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Testamento vital: conhecimento docente e acadêmico de uma escola médica

Resumo

Esta pesquisa busca avaliar o nível de conhecimento de acadêmicos e docentes do curso de medicina quanto à aplicabilidade do testamento vital, às decisões sobre finitude de vida e ao conceito de morte digna. Foi realizada pesquisa qualitativa, por meio de entrevista semiestruturada, com dez acadêmicos e cinco docentes de uma universidade do Sul do Brasil. Os dados foram obtidos por meio de análise do discurso e classificados nas seguintes categorias: conhecimento e aplicabilidade do testamento vital; visão do processo de finitude e morte digna; e o limiar entre a visão do médico e a autonomia do paciente. As conclusões reforçam a necessidade de difusão desse conhecimento para benefício do paciente e atitudes éticas amparadas legalmente por parte dos médicos.

Testamentos quanto à vida; Autonomia pessoal; Cuidados paliativos; Bioética

Abstract

This qualitative study evaluates the level of academic and faculty knowledge in a medicine program regarding the living will and its applicability, end-of-life decision making, and the concept of dignified death. Semistructured interviews were conducted with ten scholars and five professors from a university in southern Brazil. Data were obtained by discourse analysis and classified in the following categories: knowledge and applicability of living wills; view of the end-of-life process and dignified death; and the limits between the physician’s duty and patient autonomy. In conclusion, this knowledge required greater dissemination to benefit patients and legally supported ethical attitudes.

Leaving wills; Personal autonomy; Palliative care; Bioethics

Resumen

Esta investigación pretende evaluar el nivel de conocimiento de los académicos y docentes de medicina con respecto a la aplicabilidad del testamento vital, a las decisiones sobre el fin de la vida y al concepto de muerte digna. La investigación cualitativa se realizó mediante entrevistas semiestructuradas con diez académicos y cinco docentes de una universidad en el Sur de Brasil. Los datos se obtuvieron del análisis del discurso y se clasificaron en las siguientes categorías: conocimiento y aplicabilidad del testamento vital; visión del proceso de fin de la vida y muerte digna; y umbral entre la visión del médico y la autonomía del paciente. Las conclusiones refuerzan la necesidad de difundir este conocimiento en beneficio del paciente y las actitudes éticas legalmente apoyadas por los médicos.

Voluntad en vida; Autonomía personal; Cuidados paliativos; Bioética

O testamento vital é um documento de cunho jurídico em que o paciente delibera o tipo de procedimento médico ao qual deseja ser submetido quando a reversão de seu quadro clínico não for mais possível e ele não se encontrar apto a tomar decisões. As diretivas antecipadas de vontade (DAV) incluem a escolha de um representante para tomar as decisões em seu lugar, ao contrário do testamento vital, que contém apenas o registro antecipado da vontade do paciente 11. Chehuen Neto JA, Ferreira RE, Silva NCSD, Delgado ÁHDA, Tabet CG, Almeida GG et al. Testamento vital: o que pensam profissionais de saúde? Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 8 fev 2023];23(3):572-82. DOI: 10.1590/1983-80422015233094
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A ideia de que é preciso obter o consentimento do paciente tem origem hebraica e ganhou força com o Iluminismo. Contudo, somente após os experimentos humanos realizados durante a Segunda Guerra Mundial, o debate sobre a importância de se obter esse consentimento alcançou status de norma jurídica – com o Código de Nüremberg , em 1947 – e, posteriormente, de norma ética médica – com a Declaração de Helsinki , em 1964 22. Dadalto L. História do Testamento Vital: entendendo o passado e refletindo sobre o presente. Mirabilia Medicinæ [Internet]. 2015 [acesso 8 fev 2023];4:23-42. Disponível: https://bit.ly/43y6NGh
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. Originalmente proposto pela sociedade americana para o direito à eutanásia, o testamento vital surgiu nos Estados Unidos, em 1967, e tinha o objetivo de registrar a vontade dos pacientes de interromper a terapêutica do prolongamento artificial da vida 33. Lima MA. Testamento vital à luz do ordenamento jurídico brasileiro e o princípio pro homine. Ciads [Internet]. 2018 [acesso 8 fev 2023];7(1):12-28. DOI: 10.17566/ciads.v7i1.422
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No Brasil, o instituto comumente denominado “testamento vital” é uma espécie de gênero de diretivas antecipadas que são, segundo Sanchéz 44. Dadalto L. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Rev Bioét Derecho [Internet]. 2013 [acesso 8 fev 2023];(28):61-71. Disponível: https://bit.ly/3UPMWyf
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, um termo geral referente às instruções feitas por uma pessoa sobre os futuros cuidados médicos que receberá quando for incapaz de expressar sua vontade. Ainda não há legislação sobre a DAV no país, entretanto, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu a Resolução 1.805/2006 55. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.805, de 28 de novembro de 2006. Define que na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 28 nov 2006 [acesso 8 fev 2023]. Disponível: https://bit.ly/3LgAlkJ
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, que dá permissão ao médico para restringir procedimentos que prolonguem a vida de paciente em fase terminal ou com alguma doença incurável. Dessa forma, serão garantidos ao paciente os cuidados necessários para aliviar os sintomas que lhe causam sofrimento, sob a perspectiva de uma assistência integral.

