Acessibilidade / Reportar erro

Bioética e limitações às liberdades em tempos de covid-19

Resumo

Este artigo analisa a Lei 13.979/2020 (Lei da Quarentena), segundo os princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos . O estudo tem como objetivo identificar os principais pontos de contato e distanciamento entre esses dois marcos legais em relação às determinações impostas pelo primeiro para enfrentar a covid-19. Utilizou-se pesquisa bibliográfica e documental, com base na legislação constitucional, em normas do Executivo e no regulamento internacional sobre bioética. A comparação entre os ditames da Lei 13.979/2020 e os princípios da referida mostra que a lei exibe conteúdo de princípios consoantes ao campo da bioética. O cumprimento de medidas sanitárias implica reconhecer e valorizar a dignidade humana e cuidar da própria vulnerabilidade e da do outro.

Direitos humanos; Bioética; Saúde pública

Abstract

This study analyzes Law 13,979/2020 (Quarantine Law), according to the principles established by the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights , to identify the main similarities and differences between both legal frameworks in terms of the determinations imposed by the former to combat COVID-19. A bibliographic and documental search was conducted on constitutional legislation, on the Executive’s norms, and on international regulations about bioethics. Comparison between the dictates of Law 13,979/2020 and the declaration’s principles shows that the law is in line with the field of bioethics. Compliance with health measures implies recognizing and valuing human dignity and caring for one’s own vulnerability and that of others.

Human rights; Bioethics; Public health

Resumen

Este artículo analiza la Ley 13.979/2020 (Ley de la Cuarentena) bajo la mirada de los principios de la Declaración Universal sobre Bioética y Derechos Humanos . Su objetivo es identificar los principales puntos semejantes y diferentes entre estos dos marcos legales respecto a las determinaciones legales para enfrentar la COVID-19. Se utilizó la investigación bibliográfica y documental a partir de la legislación constitucional, de las normas del Ejecutivo y de la normativa internacional en materia de bioética. La comparación entre los dictámenes de la Ley 13.979/2020 y sus principios apunta que la ley contiene principios en consonancia con el campo de la bioética. El cumplimiento de las medidas sanitarias implica reconocer y valorar la dignidad humana y cuidar la vulnerabilidad de sí y de los demás.

Derechos humanos; Bioética; Salud publica

A pandemia de covid-19, em razão de sua magnitude e de seus efeitos, instaurou um novo período na história da saúde, da economia e da política mundiais, representando uma ameaça em todos esses âmbitos. A despeito da ocorrência de outras pandemias, a população mundial mostrou-se despreparada para enfrentá-la. Embora a sociedade esteja mais desenvolvida científica e tecnologicamente, tornou-se mais complexa e carreada de crises – de sentido, ambiental, econômica, racial, étnica e ética –, o que maximizou as desigualdades e tensões sociais.

Nesse contexto, ressurgem embates entre as áreas social, econômica, política e jurídica, haja vista as decisões sanitárias e políticas adotadas para conter ou mitigar os efeitos da pandemia sobre a saúde pública. Esses embates afetam diretamente o Estado democrático de direito em seus princípios de constitucionalidade, democracia, direitos fundamentais, divisão de poderes e justiça social.

As medidas sanitárias adotadas para conter a disseminação da covid-19 foram idealizadas na perspectiva de uma sociedade homogênea e uma temporalidade abstrata. Todavia, a realidade de pronto revelou dilemas e conflitos nos vários contextos complexos dos estados e das cidades brasileiras: barreiras econômicas, sociais, culturais e políticas interpuseram problemas para o cumprimento das medidas; os limites do poder e das ações de intervenção do Estado foram questionados, abrindo caminho para possíveis desordens e judicializações.

Emergiram muitas questões que demandam soluções éticas e bioéticas aceitáveis, tanto em relação à ciência e às tecnologias – que exigem novos parâmetros de uso e de pesquisa de medicamentos e vacinas para enfrentar a doença – quanto às decisões e aos instrumentos políticos e legislativos adotados para conter sua disseminação e impacto socioeconômico.

