Reflexão ética sobre a teleconsulta

Resumo

As tecnologias da informação e comunicação têm influência cada vez maior na área da saúde, sendo o aumento significativo do recurso à teleconsulta um reflexo disso. Os benefícios que essa modalidade de prestação de serviços de saúde ocasiona são inquestionáveis, a começar pelo facto de auxiliarem a enfrentar os desafios contemporâneos que assolam os sistemas de saúde em todo o mundo. Todavia, a sua crescente utilização vem sublinhar a importância de salvaguardar questões éticas relacionadas com a autonomia, equidade, privacidade e qualidade da relação entre o utente e o profissional de saúde. Este artigo pretende estimular uma reflexão acerca dos desafios éticos que se colocam antes, durante e após o uso da teleconsulta, com o intuito de otimizar e modelar a sua utilização.

Teleconsulta; Ética médica; Deontologia; Tecnologia da informação e comunicação

Abstract

Information and communication Technologies are increasingly present in health care, as exemplified by the recourse to remote consultation. Such care delivery modality brings unquestionable benefits, such as helping to face the contemporary challenges plaguing health systems worldwide. But its ever-increasing use underlines the importance of safeguarding ethical issues related to autonomy, equity, privacy, and the quality of the user-professional relations. This paper reflects on the ethical challenges presented before, during, and after remote consultation as to optimize and shape its use.

Remote consultation; Ethics; medical; Ethical theory; Information and communication technologies

Resumen

Las tecnologías de la información y la comunicación tienen una influencia cada vez mayor en el área de la salud, y esto lleva a un aumento significativo en el uso de la teleconsulta. Muchos son los beneficios de esta modalidad de prestación de servicios sanitarios, comenzando por el hecho de que ayudan a abordar los desafíos contemporáneos que afectan a los sistemas de salud en todo el mundo. Sin embargo, su uso creciente destaca la importancia de salvaguardar las cuestiones éticas relacionadas con la autonomía, la equidad, la privacidad y la calidad de la relación entre el paciente y el profesional de la salud. Este artículo pretende incitar a una reflexión sobre los desafíos éticos que surgen antes, durante y después del uso de la teleconsulta, con el fin de optimizarlo y modelarlo.

Teleconsulta; Ética médica; Teoría ética; Tecnología de la información y comunicación

Ao longo das últimas décadas, a prestação de cuidados de saúde tem sido fortemente influenciada pelas novas tecnologias, não só através da modernização de equipamentos e meios de diagnóstico e tratamento, como também pela comunicação e relação utente-profissional de saúde. O desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação (TIC) – telemóveis de última geração, aplicações informáticas, programas de videoconferência, fibra ótica, sistema de rede sem fios etc. – tem aberto novas possibilidades e criado ferramentas muito úteis para a prática assistencial, como é o caso da teleconsulta.

Por outro lado, fatores sociais, económicos e políticos também têm favorecido um aumento da utilização das TIC aplicadas na prestação de cuidados de saúde, tais como: políticas voltadas para a diminuição dos gastos em saúde; escassez de recursos humanos; constrangimentos associados ao isolamento geográfico e consequentes desigualdades no acesso aos cuidados; aumento da procura de cuidados de saúde provocado pelo envelhecimento populacional, epidemias, doenças crónicas e multimorbilidade; e necessidade de um contínuo e frequente contacto do utente com os serviços de saúde; entre outros ¹ - ⁴ .

Assim, todos esses fatores têm contribuído para que a prestação de cuidados de saúde à distância mediados pelas TIC, nomeadamente por meio da teleconsulta, seja uma realidade emergente e com fortes perspetivas de expansão. Todavia, embora esta modalidade de atendimento tenha potencial benefício para os utentes, também inspira importantes desafios éticos, desde logo porque afeta múltiplas dimensões humanas.

Com o presente artigo os autores pretendem, por um lado, desafiar o leitor a refletir, sob o ponto de vista ético, sobre as principais potencialidades e riscos da teleconsulta e, por outro lado, definir algumas linhas orientadoras que permitam otimizar a sua utilização.