Posteriormente, o CFM editou a Resolução CFM 1.995/2012 para regulamentar a conduta médica ante as DAV. Esses documentos são reconhecidos pelo CFM como manifestação da autonomia do paciente 22. Dadalto L. História do Testamento Vital: entendendo o passado e refletindo sobre o presente. Mirabilia Medicinæ [Internet]. 2015 [acesso 8 fev 2023];4:23-42. Disponível: https://bit.ly/43y6NGh
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, aderindo à validade das DAV e amparando o médico que seguir suas determinações.

O consentimento informado expressa o mais claro princípio de autonomia humana, estudado nos campos da medicina, da bioética e do direito 66. Campos MO, Bonamigo EL, Steffani JA, Piccini CF, Caron R. Testamento vital: percepção de pacientes oncológicos e acompanhante. Bioethikos [Internet]. 2012 [acesso 8 fev 2023];6(3):253-9. Disponível: https://bit.ly/3L7mm0r
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. Nesse contexto, o conhecimento sobre o testamento vital é necessário para a segurança e o respeito à autonomia do paciente e para a melhor opção em seu tratamento. Além disso, o documento garante ao profissional de saúde mais segurança em sua prática médica 11. Chehuen Neto JA, Ferreira RE, Silva NCSD, Delgado ÁHDA, Tabet CG, Almeida GG et al. Testamento vital: o que pensam profissionais de saúde? Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 8 fev 2023];23(3):572-82. DOI: 10.1590/1983-80422015233094
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Entretanto, a resolução não encontrou regulamentação no Código Civil 11. Chehuen Neto JA, Ferreira RE, Silva NCSD, Delgado ÁHDA, Tabet CG, Almeida GG et al. Testamento vital: o que pensam profissionais de saúde? Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 8 fev 2023];23(3):572-82. DOI: 10.1590/1983-80422015233094
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e gerou dúvidas sobre a difusão, a aceitação social e os princípios éticos relacionados ao testamento vital. Dessa forma, é necessário ampliar o conhecimento sobre ele e apregoá-lo no meio acadêmico, contribuindo para uma formação médica mais abrangente. Portanto, a avaliação do conhecimento de médicos e acadêmicos sobre esse instrumento se faz necessária, pois objetiva aprimorar a formação e a prática médica, da mesma forma que concede respeito à autonomia dos pacientes por eles atendidos.

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa que aborda a intensidade dos fenômenos e avalia seus significados e singularidades 77. Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2012 [acesso 8 fev 2023];17(3):621-6. DOI: 10.1590/S1413-81232012000300007
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, desenvolvida a partir de entrevistas semiestruturadas com dez perguntas norteadoras acerca do testamento vital e das DAV. Os participantes foram cinco docentes médicos da Universidade do Vale do Itajaí, SC, Brasil, cada um representando uma das grandes áreas da medicina: clínica cirúrgica; medicina de família e comunidade; clínica médica; pediatria e ginecologia; e obstetrícia. Também participaram dez acadêmicos do internato médico, sendo eles dois estudantes do 8º período, dois do 9º período, dois do 10º período, dois do 11º período e dois do 12º.