Diante desse cenário de riscos e ameaças, surgem inquietações e questionamentos sobre a defesa dos direitos humanos e dos direitos fundamentais e sobre possíveis retrocessos, com consequências danosas sobre políticas públicas já conquistadas. Esses aspectos motivaram a produção de um estudo acadêmico que possibilitasse, ainda que parcialmente, seguir um caminho para fazer uma análise crítica e fornecer algumas respostas.

Este estudo analisa a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 (Lei da Quarentena – enfrentamento à pandemia de coronavírus 2019) 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
, segundo os princípios (cabíveis) da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
https://bit.ly/3zSncps...
. O objetivo é identificar os principais pontos de convergência e distanciamento entre esses dois marcos legais no que tange às determinações impostas pelo primeiro para enfrentar a covid-19.

A discussão está restrita aos cenários, ainda prematuros, apresentados no período de pandemia e às incipientes abordagens teóricas e analíticas sobre o problema. Todavia, é importante fazê-lo, porque são situações difíceis e periclitantes para a ordem e a segurança públicas. Requer esclarecimentos e afirmações de âmbito jurídico-constitucional sobre as situações em que o direito deve manifestar-se como campo teórico, acadêmico e da práxis, dada sua importância para a saúde global e local.

A pesquisa seguiu o método dedutivo como abordagem, além do procedimento descritivo crítico. Adotou-se método qualitativo de pesquisa bibliográfica em livros e artigos científicos, pesquisa documental em legislação nacional – a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
https://bit.ly/3P525Z8...
e a Lei 13.979/2020 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
–, bem como o Regulamento Sanitário Internacional (RSI) 44. Brasil. Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 21-A, p. 1, 30 jan 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w1iDZJ
https://bit.ly/3w1iDZJ...
, os Princípios de Siracusa 55. United Nations. American Association for the International Commission of Jurists. The Siracusa principles on the limitation and derogation provisions in the international covenant on civil and political rights [Internet]. New York: United Nations; 1984 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3QCP9Ls
https://bit.ly/3QCP9Ls...
, a DUBDH 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
https://bit.ly/3zSncps...
e uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) 66. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.625 – DF. Requerente: Partido Rede Sustentabilidade. Intimados: Presidente da república e Congresso Nacional. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. STF [Internet]. 8 mar 2021 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3jIuwS2
https://bit.ly/3jIuwS2...
.

A abordagem de análise crítica considera a bioética de intervenção, porque esta reconhece e valoriza a dimensão social para a análise e a compreensão do processo saúde-doença-cuidado, bem como por sua importância para a análise da discussão, da elaboração e da execução de políticas públicas de saúde.

Contexto da pandemia no Brasil

Inicialmente considerada uma nova doença respiratória, causada por um novo coronavírus, no fim de 2019, na província de Wuhan (China), a covid-19 espalhou-se por vários países, em todos os continentes. Em 11 de março de 2020, a situação foi oficialmente caracterizada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 77. Organização Pan-Americana da Saúde. OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. OPAS [Internet]. 11 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3XtpB5r
https://bit.ly/3XtpB5r...
.

No Brasil, em consonância com os protocolos do RSI 44. Brasil. Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 21-A, p. 1, 30 jan 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w1iDZJ
https://bit.ly/3w1iDZJ...
, o Ministério da Saúde (MS) declarou a covid-19 uma emergência de saúde pública 88. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 454, de 20 de março de 2020. Declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 55-F, p. 1, 20 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H1q8pX
https://bit.ly/3H1q8pX...
. Seguindo o RSI, o Congresso Nacional e o Poder Executivo aprovaram, em 6 de fevereiro de 2020, a Lei 13.979 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
, com medidas não farmacológicas destinadas a proteger a comunidade e lidar com a emergência resultante da pandemia, as quais incluem:

  1. Isolamento;

  2. Quarentena;

  3. Realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas, ou tratamentos médicos específicos;

  4. Uso obrigatório de máscaras de proteção individual;

  5. Estudo ou investigação epidemiológica;

  6. Exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

  7. Restrição excepcional e temporária de trânsito por rodovias, portos ou aeroportos (de entrada e saída do país e locomoção interestadual e intermunicipal);

  8. Requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, garantido pagamento posterior de indenização justa 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
    https://bit.ly/3H2pHvI...
    .