Tecnologias da informação e comunicação aplicadas à saúde

A prestação de serviços de saúde com recurso às TIC tem sido utilizada em diversos contextos, desde a esfera individual (diagnóstico e/ou tratamento, mecanismos de consulta, cuidados domiciliários etc.) até à esfera social (catástrofes, informações de saúde prestadas virtualmente, assessoria por especialistas, educação contínua/capacitação e prevenção) ⁵ - ⁷ . Em ambos os casos, tem as mesmas caraterísticas de base: o distanciamento entre os intervenientes e o uso das TIC como ferramenta para mediar as interações, em substituição da presença física ⁸ .

Iremos centralizar a nossa atenção na teleconsulta, cujos principais riscos e potencialidades se sumarizam no Quadro 1 , entendida como a interação síncrona entre o utente e o profissional de saúde utilizando qualquer forma de telecomunicação (telefone, telemóvel, plataformas que permitem videoconferência/videochamada), sem realização de exames clínicos e sem a obrigatoriedade de presença de um segundo profissional de saúde ² , ⁹ - ¹¹ . Essa decisão tem três razões centrais: 1) o aumento exponencial da utilização da teleconsulta ¹² ; 2) os desafios éticos que tal utilização sustenta ¹³ ; bem como 3) o facto de os estudos realizados no campo da teleconsulta se focarem mais nos aspetos formais, como proteção de dados e consentimento informado ¹⁴ , do que nos (multi)relacionais.

Quadro 1
Potencialidades e riscos/barreiras da teleconsulta

Potencialidades	Riscos/barreiras
Amplia o acesso a cuidados especializados a locais onde não estão disponíveis 14 - 16	Problemas com a garantia de privacidade e segurança dos dados 5 , 6 , 16 , 17
	Risco de falhas técnicas que prejudiquem a qualidade da prestação do serviço 14 , 31
	Dificuldades dos intervenientes no uso das TIC 17 , 29
Facilita uma melhor continuidade dos cuidados 12 , 14 , 17	Possível enfraquecimento da relação dos utentes com o profissional de saúde 13 - 16
Melhora a qualidade dos serviços prestados 3 , 5	Aversão à mudança/comodismo/falta de interesse e/ou de conhecimentos por parte dos profissionais de saúde 2 , 10 , 12 , 17 , 20 , 26 e dos utentes 6 , 27
Promove a autonomia e o autocuidado dos utentes 2 , 5 , 18	Redução excessiva de consultas presencias e domiciliárias 32 , 33
Auxilia na monitorização/continuidade dos cuidados sem necessidade de atendimento presencial 10 , 19 - 21	Falta de normas e regulamentos definidos 6 , 14 , 25 , 27 , 34 , 35
Reduz custos individuais (viagens, absenteísmo laboral) 5 , 12 , 14 , 16 , 22 e públicos 3 , 5 , 18	Dificuldades no acesso/exclusão digital 5 , 6 , 9
Reduz o risco de transmissão de doenças infetocontagiosas 10	Elevado ritmo de mudança 12 , 17
Aumenta a segurança no atendimento a utentes potencialmente perigosos 23	Sobrecarga laboral/dificuldade dos profissionais em integrar esta metodologia no seu fluxo de trabalho 12 , 20
Diminui o estigma social, sobretudo em meios pequenos 23 , 24	Ausência de exame físico e outros indicadores apenas passíveis de ser recolhidos presencialmente 12 , 16
Aumenta a satisfação dos utentes 4 , 23 , 25 - 27	Consumismo/aumento da procura por questões banais e pela facilidade de acesso 5 , 10 , 30 , 33 , 35 , 36
Melhora da comunicação entre o utente e o profissional de saúde 20 , 25 , 28 , 29	O utente pode considerar que a teleconsulta não deve ser paga 37
Aumenta a satisfação laboral dos profissionais de saúde 23 , 30	Necessidade de mudanças organizacionais 5 , 18

• TIC: tecnologias da informação e comunicação

Nesse contexto, impõe-se realizar uma reflexão acerca dos aspetos éticos e relacionais subjacentes à teleconsulta, de uma perspetiva prática e atendendo a sua multidimensionalidade.

