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Produções bioéticas brasileiras acerca do suicídio: revisão sistemática

Resumo

Esta revisão sistemática da literatura mapeou produções brasileiras com abordagens bioéticas do suicídio, a fim de contribuir para o debate sobre os conflitos éticos envolvidos no fenômeno do suicídio e colaborar para sua prevenção. Consultaram-se as bases de dados SciELO e Google Acadêmico e repositórios institucionais de programas de pós-graduação em bioética, acionando os descritores “suicídio”, “suicídio e bioética” e “suicídio e ética”. As vinte publicações que cumpriam os critérios de inclusão foram agrupadas e analisadas em três eixos: reflexões gerais em torno da estigmatização do ato suicida; dilemas morais acerca do suicídio e os princípios bioéticos; e análise ético-política do fenômeno do suicídio. Conclui-se que a produção que aborda essa temática é escassa, com poucas pessoas concentrando a maioria das pesquisas, o que surpreende, tendo em vista a relevância do fenômeno para a saúde pública e reflexões morais sobre o fim da vida.

Suicídio; Bioética; Revisão sistemática

Abstract

This systematic literature review mapped Brazilian academic production with bioethical approaches to suicide, aiming to contribute to the debate on the ethical conflicts involved in this phenomenon and to collaborate in its prevention. Bibliographical search was conducted on the SciELO and Google Scholar databases, as well as institutional databases of graduate programs in bioethics, using the descriptors “suicídio,” “suicídio e bioética” and “suicídio e ética.” Twenty publications met the inclusion criteria and were grouped and analyzed in three axes: general reflections on suicide stigmatization; moral dilemmas regarding suicide and bioethical principles; and ethical-political analysis of the phenomenon. The little research found on the subject is surprising given its relevance for public health and moral reflection on end-of-life.

Suicide; Bioethics; Systematic review

Resumen

Esta revisión sistemática de la literatura rastreó las producciones brasileñas con enfoques bioéticos sobre el suicidio, para tejer contribuciones al debate sobre los conflictos éticos involucrados en el fenómeno del suicidio y contribuir a su prevención. Se realizaron búsquedas en las bases de datos SciELO y Google Scholar, y en repositorios institucionales de programas de posgrado en bioética, utilizando los descriptores “suicidio”, “suicidio y bioética” y “suicidio y ética”. Veinte publicaciones cumplieron con los criterios de inclusión y se agruparon para análisis en tres ejes: reflexiones generales sobre el estigma del acto suicida; dilemas morales sobre el suicidio y los principios bioéticos; y análisis ético-políticos del fenómeno suicida. Se concluye que la producción sobre este tema es escasa, con pocas personas en la mayor parte de los estudios, lo cual es sorprendente dada la relevancia del fenómeno para la salud pública y las reflexiones morales sobre el final de la vida.

Suicidio; Bioética; Revisión sistemática

Para além de questões clássicas sobre o que se entende como direito de tirar a própria vida, o suicídio é um objeto bioético por diferentes impasses, conflitos e tensões morais, ontológicas, políticas e de saúde pública, podendo ser identificado como situação persistente e/ou emergente. No entanto, esse assunto apresenta produção peculiar no cenário brasileiro, especialmente se comparado com outros temas de fim de vida e outros modos de morrer, que ganham diferentes relevos teóricos e práticos no enfrentamento do fenômeno. De início, destaca-se que há uma (con)fusão entre os temas bioéticos de fim de vida, em especial eutanásia, suicídio assistido e suicídio, sendo pressuposto desta revisão diferenciar esses eventos.

Eutanásia tem origem nos termos gregos eu (bom/boa) e thánatos (morte), ou seja, significa “boa morte”, morte rápida e sem dor. Trata-se de procedimento realizado por outrem e, portanto, remete ao ato de tirar a vida a alguém, de modo a acabar com o seu sofrimento.

Por outro lado, suicídio assistido decorre de pedido, desejo ou ato de antecipação da morte em situação de adoecimento terminal ou incurável. Nesse procedimento, é o próprio sujeito que, além de decidir, põe fim a sua vida por meio da ingestão de fármacos letais. Normalmente a conduta ocorre com ajuda de outra pessoa, de forma ativa, em ato, ou mesmo de modo passivo, com encorajamento.

Ainda que o debate sobre eutanásia e suicídio assistido seja centrado na minimização do padecimento, assim como na dignidade e qualidade de vida e de morte, a interpretação dos direitos humanos e princípios bioéticos, como dignidade, direito à vida ou respeito à autonomia, não apresenta uniformidade. Dessa forma, é grande a variação legislativa mundial no que concerne a condições, condutas profissionais, protocolos e leis.

Em muitos países onde o suicídio assistido é legalizado, o sofrimento intolerável do doente e o grau de consciência para tomar essa decisão são condições essenciais. Ademais, sabe-se que poderes médicos, religiosos, morais e jurídicos são determinantes para apoiar ou reprovar a legalização da assistência médica à antecipação do fim de vida 11. Pereira LMA. Eutanásia e suicídio assistido: uma análise normativa comparada. Curitiba: Appris; 2018. . No Brasil essa antecipação é entendida como ilícita pelo Código Penal 22. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Rio de Janeiro, 31 dez 1940 [acesso 25 ago 2023]. Disponível: https://bit.ly/3PVRaBX
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, sendo, portanto, considerada crime.

O suicídio, frequente em debates bioéticos sobre o fim da vida e principal eixo deste artigo, se diferencia conceitual, ética e epistemologicamente dos fenômenos referidos. Primeiramente, eutanásia e suicídio assistido são, historicamente, atrelados a uma situação terminal, incurável e/ou com prognóstico fatal, enredados a laudo médico e submetidos a critérios legais. O suicídio, por sua vez, ainda que também tenha referências distintas do ponto de vista da lei e seja considerado crime em alguns lugares do mundo, além de transgressão às ordens médica, religiosa, social etc., ocorre à revelia do Estado e sem ajuda de outras pessoas 33. Guillon C, Le Bonniec Y. Suicídio: modo de usar. São Paulo: ENW; 1984. .