Ainda, conforme determinação da Portaria MS 365/2020 99. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 356, de 11 de março de 2020. Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 49, p. 185, 12 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3k4SWor
https://bit.ly/3k4SWor...
, o MS anunciava a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei 13.979/2020, indicando como as medidas poderiam ser adotadas no território nacional. Em 13 de março, o MS e as secretarias estaduais de saúde de todo o país anunciaram recomendações e medidas estratégicas para evitar a propagação da doença. O MS reconheceu que a transmissão comunitária estava ocorrendo em todo o país 88. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 454, de 20 de março de 2020. Declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 55-F, p. 1, 20 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H1q8pX
https://bit.ly/3H1q8pX...
.

Essas medidas foram determinadas com base em evidências científicas e análises de informações estratégicas em saúde divulgadas pela OMS. Não havia vacina contra esse novo vírus e a profilaxia medicamentosa estava em estágio insuficiente de desenvolvimento e comprovação 1010. Croda J, Oliveira W, Frutuoso R, Mandetta L, Baia-da-silva D, Brito-Sousa JD et al. Covid-19 in Brazil: advantages of a socialized unified health system and preparation to contain cases. Rev Soc Bras Med Trop [Internet]. 2020 [acesso 10 dez 2022];53(7):1-6. DOI: 10.1590/0037-8682-0167-2020
https://doi.org/10.1590/0037-8682-0167-2...
.

Além dos efeitos diretos da doença sobre a saúde das pessoas e o sistema de saúde, as medidas não farmacológicas instituídas limitavam o exercício de direitos individuais e/ou coletivos, restringindo o direito de ir e vir livremente, suspendendo e/ou regulando o funcionamento de estabelecimentos industriais, comerciais e serviços, inclusive de transportes, limitando o direito ao trabalho de ambulantes etc.

Nesse contexto, os problemas gerados pelos efeitos da pandemia começaram a ser divulgados pela mídia, órgãos públicos, organizações e entidades civis nacionais. De início, mostravam casos isolados de desobediência ao isolamento e ao distanciamento social e ao uso de máscaras; aos poucos, revelavam-se os impactos sociais, econômicos, políticos e jurídicos sobre o comportamento e a conduta de pessoas e governantes em relação às medidas sanitárias.

À crise sanitária, econômica e social acrescentou-se a crise de abastecimento da vacina contra covid-19, o que representa mais uma luta pelo acesso à saúde pública e uma frustração na expectativa de suspensão definitiva das medidas sanitárias. O desejo de que a vida cotidiana volte às condições de liberdades individuais e coletivas plenas ainda não pode ser realizado. As limitações continuam.

Limites às liberdades fundamentais e direito à saúde

A garantia e a promoção de direitos fundamentais – como direito à saúde – requerem atuações e ações estatais específicas por meio de leis e políticas públicas, inclusive limitando e impondo restrições às atuações e ações do poder público. Por outro lado, há casos em que, para garantir e promover esses direitos, é o poder estatal o responsável por impor limitações e restrições ao indivíduo, às pessoas jurídicas de direito privado ou à coletividade.

É o caso da Lei 13.979/2020 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
, elaborada segundo os preceitos cabíveis do RSI 44. Brasil. Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 21-A, p. 1, 30 jan 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w1iDZJ
https://bit.ly/3w1iDZJ...
, com medidas a serem adotadas para enfrentar o surto do novo coronavírus. De início, a vigência estava prevista até a duração da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional declarada pela OMS, que posteriormente reconheceu a existência da pandemia de covid-19, em 11 de março de 2020. A duração foi alterada pelo Decreto Legislativo 6/2020 1111. Brasil. Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 55-C, p. 1, 20 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3QBMDoJ
https://bit.ly/3QBMDoJ...
, que reconheceu, exclusivamente para os fins de dispensas do alcance de resultados fiscais, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do presidente da república.