Orientações éticas para a teleconsulta

Vários organismos, associações e investigadores têm vindo a guiar-se pelo objetivo de definir regras e orientações no âmbito da prestação de cuidados de saúde com recurso à teleconsulta. Assim existe consenso na consideração de que as principais preocupações éticas se centram na qualidade da relação profissional de saúde-utente, na competência técnica dos utilizadores e no respeito pelos vários princípios éticos: competência, responsabilidade, justiça/equidade, autonomia, não maleficência, beneficência, dignidade, confidencialidade, privacidade, honestidade e transparência ² , ³ , ¹¹ , ²⁹ , ³⁴ , ³⁸ - ⁴¹ .

Certamente não será por acaso que as preocupações éticas se têm centrado nesses domínios. Embora continuem a surgir novas tecnologias e novos modelos de atendimento, as responsabilidades éticas fundamentais dos profissionais de saúde mantêm-se inalteradas ⁶ , ⁴² , desde logo porque a prestação de cuidados de saúde é fundada num “pacto de confiança” entre o utente e o profissional de saúde ³ , ²⁹ , qualquer que seja o modelo de atendimento.

Consequentemente, a manutenção de tal pacto exige que o profissional de saúde tenha qualificações e experiência adequadas para dar resposta às necessidades do utente (competência); coloque o bem-estar do utente acima de outros interesses (beneficência e não maleficência); forneça ao utente as informações necessárias para que ele possa tomar decisões (respeito pela autonomia) ponderando riscos e limitações, assim como as alternativas existentes (honestidade e transparência); respeite e promova a proteção dos dados pessoais e de saúde do utente (confidencialidade e privacidade); e proporcione a cada pessoa, sem discriminação, os cuidados de que necessita (equidade) ⁶ , ³⁹ , ⁴³ .

Acresce que, quando às questões da saúde se associam tecnologias cada vez mais avançadas (como é o caso da teleconsulta), o uso proficiente, zeloso e prudente desses recursos acarreta novos desafios e responsabilidades adicionais, exigindo destreza na salvaguarda dos princípios éticos fundamentais que são eminentemente desafiados. De seguida, refletiremos sobre quatro desses desafios.

Equidade no acesso

Apesar do recurso à teleconsulta ter inúmeras vantagens, não é o modelo adequado de atendimento para todos os utentes nem para todas as condições clínicas ¹² . Por isso, é essencial fazer uma avaliação prévia que englobe o tipo e gravidade dos problemas de saúde apresentados, a natureza da intervenção necessária e a capacidade e recursos do utente para usar esse tipo de tecnologia ⁴⁴ .

Por outro lado, a teleconsulta não consegue melhorar o acesso aos cuidados de saúde àqueles que não pretendam ser atendidos nessa modalidade nem aos que não possuem os meios necessários para usar de maneira eficaz as tecnologias implicadas na teleconsulta, incluindo o acesso e/ou as competências. Alguns exemplos são: doentes mentais graves; idosos sem apoio social/familiar; iletrados; pessoas com capacidades percetivas, cognitivas ou psicomotoras diminuídas; pessoas sem condições habitacionais que permitam obter esses cuidados; residentes em zonas sem cobertura de rede; pessoas que se encontrem em ambientes que não ofereçam privacidade, entre outras ¹⁰ , ¹² , ¹⁴ , ²⁹ , ³⁰ , ³⁴ , ⁴³ , ⁴⁵ .

Nesse contexto é necessário garantir que as pessoas que mais precisam de melhorar o acesso aos cuidados de saúde não sejam as primeiras a ser excluídas quando se utilizam tecnologias alegadamente inclusivas. Ou seja, é essencial desenvolver esforços para que essas tecnologias atenuem, em vez exacerbar, as questões da equidade e da justiça social.

Alguns dos cuidados e medidas que podem ser tomadas para minimizar as desigualdades no acesso à teleconsulta são: 1) desenvolver e escolher equipamentos, programas e aplicações com base em critérios como facilidade de uso, baixo custo e possibilidade de capacitação do usuário à distância ⁵ , ⁴⁶ ; 2) promover a literacia digital ⁷ , ³² , ³⁴ (e.g. por meio de programas de treino prévio); 3) criar espaços dedicados à teleconsulta (como farmácias, lares, espaços das autarquias etc.) e/ou convocar intermediários locais habilitados ao uso das TIC ¹⁰ ; e 4) sensibilizar a indústria tecnológica para o facto de os atuais sistemas de telessaúde tenderem a ser de “tamanho único”, exigindo que todos se adaptem à tecnologia em vez de a tecnologia se adaptar a cada contexto individual ² , ⁶ , ⁴⁷ .