Em segundo lugar, o debate acerca da eutanásia e suicídio assistido parecem ganhar envergadura, ao menos no campo da bioética brasileira, como resposta às tecnologias médicas, que tiveram como efeito colateral a obstinação terapêutica. O suicídio, que atravessa a história e revela, sobremaneira, a condição de um sujeito sofrente, é hoje reconhecido como um grave problema de saúde pública mundial, especialmente em razão das elevadas taxas 44. World Health Organization. Preventing suicide: a global imperative [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/44vWy4h
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, 55. World Health Organization. Suicide in the world: global health estimates [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/44ptPyf
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A palavra suicídio vem do latim sui (de si) e - cidium (ato de matar) e significa ação de matar a si próprio. As percepções acerca desse ato voluntário e intencional fundaram o tripé histórico do estigma do suicídio, alicerçado em crime, pecado e loucura 33. Guillon C, Le Bonniec Y. Suicídio: modo de usar. São Paulo: ENW; 1984. , 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. . Assim, demarcado por uma longa tradição religiosa, filosófica, moral, cultural e médica, e especialmente pela influência do cristianismo nas leis do Estado constitucional moderno ocidental, o suicídio foi circunscrito na ideia de que a vida pertence a Deus – sendo interpretado, portanto, como ato demoníaco, condenável e criminoso.

Estudos como os de Guillon e Le Bonniec 33. Guillon C, Le Bonniec Y. Suicídio: modo de usar. São Paulo: ENW; 1984. e Barbagli 77. Barbagli M. O suicídio no Ocidente e no Oriente. Petrópolis: Vozes; 2019. demonstram o processo de desumanização de sujeitos que tentaram ou consumaram o ato suicida em vários países da Europa nos séculos XVII e XVIII, com destaque para julgamentos, castigos, torturas, decapitações, humilhações públicas, confiscos de bens e até pena de morte. Nos séculos XVIII e XIX destacaram-se em território europeu, mas também brasileiro, esforços da medicina em classificar o suicídio, detectar sinais e medicalizar potenciais suicidas, associando-os à loucura a e transtornos mentais 88. Lopes FH. Suicídio e saber médico: estratégias históricas de domínio, controle e intervenção no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Apicuri; 2008. – correlação defendida até os dias vigentes pela suicidologia hegemônica.

Cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos no mundo e há um crescimento expressivo entre os jovens, sendo atualmente considerada a segunda causa de morte entre indivíduos de 15 a 29 anos 55. World Health Organization. Suicide in the world: global health estimates [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/44ptPyf
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. Apesar de os números serem distintos entre os países, os de baixa e média renda apresentam a maior parte da carga global dessa “ causa mortis ”, com estimativa de 79%. Entre 2010 e 2016, a taxa global de ocorrências diminuiu 9,8%, com exceção das Américas, região que sofreu aumento de 6% 55. World Health Organization. Suicide in the world: global health estimates [Internet]. Geneva: WHO; 2019 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/44ptPyf
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No Brasil, quando comparada às taxas globais de suicídio, a mortalidade é uma das mais baixas. Todavia, em números absolutos o país ocupa a oitava posição no ranking mundial e é o quarto país latino-americano com maior crescimento entre os anos de 2000 e 2012 44. World Health Organization. Preventing suicide: a global imperative [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/44vWy4h
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A literatura, que tem como único consenso a multifatorialidade, denega causas ou justificativas únicas, demarcando a importância dos fatores de risco e de sensações como desesperança, desespero, desamparo etc. Deve-se considerar a complexidade do suicídio, o cenário de desigualdades e vulnerabilidades diversas, e a dimensão da saúde pública, em especial a atual fragilidade das políticas de saúde mental no Brasil, assim como o tabu temático que dificulta a informação, formação e capacitação. Diante disso, o objetivo deste trabalho foi refletir acerca das produções bioéticas nacionais e contribuir para o debate sobre conflitos éticos relacionados ao suicídio e sua prevenção.

Método

Trabalhos de revisão de literatura são importantes para mapear o desenvolvimento de determinado tema ou campo de pesquisa, além de evitar repetições ou duplicações desnecessárias de investigações e esclarecer falhas e limites de estudos já realizados. Este artigo consiste em uma revisão sistemática da literatura, tipo de trabalho que possibilita a utilização de protocolos que evidenciem a organização e logicidade de um campo de debate, demonstrando seu funcionamento num determinado contexto. Assim permite que a pesquisa seja conferida e reproduzida por outros pesquisadores e indica as bases de dados consultadas e as estratégias utilizadas 99. Galvão MCB, Ricarte ILM. Revisão sistemática da literatura: conceituação, produção e publicação. Logeion: Filosofia da informação [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];6(1):57-73. DOI: 10.21728/logeion.2019v6n1.p57-73
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Os descritores utilizados para a pesquisa em português foram: “suicídio”, “suicídio e bioética” e “suicídio e ética”. A busca on-line foi realizada nos bancos de dados SciELO e Google Acadêmico, assim como nos repositórios dos programas de pós-graduação (PPG) em bioética do Brasil: Cátedra Unesco de Bioética (Universidade de Brasília), Escola de Ciências da Vida: Bioética (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (Fundação Oswaldo Cruz, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense). Livros, capítulos de livros e relatórios foram buscados no Google Acadêmico com os mesmos descritores, além de terem sido acessados por indicações e/ou conhecimento prévio.

Foram encontradas 58 publicações e selecionadas 20 pertinentes ao tema investigado que atenderam aos seguintes critérios de inclusão: trabalhos bioéticos brasileiros acerca da temática do suicídio disponíveis na íntegra e publicados entre 2000 e 2021. Publicações que não se encaixaram nesses critérios foram retiradas da amostra. Excluíram-se também trabalhos em duplicidade e aqueles que, apesar de apresentarem os descritores selecionados, não abordavam diretamente a temática proposta.

O Quadro 1 descreve de forma resumida informações sobre os trabalhos publicados em periódicos. No Quadro 2 é possível observar que, nos repositórios dos três PPG em bioética no país, apenas uma dissertação foi encontrada, no PPG em Bioética da Universidade de Brasília. O Quadro 3 apresenta livros, capítulos de livro e/ou relatórios.

Quadro 1
Resumo dos artigos pesquisados
Quadro 2
Repositórios dos três programas de pós-graduação em bioética no país
Quadro 3
Livros, capítulos de livro e/ou relatórios identificados

Resultados e discussão

Dentre as publicações contempladas, foram analisados 14 artigos, uma dissertação, dois livros, um relatório e um capítulo de livro, totalizando 20 fontes. Os artigos se concentraram em revistas de bioética, psicologia, filosofia e direito sanitário.