Todavia, a vigência foi prorrogada por força de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.625-DF 66. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.625 – DF. Requerente: Partido Rede Sustentabilidade. Intimados: Presidente da república e Congresso Nacional. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. STF [Internet]. 8 mar 2021 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3jIuwS2
https://bit.ly/3jIuwS2...
, ajuizada pelo partido político Rede Sustentabilidade. Vige até que os poderes Legislativo e Executivo decidam sobre o tema, com extensão limitada a 31 de dezembro de 2021 ou até o término da emergência internacional de saúde decorrente do coronavírus, o que ocorrer por último 66. Brasil. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.625 – DF. Requerente: Partido Rede Sustentabilidade. Intimados: Presidente da república e Congresso Nacional. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. STF [Internet]. 8 mar 2021 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3jIuwS2
https://bit.ly/3jIuwS2...
.

A Lei 13.979/2020 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
apresenta novidades em termos de aplicação de medidas no âmbito da ordem jurídica brasileira, com significativas determinações que regulamentam matérias de saúde pública relacionadas ao enfrentamento da pandemia de covid-19. É o que consta, principalmente, no conteúdo de todo o art. 3º ( Quadro 1 ).

Quadro 1
Sumário das determinações da Lei 13.979/2020 e do Regulamento Sanitário Internacional

Observa-se a instituição de limites relacionados ao exercício de direitos fundamentais (individuais e coletivos) que constam na CRFB/88, mas também garantias para que não haja extrapolações. São garantias como as que constam nos §§ 2º, 7º-C e 9º do art. 3º e nos arts. 5º e 6º: limitação espacial e temporal das medidas; segurança do direito à informação, assistência à família, tratamento gratuito; respeito à dignidade, aos direitos humanos, às liberdades fundamentais e às condições das pessoas incapazes e vulneráveis; resguardo do funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais; e sigilo das informações pessoais ( Quadro 1 ).

Importante destacar que o RSI 44. Brasil. Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 21-A, p. 1, 30 jan 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w1iDZJ
https://bit.ly/3w1iDZJ...
obedece aos ditames da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) 1212. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos [Internet]. Paris: ONU; 1948 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3XreTfW
https://bit.ly/3XreTfW...
, dos Princípios de Siracusa (1984) 55. United Nations. American Association for the International Commission of Jurists. The Siracusa principles on the limitation and derogation provisions in the international covenant on civil and political rights [Internet]. New York: United Nations; 1984 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3QCP9Ls
https://bit.ly/3QCP9Ls...
e da Declaração de Viena (1993) 1313. Organização das Nações Unidas. Declaração e Programa de Ação de Viena [Internet]. Viena: ONU; 1993 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3WjEhDy
https://bit.ly/3WjEhDy...
. Como país-membro da Organização das Nações Unidas (ONU) e signatário, o Brasil adota esses documentos e acata as propostas neles delineadas, conforme rege o art. 5º, §§ 2º e 3º, da CRFB/88 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
https://bit.ly/3P525Z8...
.

Os Princípios de Siracusa 55. United Nations. American Association for the International Commission of Jurists. The Siracusa principles on the limitation and derogation provisions in the international covenant on civil and political rights [Internet]. New York: United Nations; 1984 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3QCP9Ls
https://bit.ly/3QCP9Ls...
determinam que limitações ou restrições aos direitos fundamentais devem atender aos seguintes critérios: ter previsão em lei; ser baseadas em evidências científicas; ser justificadas em um interesse coletivo legítimo; ser estritamente necessárias em uma sociedade democrática; alicerçar-se em meios menos invasivos e restritivos disponíveis; ter aplicação não arbitrária ou discriminatória; ter duração limitada; e ser sujeitas à revisão.