Em suma, as desigualdades no acesso à teleconsulta constituem uma importante questão ética, já que acentuam o perigo de o sistema de saúde se tornar injusto ² , ⁵ , ¹⁰ , ³⁴ . No entanto, com as devidas adequações e cuidados, esta ferramenta pode contribuir de forma determinante para melhorar a saúde global, a igualdade de oportunidades de acesso e a inclusão de grupos populacionais desprotegidos ⁵ , ⁴² , ⁴⁸ . Por isso, se oferecida de maneira justa e inclusiva, as oportunidades que a teleconsulta oferece podem superar as possíveis desvantagens ³⁴ , ⁴⁹ .

Riscos para a privacidade e proteção de dados

Um aspeto primordial da teleconsulta, tal como de outros recursos da telessaúde e da tradicional prestação de cuidados de saúde, é a salvaguarda da privacidade e a proteção das informações, sendo o seu desrespeito uma violação da dignidade dos utentes ⁹ , ¹⁰ , ²⁸ .

Na realidade, a prestação de cuidados de saúde com recurso às TIC envolve uma gama mais ampla de dispositivos e intervenientes do que o atendimento presencial ²⁹ , ⁵⁰ , o que implica riscos acrescidos para a proteção de dados e exige a adoção de medidas destinadas ao seu resguardo. Assim, uma vez que, para o utente, o sentido de privacidade centra-se mais na relação com o profissional de saúde do que nos sistemas pelos quais se comunica com ele ¹⁶ , os profissionais têm duas responsabilidades adicionais:

1. Ter consciência e conhecimento das limitações das tecnologias que usam ³⁴ e, auxiliados ou não por técnicos de informática, tomar atitudes cautelares, designadamente: avaliar sistematicamente a adequação, segurança e confiabilidade dos equipamentos, sistemas, programas e softwares que utilizam, para garantir a sua funcionalidade contínua ⁷ , ¹⁰ , ²⁶ ; manter os sistemas operativos atualizados (incluindo proteção antivírus) e optar pelas versões mais recentes das várias aplicações utilizadas; verificar se a rede local que utilizam (nos vários locais onde atuam) é segura e confiável ¹⁴ , ²⁶ ; utilizar firewalls para melhorar a segurança das redes ³ , ¹⁶ ; usar apenas software confiável e para o qual tenham formação e treino suficientes ²⁶ ; armazenar os dados de forma a prevenir o acesso de utilizadores não autorizados (por meio de hacking ou outro tipo de fraude), podendo para tal recorrer a palavras-passe ²⁶ , ³⁵ , ³⁷ e criptografia de ponto a ponto ³ , ¹⁴ , ¹⁶ , ²⁶ , ⁴⁹ ; e verificar, em todos os atendimentos, a identidade do utente (com maior cuidado quando realizados em modalidade sem sistema de vídeo, em que, não havendo possibilidade de reconhecimento visual, pode ser solicitada, por exemplo, uma palavra-passe) ¹⁶ , ²⁶ ;

2. Alertar os utentes e/ou seus representantes legais da possibilidade de surgir problemas com a segurança dos dados e informá-los sobre as medidas que devem ser tomadas para proteger informações confidenciais ¹⁰ , ³⁴ , ⁴⁹ .

Dados de saúde são considerados sensíveis e, portanto, têm proteção acrescida, prevista na Lei Geral de Proteção de Dados ⁵¹ de Portugal e nos códigos deontológicos e de conduta ética (quando existem) que regulam a atuação dos vários profissionais intervenientes. Na ausência de diretrizes formais específicas, essa proteção é amparada nos princípios morais de todos os que estão envolvidos na prestação de cuidados com recursos às TIC – tais como profissionais de saúde, utentes, administrativos, gestores e também técnicos de várias áreas, incluindo a informática –, os quais têm de ter consciência das suas responsabilidades em relação à privacidade de utentes e à proteção das informações de saúde ⁹ , ¹⁰ , ³⁴ .