Tendo o intervalo de 2000 a 2021 como referência, observou-se que em vários anos não houve qualquer trabalho no Brasil sobre suicídio na ótica da bioética. Dentre os registros, 2003, 2005, 2008 e 2011 tiveram uma publicação; o ano de 2012, duas; e 2013, 2015 e 2016 também uma. Os anos seguintes registraram ao menos uma publicação: em 2017 foram duas; em 2018, três; em 2019, uma; em 2020, quatro; e em 2021, uma. Sugere-se uma contínua e maior produção de trabalhos temático a partir de 2015.

No total foram identificados 32 autores, sendo seis pesquisadoras responsáveis pela autoria de 15 das 20 publicações (75%). Esse dado parece demonstrar, por um lado, o aprofundamento do tema por um grupo (de mulheres) e, por outro lado, parece revelar o número reduzido de pessoas estudando o suicídio como objeto bioético.

De acordo com as fontes dos últimos vinte anos, os resultados agruparam-se por aproximação teórica e epistemológica em três grandes eixos comuns: 1) reflexões gerais em torno da estigmatização do ato suicida e suas repercussões na saúde; 2) dilemas morais acerca do suicídio e os princípios bioéticos; e 3) análise ético-política do fenômeno do suicídio.

Estigmatização do ato suicida

Os trabalhos implicados nessa categoria compreendem e anunciam o conflito bioético vinculado ao campo da saúde, de modo privilegiado à dimensão biomédica. Apesar da distinção metodológica e temporal, todos os estudos alegam a necessidade de desestigmatização – central na comunicação e interação entre os profissionais e pacientes tentantes – em função dos massivos impactos danosos, especialmente nos sujeitos em sofrimento psíquico.

Kovács 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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realizou revisão crítica sobre suicídio e conflitos éticos envolvendo o tema, indicando que o comportamento suicida tem efeitos em profissionais de saúde, que podem tentar impedi-lo a qualquer custo. A autora demarca convicções e valores individuais, somados às premissas profissionais baseadas em salvar vidas, que são confrontadas, de modo a causar reatividade, agressividade, raiva, desprezo, julgamentos e condenações. Tais reações, por consequência, tendem a gerar culpa, ansiedade e constrangimento em pacientes tentantes.

Kovács 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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sublinha que o fenômeno do suicídio pode envolver questões legais, uma vez que está relacionado à morte. Assim, o temor e o risco de processos judiciais pode levar profissionais a agir defensivamente mediante internações forçadas, com manejo de medicação tranquilizante e/ou antipsicótica, sem o devido aprofundamento acerca do sofrimento e histórico do tentante. Diante desse cenário a autora se questiona e põe em debate: a internação e medicação forçadas também não deveriam ser alvo de processos judiciais, uma vez que ferem a autonomia da pessoa?

Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. , 2424. Lima L. Moralidades correntes sobre suicídio em unidades de saúde e seu impacto na assistência: uma análise na perspectiva da bioética de proteção [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3stAhXP
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entrevistou médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem responsáveis pelo primeiro atendimento após uma tentativa. Percepções modernas do estigma do suicídio, alicerçadas em pecado, crime e loucura ou transtornos mentais foram detectados nos discursos dos entrevistados. Dessa forma, como reprodutores do discurso social hegemônico, os profissionais projetam a moralidade como orientadora de suas condutas.

A autora advoga que o paciente que tenta ou consuma o ato suicida retira do Estado e do hospital o agenciamento da vida, confrontando o poder e o saber dessas instituições. Em confluência argumentativa com Kóvacs 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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, Lima 2424. Lima L. Moralidades correntes sobre suicídio em unidades de saúde e seu impacto na assistência: uma análise na perspectiva da bioética de proteção [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3stAhXP
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identifica que a sensação de afronta e de inadequação profissional são compartilhadas pela equipe, de modo a suscitar redução nos cuidados, negligência, brincadeiras jocosas, ofensas diretas ou indiretas, mensagens religiosas, pedagógicas ou de ânimo, ações de hipervigilância, condenação, exclusão, hostilidade e punição.

Circunscritos em um cenário apartado de maiores informações, capacitação ou sensibilização sobre o fenômeno, esses comportamentos revelam pobreza instrumental técnica e ética para lidar com os tentantes – reflexo do tabu e dos valores sociais e morais a respeito do tema. Dito isso, profissionais e instituições de saúde, que deveriam ser referência no cuidado, apresentam-se também como fonte de maior vulneração às pessoas em sofrimento 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. , 2424. Lima L. Moralidades correntes sobre suicídio em unidades de saúde e seu impacto na assistência: uma análise na perspectiva da bioética de proteção [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3stAhXP
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.

Outra referência nesse debate é o relatório técnico do Observatório de Direitos Humanos dos Pacientes 2626. Observatório de Direitos Humanos dos Pacientes. Relatório sobre direitos humanos dos pacientes em risco de suicídio no Brasil [Internet]. set. 2017 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3QVHDNY
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, acerca dos direitos humanos das pessoas em risco e tentativa de suicídio no Brasil, baseado em entrevistas com profissionais de saúde, familiares e pacientes tentantes. Esses pacientes estão protegidos pelos seguintes direitos previstos em normas internacionais que se conectam diretamente com o contexto dos cuidados em saúde: direito à vida; direito a não ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; direito à liberdade e segurança pessoal; direito ao respeito à vida privada; direito à informação; direito de não ser discriminado; e direito à saúde.

As entrevistas que embasaram o relatório revelaram violação de todos os direitos humanos dos pacientes. No artigo de Albuquerque e colaboradores 1919. Albuquerque A, Boeira L, Lima L, Ayres T. Os direitos humanos de pacientes em risco de suicídio no Brasil. Cad Ibero Am Direito Sanit [Internet]. 2019 [acesso 14 jun 2023];8(1):26-35. DOI: 10.17566/ciads.v8i1.523
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, síntese do relatório, observou-se precarização e mesmo ausência de abordagem preventiva de novas tentativas de suicídio, visto que os profissionais não tinham capacitação e apresentavam dificuldades para notificar, identificar e encaminhar para serviços especializados de atenção psicossocial. Desse modo, a provisão de informação adequada acerca do diagnóstico, tratamento e possibilidades de acolhimento pareceu comprometida.