Entre os motivos que fundamentam a limitação ou restrição aos direitos fundamentais, destaca-se a saúde pública, a fim de permitir que um Estado tome medidas para impedir uma ameaça grave à saúde da população ou de qualquer um de seus membros. Essas medidas devem ser específicas para prevenir doenças, ferimentos ou fornecer assistência a enfermos e feridos, além de considerar os padrões internacionais de saúde da OMS 55. United Nations. American Association for the International Commission of Jurists. The Siracusa principles on the limitation and derogation provisions in the international covenant on civil and political rights [Internet]. New York: United Nations; 1984 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3QCP9Ls
https://bit.ly/3QCP9Ls...
.

Ao declarar a saúde como um direito fundamental e como bem público (arts. 6º e 196), a Constituição Federal de 1988 33. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
https://bit.ly/3P525Z8...
instituiu-a e protegeu-a com mecanismos formais e mediante princípios e subprincípios constitucionais contra a atuação arbitrária e abusiva do Estado: a dignidade da pessoa humana como princípio fundador (art. 1º, III), o princípio da legalidade (arts. 5º, II e 37), o interesse público e o bem comum (art. 193).

Diante do exposto, compreende-se que a Lei 13.979/2020 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
limita e condiciona o exercício de liberdades individuais e coletivas em prol da saúde pública durante a pandemia de covid-19, mas em conformidade com os ditames legais de acordos internacionais e de preceitos constitucionais.

Defesa dos direitos fundamentais em ações sanitárias

Com a revisão e ampliação da DUBDH 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
https://bit.ly/3zSncps...
em 2005, a concepção de bioética foi expandida para dar respostas mais adequadas aos problemas da sociedade, por meio de um entendimento mais humanista e comunitário, relacionado ao desenvolvimento humano. Além das questões sobre conflitos éticos provenientes da evolução científica e tecnológica, de novos tratamentos e da saúde pública em geral, agregou abordagens sobre desigualdades e injustiça social 1414. Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics [Internet]. 2003 [acesso 10 dez 2022];17(5-6):399-441. DOI: 10.1111/1467-8519.00356 .

Das análises bioéticas sobre esses conflitos e problemas sociais surgiram valores humanos que precisam ser resguardados e direitos que devem ser garantidos mediante instrumentos jurídicos que delineiem e delimitem ações no contexto de direitos humanos.

O conteúdo dessa nova DUBDH 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
https://bit.ly/3zSncps...
democratiza a agenda da bioética do século XXI, tornando-a mais aplicada e comprometida com o aperfeiçoamento da cidadania e dos direitos humanos universais 1515. Garrafa V, Porto D. Apresentação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Brasília: Biblioteca Virtual em Saúde; 2005 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3wMwmnb
https://bit.ly/3wMwmnb...
. A DUBDH é uma norma do Soft Law , não vinculante, de caráter solene e que estabelece princípios gerais ou metas de longo prazo.

Esse documento harmoniza-se com todo o corpo de instrumentos jurídicos, sociais e econômicos adotados pela ONU, que têm como fulcro a Declaração Universal dos Direitos Humanos . Também recepciona os instrumentos internacionais e regionais anteriormente proclamados no domínio da bioética 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
https://bit.ly/3zSncps...
. Entre os objetivos da DUBDH (art. 2º), destacam-se, como aqueles que mais explicitam preocupações sobre legislação e direitos fundamentais:

  1. Proporcionar um enquadramento universal de princípios e procedimentos que orientem os Estados na formulação de sua legislação, de suas políticas ou de outros instrumentos em matéria de bioética;

  2. Contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais, de modo compatível com o direito internacional relativo a direitos humanos 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
    https://bit.ly/3zSncps...
    .

A declaração revela-se importante porque consagra a bioética entre os direitos humanos internacionais e garante o respeito pela vida dos seres humanos e liberdades fundamentais, de modo que todos possam ser beneficiados pelos usos dos procedimentos que envolvem o processo saúde-doença-cuidado.

Com a incorporação do referencial dos direitos humanos, surgiram outras formas de abordagens teórico-críticas sobre bioética, com destaque para a bioética de intervenção (BI), elaborada por Volnei Garrafa e Dora Porto 44. Brasil. Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 21-A, p. 1, 30 jan 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w1iDZJ
https://bit.ly/3w1iDZJ...
, da Cátedra Unesco da Universidade de Brasília (UnB).

