para gerar melhor percepção e mais interesse nos estudantes a respeito da temática 1717. Silva J, Leão HMC, Pereira ACAC. Ensino de bioética na graduação de medicina: relato de experiência. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2013 [acesso 22 abr 2022];21(2):338-43. Disponível: https://bit.ly/3uOdEhI
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.

Entre as 12 situações-problemas apresentadas aos estudantes, as duas com o menor percentual de acerto envolviam dilemas éticos na quebra de sigilo de paciente menor de idade. A primeira trazia o cenário em que uma menor foi sozinha ao consultório e, na anamnese, afirmou ser usuária de drogas ilegais, pedindo que o médico não contasse a seus pais. Nesse caso, a conduta correta a ser tomada pelo médico assistente seria revelar aos pais que ela é usuária de drogas, visto que a não revelação desse fato manteria a menor em situação de risco. Tal risco não é aceitável perante o CEM, logo, a quebra do sigilo deve se dar por motivo justo 66. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 20 set 2023]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Rh5GoY
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.

A segunda situação apresentava o caso de uma paciente menor de idade que passou por tratamento de urgência a cujo prontuário a mãe solicitava acesso. Santos, Santos e Santos 1818. Santos MFO, Santos TEO, Santos ALO. A confidencialidade médica na relação com o paciente adolescente: uma visão teórica. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2012 [acesso 17 set 2020];20(2):318-25. Disponível: https://bit.ly/3NoTdyu
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consideram que a confidencialidade no contexto da assistência à infância e adolescência é um grande desafio na atualidade devido às controvérsias éticas. Nesse sentido, é possível que, nas situações-problemas, os estudantes tenham considerado que a liberação das informações aos representantes legais violaria a intimidade das pacientes, ou ainda que elas teriam capacidade de discernimento em relação à própria saúde.

Entre os resultados, uma questão mostrou disparidade maior entre o percentual de acerto dos estudantes de anos iniciais em relação aos mais avançados. Na situação hipotética, uma adolescente revela ao médico que autoprovocou aborto e o dilema ético é revelar ou não o fato às autoridades públicas. Nessa questão, apenas 57,9% dos alunos do primeiro ano acertaram, contra 83,8% do quarto ano.

O assunto aborto geralmente é observado sob a ótica de opiniões individuais, o que pode justificar o percentual de acerto pequeno entre estudantes do primeiro ano, pois eles ainda não tiveram discussões éticas suficientes para deliberar corretamente sobre o tema. Podem, inclusive, estar influenciados por valores morais prévios, ao contrário dos alunos do quarto ano, que já adquiriram maturidade teórica em relação ao assunto. Nesse caso, o art. 73 do CEM determina que o médico não pode revelar segredo que exponha o paciente à processo penal, logo, não deve revelar às autoridades 66. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 179, 1 nov 2018 [acesso 20 set 2023]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Rh5GoY
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.

As situações-problemas que tiveram os maiores percentuais de acerto envolviam os dilemas de um paciente que conta ao psiquiatra que mataria a ex-namorada nos próximos dias e de um paciente diagnosticado com covid-19 que guarda segredo sobre o diagnóstico, recusando-se a se afastar do emprego. O alto percentual de acerto em ambas pode ser justificado pela fácil interpretação das questões, já que a não quebra do sigilo gera riscos iminentes e diretos à vida de terceiros, o que não é plausível dentro da prática médica. Portanto, o médico precisa comunicar os fatos às autoridades competentes, visto que deve sempre zelar pela saúde e a vida do ser humano.

Por incluir na amostra estudantes de medicina de apenas uma instituição, o estudo tem limitações. Nesse sentido, sugere-se a execução de novos trabalhos sobre sigilo profissional para confrontar o desempenho de alunos de diferentes escolas, comparando o impacto de suas metodologias de ensino. Outra limitação importante está associada ao instrumento aplicado para coleta de dados e a amostra por conveniência, com a possibilidade de ocorrência de vieses de seleção e/ou de informação.

Considerações finais

Os resultados do presente estudo permitem constatar que há diferença no grau de conhecimento de estudantes de medicina de diferentes semestres acerca do sigilo profissional, com evolução do conhecimento a partir do segundo ano da graduação e sua manutenção do segundo ao quarto anos. É possível concluir também que estudantes que tiveram aulas sobre sigilo médico e/ou foram orientados quanto ao sigilo profissional têm maior conhecimento em comparação com aqueles não passaram por tais processos.

Além disso, também é possível afirmar que há divergência no grau de conhecimento a depender da temática avaliada. Foi observada deficiência nas orientações sobre sigilo de pacientes de diferentes faixas etárias, sendo necessário, portanto, intensificar a abordagem do problema nos componentes curriculares. Nesse sentido, sugere-se que o tema “sigilo profissional” seja amplamente discutido de forma contínua e em diversos campos teóricos e práticos durante toda a graduação, inclusive no período do internato, para que se obtenha a consolidação do conhecimento e o discernimento correto sobre os dilemas que o estudante enfrentará ao se tornar médico.

Referências

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    Lütz KT, Carvalho D, Bonamigo EL. Sigilo profissional: conhecimento de alunos de medicina e médicos. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2019 [acesso 20 set 2023];27(3):471-81. DOI: 10.1590/1983-80422019273331
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Disponibilidade de dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    1 Fev 2023
  • Revisado
    13 Jul 2023
  • Aceito
    20 Set 2023
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