Os relatos apontam igualmente para discriminação nos atendimentos; episódios em que tentantes foram preteridos na fila do atendimento; prescrições médicas infundadas ou sem análise criteriosa; procedimentos sem acesso à analgesia; isolamento nas internações; monitoramento intenso; restrição forçada ao leito ou alimentação, etc.

Assim como relatado por Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. , 2424. Lima L. Moralidades correntes sobre suicídio em unidades de saúde e seu impacto na assistência: uma análise na perspectiva da bioética de proteção [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3stAhXP
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, o tratamento hostil, humilhante e desumano oferecido aos tentantes se soma a discursos pedagógicos, morais e religiosos, com o fim de que “aprendam” com a experiência e não tentem suicídio outra vez. Integram-se a isso relatos de casos em que os profissionais, tomando a tentativa de suicídio como um modo de chamar atenção, “ensinaram” como alcançar uma morte efetiva sem “erros”. No Brasil é crime induzir, instigar ou auxiliar alguém no ato suicida (Art. 122 do Código Penal) 22. Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Rio de Janeiro, 31 dez 1940 [acesso 25 ago 2023]. Disponível: https://bit.ly/3PVRaBX
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Dentre as principais violações, foi recorrente o desrespeito à autonomia do paciente, uma vez que a difundida ideia de que o ato é reflexo de transtorno mental é usada para justificar o enquadramento e controle do sujeito em instituições. Os entrevistados reportaram-se ainda ao estigma, indicando a correlação entre este, as violações, o estresse e sofrimento causado 2626. Observatório de Direitos Humanos dos Pacientes. Relatório sobre direitos humanos dos pacientes em risco de suicídio no Brasil [Internet]. set. 2017 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3QVHDNY
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Silva, Sougey e Silva 1515. Silva TP, Sougey EB, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 14 jun 2023];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080
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realizaram revisão integrativa acerca do estigma social associado a indivíduos que tentaram suicídio. O estigma é um fenômeno que fere a autonomia, a proteção, o cuidado e a adesão ao tratamento, além de culminar em outras comorbidades e dificultar novas buscas de ajuda, potencializando o risco de mais tentativas.

O estigma também afeta os familiares, que sofrem rotulações, retaliações, julgamentos, exclusão, entre outros impactos negativos. Em uma lógica convergente, os estudos demonstram que, em sociedades em que o estigma não é associado, a busca por ajuda tende a ampliar de modo significativo.

Por fim, o estudo de Rocha, Araújo Filho e Ávila 2020. Rocha G, Araújo Filho G, Ávila L. Atitudes de médicos e estudantes de medicina com pacientes com ideação suicida. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];28(2):344-55. DOI: 10.1590/1983-80422020282396
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analisou médicos, com intuito de compreender informações, concepções, atitudes e manejo profissional acerca do tema e interação com pacientes com risco e tentativa de suicídio. Dentre os resultados, observou-se que os profissionais estão bem instruídos na administração de urgência e emergência, ao mesmo tempo que parecem ter informações errôneas em relação à notificação compulsória.

Os participantes relataram que não foram adequadamente preparados durante a graduação para lidar com a saúde mental, especialmente suicídio. Segundo os autores, a formação deveria levar em consideração o Código de Ética Médica 2929. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 [Internet]. Brasília: CFM; 2019 [acesso 28 ago 2023]. Disponível: https://bit.ly/2XNUzqP
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brasileiro, baseado nos quatros princípios da bioética principialista 2020. Rocha G, Araújo Filho G, Ávila L. Atitudes de médicos e estudantes de medicina com pacientes com ideação suicida. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];28(2):344-55. DOI: 10.1590/1983-80422020282396
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. Seria isso o bastante?

Dilemas morais e os princípios bioéticos

Esse eixo aborda dilemas e questionamentos morais e filosóficos acerca do suicídio, aos quais as provocações, saídas ou respostas são alçadas por meio de princípios bioéticos.

Heck 1111. Heck JN. O suicídio como violação de um dever de virtude. Filosofia Unisinos [Internet]. 2005 [acesso 14 jun 2023];6(1):71-83. Disponível: https://bit.ly/3YOzqwI
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coteja a bioética com a doutrina kantiana, indicando que a partir dessa ótica o suicídio é uma violação do dever não só consigo mesmo, mas também com terceiros, sendo uma proibição moral, visto que, para Kant, todos os homens são propriedade de Deus. Nesse sentido, Heck 1111. Heck JN. O suicídio como violação de um dever de virtude. Filosofia Unisinos [Internet]. 2005 [acesso 14 jun 2023];6(1):71-83. Disponível: https://bit.ly/3YOzqwI
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afirma que o filósofo compreende o suicídio como uma autocontradição da liberdade, um mau uso da razão, vinculado a sentimentos e/ou paixões irracionais.

A premissa da autonomia como núcleo da dignidade humana não contempla o ato suicida, uma vez que não se trata de uma ação moral perfeita, logo, não universalizável. Em termos kantianos, o suicídio pode ser interpretado como um desvio de conduta 1111. Heck JN. O suicídio como violação de um dever de virtude. Filosofia Unisinos [Internet]. 2005 [acesso 14 jun 2023];6(1):71-83. Disponível: https://bit.ly/3YOzqwI
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Lima e Weber 2323. Lima AF, Weber T. Autonomia e dignidade em Kant: o suicídio como violação do “dever pelo dever” e suas novas interpretações no campo da bioética. Questio luris [Internet]. 2021 [acesso 14 jun 2023];14(3):1001-38. DOI: 10.12957/rqi.2021.49259
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revisam a doutrina kantiana a partir de outra perspectiva, veiculando a plausibilidade do direito à morte pela reprodução e defesa da ideia de que obrigar alguém a viver, inclusive nas situações em que isso implica a violação à dignidade, pode ser uma forma de tirania. À vista disso, segundo os autores, o imperativo categórico kantiano deve ser flexibilizado ou atualizado em situações em que o indivíduo estiver no limite do sofrimento e/ou condição indigna. Desse modo, compreende-se a morte como um direito e o suicídio como reflexo de uma decisão racional, se a pessoa estiver em pleno gozo das faculdades cognitivas.

Kovács 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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aborda o direito ao suicídio, que é diferente de incentivo ou obrigação de se matar, com base no princípio da autonomia. Nessa perspectiva, uma das questões fundamentais trazidas pela autora é a legitimação do desejo de morrer, que motiva os seguintes questionamentos meritórios:

  • A idade e/ou o momento vivenciado pelo sujeito muda o caráter de reconhecimento e aceitação social acerca da escolha do suicídio?