A BI tem papel de destaque na análise de ações sociais, sanitárias e ambientais, importante para a dimensão pública da ética, por sua função analítica de práticas em saúde pública, principalmente das formas de intervenções públicas. Propõe que as práticas intervencionistas colaborem para criar condições equilibradas entre indivíduos e Estados. Com esse fim, ocupa-se da realização universal do direito a uma vida digna, representada pela possibilidade de acesso à saúde e a outros direitos essenciais à sobrevivência humana 1414. Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics [Internet]. 2003 [acesso 10 dez 2022];17(5-6):399-441. DOI: 10.1111/1467-8519.00356 .

A BI considera os tratados internacionais de direitos humanos os parâmetros norteadores para as estratégias de intervenção, porque estará ancorada no reconhecimento de que tais documentos expressam consensualmente a moralidade coletiva na dimensão mundial ou, ao menos, a expectativa dos países em alcançar essa moralidade 1616. Garrafa V, Porto D. A influência da Reforma Sanitária na construção das bioéticas brasileiras. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2011 [acesso 10 dez 2022];16(1):719-29. DOI: 10.1590/S1413-81232011000700002 .

Com relação aos cuidados bioéticos em tempos de pandemia de covid-19, a ONU elaborou vários documentos alertando os países para terem cuidado ao tomar decisões e medidas relacionadas à covid-19. Para as Nações Unidas, as decisões e as práticas relacionadas ao enfrentamento da pandemia de covid-19 devem ser formuladas e implementadas com base nos fundamentos do respeito à dignidade humana e aos direitos humanos. Enfrentar a pandemia requer novas articulações entre saúde pública, bioética e direitos humanos 1717. Organización Panamericana de la Salud. Orientación ética sobre cuestiones planteadas por la pandemia del nuevo coronavirus (covid-19) [Internet]. Washington: OPS; 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3Xbgmr3
https://bit.ly/3Xbgmr3...

18. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. Declaração sobre a covid-19: considerações éticas sob perspectiva global. Declaração do Comitê Internacional de Bioética da UNESCO [Internet]. Paris: Unesco; 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3GJvgxy
https://bit.ly/3GJvgxy...
- 1919. World Health Organization. Ethics guidance on issues raised by the novel coronavirus disease (covid-19) pandemic [Internet]. Washington: PAHO; 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3ZMy7yG
https://bit.ly/3ZMy7yG...
.

Essa articulação já era defendida por Garrafa e colaboradores 2020. Garrafa V, Amorim K, Garcia T, Manchola C. Bioética e vigilância sanitária. Rev Dir Sanit [Internet]. 2017 [acesso 10 dez 2022];18(1):121-39. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v18i1p121-139 , ao indicar que a DUBDH enfatiza que sua elaboração é dirigida aos Estados, embora não se restrinja a estes. Isso significa que suas normas podem legitimar ações regulatórias e interventivas quando pertinentes e/ou necessárias.

Na perspectiva da bioética, a comparação entre os ditames da Lei 13.979/2020 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
e os princípios da DUBDH 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
https://bit.ly/3zSncps...
mostra que a referida lei exibe conteúdo consoante o campo da bioética. Os artigos da lei têm aspectos de fundamentalidades democráticas relacionadas aos direitos que, apesar de limitá-los, também os salvaguardam. Os princípios presentes nos artigos dessa lei, assim como os da DUBDH, originam-se dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do risco ( Quadro 2 ).

Quadro 2
Sistematização sumária das determinações da Lei 13.979/2020 e dos princípios da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos

Sobre a fundamentalidade democrática desses princípios, Garrafa e colaboradores 2020. Garrafa V, Amorim K, Garcia T, Manchola C. Bioética e vigilância sanitária. Rev Dir Sanit [Internet]. 2017 [acesso 10 dez 2022];18(1):121-39. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v18i1p121-139 explicam que as questões de regulamentação em saúde interferem no cotidiano das pessoas e, por esse motivo, estão relacionadas ao próprio conceito de cidadania.