Impacto na relação profissional de saúde-utente

A forma convencional de atendimento em saúde é representada pelo encontro presencial ²⁹ , ³⁸ . Todavia, a inovação em TIC está a mudar radicalmente o modo como os utentes percebem o tempo e a distância, contribuindo para remodelar a frequência, o espaço e a forma como interagem e se relacionam com os profissionais de saúde ⁴³ .

Há autores e profissionais de saúde que defendem que a verdadeira relação terapêutica se estabelece e se fortalece pelo contato pessoal ³³ , pelo toque ⁵² , e que, apesar dos avanços da tecnologia, ainda não é possível transmitir remotamente sensações advindas do contato físico ⁹ . Há mesmo quem considere que sem exame físico o serviço de saúde prestado não pode sequer ser designado de “consulta” ⁴ . Por sua vez, outros autores afirmam que esse modelo relacional com os profissionais de saúde é mais fácil e acessível para os utentes, aumenta o seu empoderamento, melhora a comunicação entre ambos ²⁰ , ²⁵ , ²⁸ , ²⁹ e torna possível a empatia ²³ .

Em qualquer dos casos, sempre se entenderá que a teleconsulta deverá ser um complemento ao atendimento presencial ⁴ , ²⁹ , ³⁴ , ³⁷ e que deve ocorrer quando o profissional de saúde já tem uma relação clínica prévia com o utente e conhecimento adequado acerca do problema que este apresenta ¹¹ , ⁵² , sendo desaconselhada a sua utilização em primeiras consultas ¹² , ⁴⁴ , ⁵³ .

Vários estudos demonstram que a teleconsulta tem contribuído para aumentar a satisfação dos utentes ²³ , ²⁵ - ²⁷ . Alguns dos fatores que contribuem para tal são: redução dos custos associados à consulta presencial (e.g. viagens, perdas remuneratórias ²² , ²³ ), maior tempo dado ao utente para falar ¹² (cerca de 2 minutos nas consultas presenciais e de 10 minutos nas consultas não presenciais ²⁵ ), maior contacto visual do profissional ⁴ , ²³ , redução do estigma social (sobretudo associado às doenças mentais ²² ), maior facilidade em abordar temas embaraçosos e maior sensação de controlo (sobretudo nas consultas com recurso a videoconferência ²³ ).

Da análise desses fatores resulta que os princípios éticos a salvaguardar e os cuidados que o profissional de saúde deve ter na teleconsulta são os mesmos que se aplicam às consultas presenciais ¹⁰ , acrescidos de alguns outros que podem ajudar a minorar os efeitos negativos da distância física ³ , ²³ , ²⁸ . É importante que o profissional de saúde se assegure de que o sistema de som e/ou imagem se encontra a funcionar nas devidas condições e, no caso da teleconsulta com recurso a vídeo, que a captação de imagem permita uma boa visualização dos intervenientes e a câmara digital esteja o mais próxima possível, para aumentar a sensação de proximidade.

A manutenção de contacto visual e a utilização de técnicas de escuta ativa também são essenciais. Outro cuidado fundamental relaciona-se com a verificação da compreensão do utente acerca do que lhe foi transmitido e da eventual necessidade solicitação da participação de familiares/cuidadores, sobretudo quando abordados assuntos mais sensíveis e/ou que impliquem indicações ou alterações terapêuticas.

Quando é utilizada de maneira correta, voluntária e cautelosa, a teleconsulta não subverte os ditames que sustentam e dignificam a relação do profissional de saúde com o utente, a qual deve ser construída por meio da empatia, da confiança e do respeito mútuo.

Beneficência, não maleficência e autonomia

As atividades que envolvem a vida, a saúde e a integridade física, mental e social dos indivíduos devem ser pautadas por diversos princípios e valores (que podem entrar em conflito), como é o caso do respeito pela autonomia sem prejuízo da beneficência. Frequentemente, os profissionais da saúde enfrentam dilemas éticos de difícil solução, mais ainda num cenário em que se perspetiva uma crescente supremacia do princípio da autonomia comparativamente aos princípios oriundos da ética hipocrática.