  • Que decisão é mais tolerável, um idoso em estágio terminal ou um jovem com sofrimento psíquico?

  • Que dor é mais intolerável, aquela produzida por adoecimento, também nomeada de sintoma incapacitante, ou o vazio existencial, o desamparo?

  • Como definir a intensidade do sofrimento e a dignidade diante do viver e do morrer?

Partindo do pressuposto de que o sujeito é soberano de si, Kovács 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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reitera que a autonomia deve ser respeitada pelos profissionais de saúde, que podem tentar reduzir o sofrimento do tentante sem se deixar guiar pela condenação ou por questões morais e legais.

De modo complementar, Fukumitsu e Kovács 2727. Fukumitsu K, Kovács MJ. De quem é a vida afinal? A bioética na prevenção e posvenção. In: Marquetti F, organizadora. Suicídio: escutas do silêncio. São Paulo: Editora Unifesp; 2018. p. 63-89. argumentam que, na assistência ao sujeito com comportamento suicida, não se ocupa uma posição de salvador, mas de facilitador na busca de dignidade em vida. Ao mesmo tempo que alegam que a dignidade perpassa uma ideia pessoal, singular e intransferível, afirmam também que dignidade significa afastamento de opressão e tormento na conquista do sentido da vida. A trajetória de saúde e cura implica, de um lado, respeito à autonomia e, de outro, reconhecimento de que sofrimento e desamparo afetam de modo significativo o sujeito e que, no mundo real, a liberdade é limitada e as escolhas, restritas.

Em contrapartida, Rocha, Araújo Filho e Ávila 2020. Rocha G, Araújo Filho G, Ávila L. Atitudes de médicos e estudantes de medicina com pacientes com ideação suicida. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];28(2):344-55. DOI: 10.1590/1983-80422020282396
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enfatizam que médicos podem intervir nos casos de risco de morte rompendo o sigilo, de modo a impedir ou alterar o desfecho de um comportamento suicida. Essa configuração, segundo os autores, aponta para uma possível sobreposição e mesmo maior importância da beneficência e não maleficência em relação ao respeito à autonomia do paciente, que pode ter a sua capacidade decisória questionada ou impedida, inclusive por meio de internação compulsória.

Kovács 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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e Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. demarcam a assimetria entre a proteção dada a profissionais e a pacientes quando ocorre tentativa de suicídio. Conforme registrado na primeira categoria, há retaliações, condenações e punições diversas àquele que atenta contra a própria vida; o profissional da saúde, porém, ainda que fira ou viole a autonomia e direitos humanos de paciente, não recebe advertência, sanção institucional ou jurídica, especialmente se cometeu desvios com finalidade de preservar vidas. Fukumitsu e Kovács 2727. Fukumitsu K, Kovács MJ. De quem é a vida afinal? A bioética na prevenção e posvenção. In: Marquetti F, organizadora. Suicídio: escutas do silêncio. São Paulo: Editora Unifesp; 2018. p. 63-89. advertem que, para a preservação das vidas, é primordial a ampliação de recursos de enfrentamento.

Wünsch e colaboradores 1616. Wünsch VL, Nasser C, Corradi-Perini C, Souza V. Bioética, teologia e saúde mental: diretrizes de cuidado e prevenção do suicídio. Revista Iberoamericana de Bioética [Internet]. 2016 [acesso 14 jun 2023];2:1-15. DOI: 10.14422/rib.i02.y2016.010
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salientam que o direito à vida é fundamental e inclui os direitos ao acesso a bens e serviços necessários para que indivíduos e grupos vivam com dignidade e integridade, devendo ser proporcionados e garantidos pela sociedade. No prisma desses autores o direito à vida deve ser delineado, de modo privilegiado, pela ética do cuidado. O cuidado em saúde mental deve promover informação, sensibilização do tema e orientação para profissionais e população com intuito de alcançar uma perspectiva abrangente, multifatorial e efetiva em prevenção do suicídio.

Para subsidiar a ética do cuidado, Wünsch e colaboradores 1616. Wünsch VL, Nasser C, Corradi-Perini C, Souza V. Bioética, teologia e saúde mental: diretrizes de cuidado e prevenção do suicídio. Revista Iberoamericana de Bioética [Internet]. 2016 [acesso 14 jun 2023];2:1-15. DOI: 10.14422/rib.i02.y2016.010
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anteferem as abordagens teológica e da bioética personalista. A Igreja Católica orienta os princípios de promoção da vida humana, dignidade e sacralidade da vida – dom sagrado e inviolável – em detrimento das manifestações de uma cultura de morte. A bioética personalista se apoia nos princípios defesa da vida física; liberdade e responsabilidade; totalidade ou princípio terapêutico; sociabilidade; e subsidiariedade.

Nesse sentido, os autores defendem que os princípios da bioética personalista e da Igreja Católica podem subsidiar as ações de cuidado, tratamento e prevenção do suicídio, especialmente com atendimento humanizado, responsabilidade e ações coletivas de cuidado em prol da defesa da vida 1616. Wünsch VL, Nasser C, Corradi-Perini C, Souza V. Bioética, teologia e saúde mental: diretrizes de cuidado e prevenção do suicídio. Revista Iberoamericana de Bioética [Internet]. 2016 [acesso 14 jun 2023];2:1-15. DOI: 10.14422/rib.i02.y2016.010
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.

Em perspectiva contrastiva, destaca-se a leitura do suicídio como manifestação de um poder pessoal de decisão, segundo a qual a interrupção da existência é retrato de uma construção racional, ideia defendida por Cabrera 2525. Cabrera J. A ética e suas negações: não nascer, suicídio e pequenos assassinatos. Rio de Janeiro: Rocco; 2011. . O autor tece uma dupla crítica: à referida perspectiva psicopatológica e ao valor absoluto da vida na sociedade ocidental contemporânea – estatuto que alicerçou a ideia da condenação social do ato suicida, transformando-o em um mal moral por excelência ou mesmo em um ato politicamente incorreto.