Nota-se que os princípios da DUBDH 22. Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
https://bit.ly/3zSncps...
permeiam toda a Lei 13.979/2020 11. Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
https://bit.ly/3H2pHvI...
, não sendo possível traçar uma linearidade entre os artigos e princípios, pois ambos são multidimensionais. Alguns artigos exibem uma relação mais forte com princípios específicos, como o art. 3º, § 2º, da Lei 13.979/2020, e o art. 3º da DUBDH, que versam sobre respeito à dignidade humana e contra abusos e ilegalidades de restrições; e o art. 3º, § 7º, e o art. 5º da DUBDH sobre autonomia e pessoas vulneráveis.

O princípio de proteção do art. 16 (das gerações futuras) pode ser tomado de maneira ampla, uma vez que as medidas colocam sob responsabilidade das gerações atuais o cuidado de suas próprias vidas e saúde, resguardando, assim, a vida e a saúde das futuras gerações e a existência da humanidade. Considera-se que apenas o princípio do art. 17 da DUBDH (proteção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade) não apresenta relação direta com os artigos da Lei 13.979/2020.

Os arts. 3º, § 4º, e 3º-A, § 1º, da Lei 13.979/2020, que tratam da punibilidade (multas e/ou apreensões) por descumprimento das medidas, são os únicos pontos de distanciamento com a DUBDH, que não tem força punitiva nem as recomenda: sua força é moral e representa a vontade política dos países signatários, que devem fazer o máximo possível para implementá-la e respeitá-la; é de natureza declaratória, sem indicação ou recomendação sancionatória.

Tal distanciamento, porém, não implica desconformidade da Lei 13.979/2020 com os princípios bioéticos. Suas punições não são descabidas, pois cumprem os ditames constitucionais do ordenamento jurídico brasileiro, que se orientam por instrumentos legais internacionais sobre direitos humanos.

A abordagem de proteção das pessoas segundo os direitos humanos e os princípios da bioética está presente na Lei 13.979/2020. O Brasil adota documentos internacionais desenvolvidos no âmbito das Nações Unidas para defesa e respeito à dignidade da pessoa humana, à justiça, à paz, à igualdade, à democracia, à saúde e à inviolabilidade da vida, que são preceitos constitucionais do Estado democrático brasileiro.

Considerações finais

Este artigo buscou identificar os principais pontos de convergência e distanciamento entre a Lei 13.979/2020 e a DUBDH, no que tange às determinações impostas pela primeira para enfrentar a covid-19. Constatou-se que ambos os marcos legais apresentam convergências em seus artigos e princípios, tendo a promoção e a preservação da saúde e da dignidade humana como principais pontos.

A BI é uma abordagem teórico-crítica importante para verificar se uma intervenção em saúde pública considera as necessidades de tratamento ético de sujeitos concretos em determinada sociedade, cultura e tempo. No caso em estudo, a Lei da Quarentena – implementada para enfrentar a pandemia de covid-19 desde 2020 – leva em consideração a abordagem de proteção das pessoas segundo os direitos humanos e os princípios da bioética ao impor restrições e limitações de liberdades à sociedade brasileira.

A defesa do bem comum ecoa mais forte e torna-se mais necessária em tempos de emergências de saúde pública, em detrimento das liberdades individuais. As medidas sanitárias limitam os direitos fundamentais em nome do bem comum e do interesse público da saúde coletiva. O cumprimento destas implica reconhecer e valorizar a dignidade humana e cuidar da própria vulnerabilidade e da do outro.