Concretizando, o profissional de saúde tem liberdade e independência para decidir se recomenda a teleconsulta, mas tal decisão deve basear-se no benefício e segurança do utente ⁵ , ⁴⁹ , ⁵² e ser apresentada apenas quando considerada a melhor opção disponível (em termos de qualidade, acesso e custo). Por sua vez, tal recomendação também só deve ser concretizada se dela não resultar dano, direto ou indireto para o utente ² , devendo assim abster-se o seu uso em pessoas vulneráveis ou cuja vulnerabilidade possa ser acrescida em virtude do seu uso.

Na relação profissional de saúde-utente a autonomia técnico-científica do profissional coexiste com a autonomia do utente, que lhe outorga o direito de ser respeitado na sua opinião e decisão ¹³ , ⁴⁶ , ⁵⁴ . Assim sendo, a recusa do utente é uma contraindicação para a utilização da teleconsulta ²³ , que o profissional deve respeitar, sem que isso afete a qualidade e celeridade do seu atendimento ¹⁰ .

Todavia, mesmo diante do pedido do utente, o profissional não deixa de ser responsável pelos resultados advindos da sua intervenção e cabe a ele discernir os casos em que a teleconsulta é adequada ou não, pelo que a decisão terá de ser partilhada ¹⁰ , ⁵⁵ e baseada em vários critérios de elegibilidade.

No primado do respeito pela autonomia, o profissional de saúde deve assegurar-se de que o utente (ou o seu representante legal) tem capacidade para compreender as informações prestadas e também capacidade para entender a sua responsabilidade no processo ¹¹ , ³¹ . Por outro lado, para garantir ao utente o exercício pleno da sua autonomia, devem-lhe ser facultadas todas as informações relevantes, individualizadas e atempadas, sobre riscos, benefícios e implicações da teleconsulta, permitindo-lhe assim tomar decisões de forma livre, consciente e informada ¹⁰ , ³⁴ . É nesse âmbito que o consentimento informado na prática da teleconsulta é determinante e obrigatório ¹⁰ , ¹¹ , ⁵⁶ .

De acordo com as regras comuns do consentimento informado, a informação prestada deve abranger a natureza, os benefícios, os riscos e as alternativas ao atendimento à distância. Além disso, precisa conter elementos que não sejam meramente estruturais, mas sim acessíveis e informativos, e resultar numa decisão do utente que seja o reflexo genuíno da sua escolha autónoma.

Todavia, dadas as especificidades da teleconsulta – o utente não consente apenas o ato, mas também a forma remota pela qual será realizado –, é aconselhável adequar os modelos tradicionais de consentimento informado, tanto em termos de conteúdo como de formato, salvaguardando os desafios adicionais que a teleconsulta ocasiona ¹⁴ , ³⁴ . Assim, nesse contexto, o consentimento deve ser expresso e apresentado por escrito ²⁶ – presencialmente ou enviado por correio postal ou correio eletrónico, neste último caso podendo tornar-se difícil verificar a identidade da pessoa que assina o documento ²⁷ – e complementado com informação oral.

Deve ainda incluir informações claras e precisas acerca:

• Das limitações do diagnóstico e intervenção/tratamento à distância ³⁹ , ⁴⁰ ;

• Da tecnologia envolvida no atendimento, na recolha de dados e seu armazenamento ⁵⁰ ;

• Da possibilidade de os sistemas tecnológicos poderem falhar devido a circunstâncias alheias ao profissional de saúde (e.g. falha na rede, mau funcionamento da câmara digital etc.);

• Da possibilidade de os sistemas poderem dificultar que o profissional de saúde transmita informação ao utente como se estivesse presente (e.g. partilha de imagens ou documentos);

• De não poder ser garantida a confidencialidade da informação do utente, devido ao problema de acessos não autorizados que todos os sistemas eletrónicos têm (“ hackers ”);

• Do carácter revogável do consentimento ¹³ , ²⁶ , ⁴⁶ , podendo o utente retomar a exclusividade do atendimento presencial ³ sem que isso ocasione qualquer discriminação ou penalização quanto à qualidade do atendimento ¹⁰ ;

• Do facto de, apesar de não ser possível verificar a presença de terceiras pessoas durante o atendimento, ambas as partes se comprometem a garantir que tal não ocorra, sem o prévio consentimento da outra;

• Do modo de funcionamento da teleconsulta (duração prevista, sujeita a programação e agendamento prévio etc.) ²⁶ .