Para Cabrera 2525. Cabrera J. A ética e suas negações: não nascer, suicídio e pequenos assassinatos. Rio de Janeiro: Rocco; 2011. , o suicídio foi metamorfoseado na atualidade pela lógica da medicalização, pela abstração da autonomia e pelo princípio da beneficência. Com isso, o valor da vida de um paciente é maior do que a valoração do próprio paciente, que pode compreender o fim da vida como uma solução e não como a destruição de um bem supremo infalível.

Dadalto, Santos e Pereira 2121. Dadalto L, Santos S, Pereira J. Suicídio racional: uma nova perspectiva acerca do direito de morrer. Lex Medicinae [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];17(34):9-20. Disponível: https://bit.ly/47QQoyT
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advogam igualmente a centralidade da racionalidade a partir do nomeado “suicídio racional” – definido como a abreviação da vida por qualquer pessoa autônoma a partir do sentido que cada um atribui ao viver. As autoras debatem o tema priorizando o princípio da dignidade da pessoa humana como modo de avançar no debate de uma vida digna.

As autoras demarcam que, embora se trate de um conceito fluido e de difícil delimitação, esse princípio visa uma existência saudável, confortável e prazerosa, que, nesse sentido, tem um significado único para cada ser humano. A qualidade de vida é subjetiva e, por essa razão, não há ninguém melhor para decidir o que é ter uma vida digna do que o próprio sujeito que a vive. A exceção diz respeito a indivíduos com algum transtorno mental, cuja condição aponta para a necessidade contínua de ações em prol da prevenção 2121. Dadalto L, Santos S, Pereira J. Suicídio racional: uma nova perspectiva acerca do direito de morrer. Lex Medicinae [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];17(34):9-20. Disponível: https://bit.ly/47QQoyT
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.

Barreira 1717. Barreira MM. Suicídio como autodeterminação da cidadania perante o Estado. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2023];25(2):301-10. DOI: 10.1590/1983-80422017252190
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afirma que a complexidade do suicídio se afunila justamente na tensão entre autonomia e heteronomia no Estado democrático de direito, que tem como ponto fulcral a autonomia do indivíduo em suas escolhas existenciais e ético-políticas. Em sua análise, também centraliza o princípio da dignidade humana e, assim como outros autores, questiona o valor intrínseco da vida, preconizando que o direito à vida plena não implica a obrigação de se continuar vivendo a qualquer custo e em circunstâncias extremas.

Barreira 1717. Barreira MM. Suicídio como autodeterminação da cidadania perante o Estado. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2023];25(2):301-10. DOI: 10.1590/1983-80422017252190
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segue a abordagem de Walzer, que apresenta um tripé paradigmático de vínculo social da tradição cultural ocidental acerca da obrigação política da vida: 1) a da cidade-estado ateniense; 2) a do modelo monárquico clássico; e 3) a do movimento revolucionário. Essas concepções político-filosóficas respaldaram as tentativas de delinear ética e juridicamente a criminalização do suicídio, alicerçado especialmente no dever moral de obediência política do cidadão, pelo estímulo estatal à vida.

Historicamente o suicídio também é visto como resposta à infelicidade ou a opressões, configurando uma forma em que o indivíduo-cidadão se afirma contra o Estado que o persegue, o exclui ou o tortura. Nas palavras do autor, condições indignas de miséria e desespero não podem exigir de alguém fidelidade à comunidade política ou ao Estado que permitiu que isso acontecesse 3030. Barreira MM. Op. cit. p. 306. .

Para Schramm 1313. Schramm FR. Acerca da moralidade do suicídio. Lugar Comum [Internet]. 2012 [acesso 14 jun 2023];31:193-203. Disponível: https://bit.ly/3qOOluw
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a vida corresponde a um recurso de enfrentamento do desamparo, e o suicídio é uma possível solução ao mal recebido, uma vez que, perante o mal radical que se espalhou no século XX pelas práticas totalitárias, a morte autoprovocada se tornou uma saída ou solução. Nessa perspectiva, o autor indica que as perguntas bioéticas acerca do fenômeno são amparadas por dois princípios: sacralidade da vida e qualidade da vida. O cálculo para indicar qual deve prevalecer precisa ser feito por cada sujeito, pois nisso consiste a dupla identidade da vida, que é ao mesmo tempo propriedade e instrumento do proprietário-agente.

Daolio 1212. Daolio E. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2012 [acesso 14 jun 2023];20(3):436-41. Disponível: https://bit.ly/3YSd0Lc
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por sua vez, politiza o debate e advoga que os indivíduos estão sendo condenados e conduzidos à morte dentro da lógica de uma existência tóxica, amplamente fomentada, na qual enfatiza outro princípio bioético, o da proteção, também salientado por Silva, Sougey e Silva 1515. Silva TP, Sougey EB, Silva J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 14 jun 2023];23(2):419-26. DOI: 10.1590/1983-80422015232080
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. Esses autores afirmam que a proteção mediará e/ou devolverá ao sujeito vulnerado a autonomia sobre suas ações, a fim de que ele possa decidir seu futuro com liberdade e discernimento. Esse raciocínio pressupõe que o princípio da proteção antecede o da autonomia, uma vez que os sujeitos vulnerados estão submetidos a uma situação sem possibilidade de movimentação.

Em diálogo argumentativo, Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. , 2424. Lima L. Moralidades correntes sobre suicídio em unidades de saúde e seu impacto na assistência: uma análise na perspectiva da bioética de proteção [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3stAhXP
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emprega as contribuições da bioética da proteção para pensar o suicídio e, a partir do princípio da proteção, bem como do reconhecimento do direito de morrer, assinala bases imperativas para avançar no debate. Primeiramente, indica a necessidade de questionar a produção do conhecimento em suicidologia, que envolve desde fragilidades das políticas públicas no Brasil até a ausência de um esquadrinhamento das formas de sofrimento, opressão, violência e desigualdades – que, por sua vez, determinam uma rede social de adoecimento e comprometem o exercício da autonomia.

Em segundo lugar, aponta para a necessidade de desaprendizado ético do conceito e da prática da autonomia, que deve deslocar a concepção individualista e paternalista para uma autonomia real, na relação e no contexto. Em suma, evidenciam-se as limitações de uma suposta autonomia individual em um país pobre, desigual, em condições sobrepostas de precarização das vidas.