Referências

  • 1
    Brasil. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 27, p. 2, 7 fev 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H2pHvI
    » https://bit.ly/3H2pHvI
  • 2
    Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Paris: Unesco; 2006 [acesso 10 dez 2022]. p. 6. Disponível: https://bit.ly/3zSncps
    » https://bit.ly/3zSncps
  • 3
    Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Presidência da República; 1988 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3P525Z8
    » https://bit.ly/3P525Z8
  • 4
    Brasil. Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 21-A, p. 1, 30 jan 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3w1iDZJ
    » https://bit.ly/3w1iDZJ
  • 5
    United Nations. American Association for the International Commission of Jurists. The Siracusa principles on the limitation and derogation provisions in the international covenant on civil and political rights [Internet]. New York: United Nations; 1984 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3QCP9Ls
    » https://bit.ly/3QCP9Ls
  • 6
    Brasil. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.625 – DF. Requerente: Partido Rede Sustentabilidade. Intimados: Presidente da república e Congresso Nacional. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. STF [Internet]. 8 mar 2021 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3jIuwS2
    » https://bit.ly/3jIuwS2
  • 7
    Organização Pan-Americana da Saúde. OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. OPAS [Internet]. 11 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3XtpB5r
    » https://bit.ly/3XtpB5r
  • 8
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 454, de 20 de março de 2020. Declara, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 55-F, p. 1, 20 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3H1q8pX
    » https://bit.ly/3H1q8pX
  • 9
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 356, de 11 de março de 2020. Dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 49, p. 185, 12 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3k4SWor
    » https://bit.ly/3k4SWor
  • 10
    Croda J, Oliveira W, Frutuoso R, Mandetta L, Baia-da-silva D, Brito-Sousa JD et al. Covid-19 in Brazil: advantages of a socialized unified health system and preparation to contain cases. Rev Soc Bras Med Trop [Internet]. 2020 [acesso 10 dez 2022];53(7):1-6. DOI: 10.1590/0037-8682-0167-2020
    » https://doi.org/10.1590/0037-8682-0167-2020
  • 11
    Brasil. Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, nº 55-C, p. 1, 20 mar 2020 [acesso 10 dez 2022]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3QBMDoJ
    » https://bit.ly/3QBMDoJ
  • 12
    Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos [Internet]. Paris: ONU; 1948 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3XreTfW
    » https://bit.ly/3XreTfW
  • 13
    Organização das Nações Unidas. Declaração e Programa de Ação de Viena [Internet]. Viena: ONU; 1993 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3WjEhDy
    » https://bit.ly/3WjEhDy
  • 14
    Garrafa V, Porto D. Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context of power and injustice. Bioethics [Internet]. 2003 [acesso 10 dez 2022];17(5-6):399-441. DOI: 10.1111/1467-8519.00356
  • 15
    Garrafa V, Porto D. Apresentação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos [Internet]. Brasília: Biblioteca Virtual em Saúde; 2005 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3wMwmnb
    » https://bit.ly/3wMwmnb
  • 16
    Garrafa V, Porto D. A influência da Reforma Sanitária na construção das bioéticas brasileiras. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2011 [acesso 10 dez 2022];16(1):719-29. DOI: 10.1590/S1413-81232011000700002
  • 17
    Organización Panamericana de la Salud. Orientación ética sobre cuestiones planteadas por la pandemia del nuevo coronavirus (covid-19) [Internet]. Washington: OPS; 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3Xbgmr3
    » https://bit.ly/3Xbgmr3
  • 18
    Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. Declaração sobre a covid-19: considerações éticas sob perspectiva global. Declaração do Comitê Internacional de Bioética da UNESCO [Internet]. Paris: Unesco; 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3GJvgxy
    » https://bit.ly/3GJvgxy
  • 19
    World Health Organization. Ethics guidance on issues raised by the novel coronavirus disease (covid-19) pandemic [Internet]. Washington: PAHO; 2020 [acesso 10 dez 2022]. Disponível: https://bit.ly/3ZMy7yG
    » https://bit.ly/3ZMy7yG
  • 20
    Garrafa V, Amorim K, Garcia T, Manchola C. Bioética e vigilância sanitária. Rev Dir Sanit [Internet]. 2017 [acesso 10 dez 2022];18(1):121-39. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v18i1p121-139

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2021
  • Revisado
    28 Nov 2022
  • Aceito
    01 Dez 2022
Conselho Federal de Medicina SGAS 915, lote 72, CEP 70390-150, Tel.: (55 61) 3445-5932, Fax: (55 61) 3346-7384 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: bioetica@portalmedico.org.br