É preciso ressalvar que todo esse procedimento (formulação, apresentação e devolução do consentimento informado) será sempre posterior a uma primeira fase em que o profissional de saúde deverá avaliar a adequabilidade da utilização da teleconsulta e ponderar benefícios e riscos para cada caso. De seguida, deverá discutir com o utente se o uso desta ferramenta é apropriado e que tipos de problemas podem ser tratados por esta via, clarificando expectativas ⁴⁹ e alertando para o facto de a teleconsulta não substituir a consulta presencial em todas as situações.

Também é necessário informar o utente acerca dos aspetos técnicos e de segurança implicados – como a necessidade de um sistema de verificação da identidade antes de iniciar cada teleconsulta – e, sempre que possível, deve-se facultar ao utente informação escrita sobre o adequado uso da teleconsulta. É importante que, ainda nesta fase, se esclareçam os honorários associados ao serviço e a forma de pagamento (se aplicável) ³¹ , ³⁹ , ⁴⁰ .

Finalmente, importa salientar que o respeito pela autonomia é bilateral, ou seja, é um direito que assiste tanto o profissional como o utente. Relativamente a esse último, é essencial que a decisão seja livre, nunca motivada por qualquer tipo de incentivo (incluindo a priorização no atendimento) e/ou pelo evitamento de consequências negativas em caso de recusa (como a demora ou falta de acesso aos serviços de saúde) ³⁴ . Quanto ao profissional de saúde, a utilização de ferramentas de atuação como a teleconsulta não deve ser imposta, sob pena de gerar significativas resistências ⁵ , ⁸ .

Um modus operandi mais conservador, a manutenção de determinadas rotinas e procedimentos de trabalho, incertezas e receio do risco e do erro, entre outros aspetos, são questões de ordem pessoal que devem ser respeitados. Entretanto, uma adequada formação e treino são a forma mais eficaz de capacitar e estimular os profissionais de saúde a integrar a teleconsulta como mais uma ferramenta de trabalho.

Em suma, a teleconsulta não cria problemas, mas deixa transparecer (e pode amplificar) os problemas já existentes no sistema tradicional de prestação de cuidados de saúde. Essa modalidade de relacionamento com o utente coloca importantes desafios éticos aos profissionais de saúde, pelo que a sua utilização exige cuidados acrescidos. Nesse contexto, e depois da análise de todas as questões abordadas, os autores apresentam uma proposta de orientação para uma boa utilização da teleconsulta (Apêndice 1).

Considerações finais

Os avanços tecnológicos aplicados à saúde deixam antever um cenário com inúmeras oportunidades, mas não menos responsabilidades éticas. Inquestionavelmente, a teleconsulta tem enorme potencial para melhorar a qualidade e o acesso aos cuidados de saúde. Todavia, a complexidade da inovação tecnológica, a falta de evidências científicas sobre a eficácia da prestação de cuidados de saúde à distância e os riscos a ela associados exigem a criação de condições seguras para implementar a teleconsulta nas rotinas da prestação de cuidados de saúde. Tais condições implicam, desde logo, um esforço colaborativo entre ciência, prática assistencial, direito, política e ética, exigindo também uma utilização baseada em evidências científicas que validem sua qualidade, benefício e efetividade. Paralelamente, deve ser garantido um atendimento combinado, complementar, mas nunca substitutivo ao atendimento presencial, que priorize a inclusão (para todos) e individualização (para cada um) e, ainda, que não abra caminho para a coisificação, mas sim para a humanização e o fortalecimento das relações.

As normas orientadoras e a garantia das condições apropriadas para a utilização da teleconsulta são a base de uma conduta ética adequadamente protetora, tendo em vista a prestação de cuidados seguros e de qualidade. Ainda assim, a aplicação das TIC à prestação de cuidados de saúde, até pelo seu rápido desenvolvimento, continuará a suscitar questões éticas, que servirão como guia para a ação – procura de soluções e redução das vulnerabilidades.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  27 Out 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  12 Abr 2022
• Revisado
  28 Nov 2022
• Aceito
  13 Jun 2023