Análise ético-política do suicídio

Kovács 1414. Kovács MJ. Revisão crítica sobre conflitos éticos envolvidos na situação de suicídio. Psicol Teor Prát [Internet]. 2013 [acesso 14 jun 2023];15(3):69-82. Disponível: https://bit.ly/3ONI4al
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realiza um percurso histórico acerca do ato suicida, abrangendo desde o enquadramento como crime no âmbito da lei, passando pelo transtorno mental no âmbito psi , até chegar ao debate da dignidade no campo da bioética.

Para contextualizar os modos de morrer, passa por diferentes cosmovisões e culturas, relatando por exemplo que, na Grécia antiga, os estoicos interpretavam o suicídio como um ato racional, e os romanos acreditavam que se podia preparar a própria morte, em especial nas situações em que a vida era considerada indigna. Nesse contexto, os únicos que não podiam pensar na morte autoprovocada eram os escravos, por serem tomados como mercadoria. Isto posto, essa autora delineia criticamente interpretações tecidas e fabricadas ao longo do tempo por discursos diversos de poder, que determinam compreensões e ações em prevenção do suicídio 1414. Kovács MJ. Revisão crítica sobre conflitos éticos envolvidos na situação de suicídio. Psicol Teor Prát [Internet]. 2013 [acesso 14 jun 2023];15(3):69-82. Disponível: https://bit.ly/3ONI4al
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.

Dentre as contestações e reflexões que reverenciam a complexidade do tema, observam-se, ainda que em menor proporção, produções bioéticas que dão ênfase aos contextos e à interseccionalidade. Kovács 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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, Wünsch e colaboradores 1616. Wünsch VL, Nasser C, Corradi-Perini C, Souza V. Bioética, teologia e saúde mental: diretrizes de cuidado e prevenção do suicídio. Revista Iberoamericana de Bioética [Internet]. 2016 [acesso 14 jun 2023];2:1-15. DOI: 10.14422/rib.i02.y2016.010
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e Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. destacam estatísticas e estudos invisibilizados, que apontam predomínio da morte autoprovocada entre países de baixa e média renda, assim como em grupos vulnerabilizados, como população negra, indígena, LGBTQIA+, idosos, desempregados etc.

Ao mesmo tempo que salientam a epidemiologia crítica, essas autoras indicam que as categorias como raça/cor, identidade de gênero e/ou orientação sexual são comumente negligenciados nas discussões e mesmo nas notificações oficiais. A superposição de interdições parece impedir o avanço na produção de conhecimento em suicidologia, especialmente no que tange às opressões intercruzadas e fatores de risco ignorados 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. .

Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. ressalta que considerar as vulnerabilidades na compreensão do suicídio é contemplar sua multifatorialidade, contingências sociopolíticas para além dos fatores psicopatológicos e o mal-estar gerado pela cultura. Dessa forma, atenta-se para os aspectos opressores da sociedade e as múltiplas violências, que são fonte de iniquidades, sofrimento e adoecimento psíquico, como racismo, machismo, xenofobia, LGBTfobia, capacitismo.

Com base em outros argumentos, mas também numa perspectiva dialética indivíduo-sociedade, Kovács 1010. Kovács MJ. Bioética nas questões de vida e morte. Psicol USP [Internet]. 2003 [acesso 14 jun 2023];14(2):115-67. Disponível: https://bit.ly/3QTl504
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enfatiza que processos autodestrutivos podem ser resposta aos valores da sociedade pós-moderna, na qual condutas violentas surgem como modo de deter o fluxo do desprazer, impotência, desenraizamento e desamparo. A precarização do simbólico, típica da atualidade, parece ser acompanhada de outra crítica, a fragilidade dos laços e do apoio social, e a falta de uma atuação ética e política no campo das relações afetivas. Na impossibilidade ou aridez para construir sentidos existenciais, o Estado se torna ingrediente a mais para desesperança 1717. Barreira MM. Suicídio como autodeterminação da cidadania perante o Estado. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2017 [acesso 14 jun 2023];25(2):301-10. DOI: 10.1590/1983-80422017252190
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.

Daolio 1212. Daolio E. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2012 [acesso 14 jun 2023];20(3):436-41. Disponível: https://bit.ly/3YSd0Lc
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recusa a análise unívoca do fenômeno, que privilegia o indivíduo e seu invólucro de transtorno mental, ou mesmo do raciocínio da autonomia como exercício individual do viver ou do morrer. Dessa forma, estende o debate com a premissa de que a sociedade fomenta uma existência tóxica, que propaga mensagens e práxis de um projeto de morte, um viver suicidando-se 3131. Daolio E. Op. cit. p. 439. .

O autor afirma que as vidas privadas sofrem intensas pressões das condutas coletivas e dos fatos sociais, de forma que atos suicidas revelam não apenas o peso da insuportabilidade, como também a denúncia do indivíduo de não ser mais possível conviver no meio em que está inserido. Na avaliação em questão, os conflitos e suicídios aparentemente individuais projetam arquiteturas sociais caóticas de projetos políticos e subjetivos malsucedidos 1212. Daolio E. Suicídio: tema de reflexão bioética. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2012 [acesso 14 jun 2023];20(3):436-41. Disponível: https://bit.ly/3YSd0Lc
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Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. , 2424. Lima L. Moralidades correntes sobre suicídio em unidades de saúde e seu impacto na assistência: uma análise na perspectiva da bioética de proteção [dissertação] [Internet]. Brasília: Universidade de Brasília; 2018 [acesso 14 jun 2023]. Disponível: https://bit.ly/3stAhXP
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e Lima e Flor do Nascimento 2222. Lima L, Flor do Nascimento W. Del suicidio: entre éticas de la vida y políticas de muerte: reflexiones desde el Brasil. Rev RedBioetica UNESCO [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];11(2):91-101. Disponível: https://bit.ly/3srzJBB
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adotam como chave de leitura do suicídio a biopolítica, conceito cunhado por Foucault 3232. Foucault M. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes; 2008. , 3333. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. que se alicerça em dois fundamentos: 1) maximização das forças produtivas e vitalidade das populações; e 2) esquecimento e abandono das vidas desprovidas de valor, que tendem a ficar à margem da proteção estatal, aqueles que o governo ignora ou simplesmente deixa morrer. Indivíduos com comportamento suicida subvertem as ordens e discursos de poder, não se enquadram no funcionamento normativo e, assim, tornam-se alvo de exclusão, abandono ou negligência pelas políticas do Estado, que inviabilizam certas condições de existência.

Ainda que a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio (Lei 13.819/2019) 3434. Brasil. Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019. Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; e altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 29 abr 2019 [acesso 25 ago 2023]. Disponível: https://bit.ly/3OVY8XJ
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tenha sido criada em 2019, não existe um plano nacional correspondente para subsidiá-la. Como consequência, não há financiamento, investimento, espaços de formação e, principalmente, espaços de debate e ações de prevenção do suicídio no campo social.

Além de registrar os problemas já referidos, Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. e Lima e Flor do Nascimento 2222. Lima L, Flor do Nascimento W. Del suicidio: entre éticas de la vida y políticas de muerte: reflexiones desde el Brasil. Rev RedBioetica UNESCO [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];11(2):91-101. Disponível: https://bit.ly/3srzJBB
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demarcam, juntamente com os retrocessos da Nova Política de Saúde Mental, baseada na Nota Técnica 11/2019, do Ministério da Saúde 3535. Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica nº 11/2019. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2019 [acesso 28 ago 2023]. Disponível: https://bit.ly/3sugAiu
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, que a Rede de Atenção Psicossocial está condenada a sobreviver sem aportes financeiros até 2036. À vista disso, ecoam perguntas suleadoras 3636. Adams T. Sulear. In: Streck D, Redin E, Zitkoski JJ, organizadores. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica; 2008. p. 396-8.: seria o nosso cenário político um potencializador do risco de suicídio? Os sujeitos também podem ser suicidados pela sociedade?

Por fim, os trabalhos de Lima 66. Lima L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética; 2020. e Lima e Flor do Nascimento 2222. Lima L, Flor do Nascimento W. Del suicidio: entre éticas de la vida y políticas de muerte: reflexiones desde el Brasil. Rev RedBioetica UNESCO [Internet]. 2020 [acesso 14 jun 2023];11(2):91-101. Disponível: https://bit.ly/3srzJBB
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evidenciam o imperativo de reposicionar a morte e o morrer, tomando-os um campo político de disputa. Como parte do fundamento da modernidade, as éticas da vida se sustentam, sobretudo, na decisão sobre o valor ou desvalor de determinadas existências, havendo um escalonamento populacional hierarquizado, que torna algumas vidas mais propensas que outras à mortalidade politicamente provocada. Os autores afirmam que o suicídio é mais um projeto de morte que não reflete apenas planos individuais, sendo também uma possível reação a programas estruturais que têm como efeito colateral fazer matar-se.

Considerações finais

A produção bioética dos últimos vinte anos acerca do suicídio é amplamente vinculada a outros fenômenos do fim de vida, como eutanásia e suicídio assistido, e em algum nível é indiscriminada desses eventos. Ainda que considerado duplamente uma situação persistente e emergente, há escassas produções nacionais, especialmente se for considerado que a) apenas uma dissertação foi encontrada nos PPG em bioética; e b) apenas seis autoras são responsáveis por 75% das publicações encontradas.

Esse último dado parece, por um lado, demonstrar o aprofundamento do tema por parte dessas pesquisadoras e, por outro, revelar o número reduzido de pessoas estudando o suicídio como objeto bioético. Como é possível que um problema de saúde pública mundial seja tão pouco pesquisado e debatido em um país com indicadores alarmantes? Qual é a origem e a justificativa para esse silenciamento no campo da bioética brasileira?

Os resultados deste trabalho foram categorizados em três eixos: 1) reflexões gerais em torno da estigmatização do ato suicida e suas repercussões na saúde; 2) dilemas morais acerca do suicídio e os princípios bioéticos; 3) análise ético-política do fenômeno do suicídio.

O primeiro eixo apresenta uma discussão acerca do estigma histórico do suicídio, amplamente atualizado e reproduzido na práxis em saúde. Em trabalhos de revisão e de entrevistas com pacientes tentantes, familiares e profissionais de saúde, observou-se que atendimentos, comunicação, interação e acompanhamento muitas vezes são mediados por moralidade e condutas intrainstitucionais baseadas em ideias de criminalização, patologização, controle, religiosidade etc. Essa situação viola princípios ou direitos humanos dos pacientes e compromete a relação entre pacientes e profissionais, a adesão ao tratamento, novas buscas de ajuda das pessoas em sofrimento e, consequentemente, a prevenção do suicídio.

O segundo eixo perscrutou uma diversidade de princípios bioéticos, de modo a manifestar a complexidade do debate ético e moral acerca do suicídio. Apesar da riqueza teórica, observou-se expressivo confronto de dois princípios: 1) sacralidade da vida, que carrega o caráter de valor intrínseco da vida, de forte herança religiosa; e 2) defesa da autonomia.

Esse secundo princípio não implica necessariamente autonomia em relação e no contexto vinculado às especificidades do cenário sociopolítico brasileiro, cerceado de violências, desigualdades e vulnerabilidades, que em última instância precarizam vidas e limitam a autodeterminação. Ademais, observou-se a carência de trabalhos temáticos em diálogo com correntes latino-americanas, mais próximas à realidade brasileira.

O terceiro eixo tem caráter mais atual, questionador e marginalizado na suicidologia, pois ultrapassa a perspectiva psicopatológica e/ou de responsabilidade individual, fortemente atrelada ao direito deliberado da autonomia como resposta ao conflito moral. Os trabalhos dão ênfase a leituras e/ou epidemiologia críticas e invisibilizadas, tecem ao suicídio a ferramenta da interseccionalidade, o sistema político-econômico vigente e suas políticas de Estado, circunstanciando-o também em projetos de morte.

A dimensão do cuidado prestado a pessoas com comportamento suicida não envolve apenas a evitação compulsória da morte – condutas comumente baseadas em vigilância, tutela, ausência de diálogo etc. –, mas requer considerar as sérias implicações éticas e políticas que provocam e são provocadas por esses atos. Nesse sentido, os estudos bioéticos nacionais em sua pluralidade e interdisciplinaridade são extremamente valiosos para maior compreensão do problema em território brasileiro, assim como para a execução e avanço de medidas e políticas eficientes de prevenção do suicídio.

Referências

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    Brasil. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União [Internet]. Rio de Janeiro, 31 dez 1940 [acesso 25 ago 2023]. Disponível: https://bit.ly/3PVRaBX
    » https://bit.ly/3PVRaBX
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2022
  • Revisado
    15 Jun 2023
  • Aceito
    14 Ago 2023
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