A escolha pelos alunos dessa fase possibilita melhor avaliação do nível de aprendizado dos estudantes, pois o conhecimento é obtido ao longo dos períodos e assim se pode inferir possíveis diferenças acerca do testamento vital no decorrer do internato médico. Os participantes da pesquisa foram convidados a partir do convívio das pesquisadoras por meio de um sorteio aleatório entre as turmas, independentemente de idade e gênero.

As entrevistas duraram em média 20 minutos e foram realizadas individual e presencialmente na universidade. Foram gravadas, com o consentimento dos entrevistados, para posterior transcrição e análise dos dados. Após a transcrição, os entrevistados foram identificados aleatoriamente da seguinte forma: Docente 1, Docente 2, Docente 3, Docente 4, Docente 5, Acadêmico 1, Acadêmico 2, Acadêmico 3, Acadêmico 4, Acadêmico 5, Acadêmico 6, Acadêmico 7, Acadêmico 8, Acadêmico 9 e Acadêmico 10. O número de participantes deveu-se ao método de saturação do discurso.

A coleta de dados foi realizada entre abril e julho de 2021 e seguida da pré-exploração do material das entrevistas, com o objetivo de reunir globalmente as principais ideias e seus significados gerais. Para a análise dos dados, utilizou-se o conjunto de técnicas da análise de conteúdo, que visa um equilíbrio entre a linguística tradicional e a hermenêutica. Sendo assim, buscou-se analisar a fala propriamente dita pelo entrevistado, de forma imparcial, mas também os conteúdos subjetivos envolvidos nela, ou seja, as conotações do campo semântico 88. Campos CJG. Método de análise de conteúdo: ferramenta para análise de dados qualitativos no campo da saúde. Rev Bras Enferm. 2004 [acesso 8 fev 2023];57(5):611-4. DOI: 10.1590/S0034-71672004000500019
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Resultados

Entrevistaram-se 15 participantes e, após análise das transcrições, três categorias de análise foram definidas: “conhecimento e aplicabilidade do testamento vital”, “visão do processo de finitude e morte digna” e “limiar entre a autonomia do paciente e a visão do médico e acadêmico de medicina”.

Conhecimento e aplicabilidade do testamento vital

Ao serem questionados quanto ao conhecimento do testamento vital, 90% dos acadêmicos e 80% dos docentes afirmaram não o conhecer. Porém, quando solicitados a defini-lo, todos os participantes o fizeram de forma adequada, como se percebe na fala a seguir:

“Ele pode escolher previamente se ele vai querer medidas invasivas, se vai querer ser intubado, cirurgias e tudo mais. E isso tem que acontecer enquanto ele estiver nas faculdades mentais ok, pode fazer esse tipo de testamento previamente” (Docente 2).

O testamento vital se assemelha à escritura de um testamento, pois configura-se como um documento jurídico, ou seja, uma declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o direito reconhece. Também é unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável, todavia os documentos divergem em duas características essenciais: a produção de efeitos post mortem e a solenidade 33. Lima MA. Testamento vital à luz do ordenamento jurídico brasileiro e o princípio pro homine. Ciads [Internet]. 2018 [acesso 8 fev 2023];7(1):12-28. DOI: 10.17566/ciads.v7i1.422
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Ainda foram observadas algumas definições equivocadas quanto ao testamento vital, como se percebe na seguinte fala:

“(...) durante a vida a gente pode doar 100% do nosso patrimônio, mas eu sei que depois de morto só pode gerir 50% de seu patrimônio, não mais do que isso, é a única coisa que eu sei” (Docente 1).

Em comparação com dados de estudo apresentado por Kulicz e colaboradores 99. Kulicz MJ, Amarante DF, Nakatani HTI, Arai Filho C, Okamoto CT. Terminalidade e testamento vital: o conhecimento de estudantes de medicina. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 8 fev 2023];26(3):420-8. DOI: 10.1590/1983-80422018263262
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, 69,8% dos entrevistados afirmaram não conhecer o conceito de testamento vital, e a maioria dos participantes (77,6%) relatou não ter tido oportunidade de discutir o tema durante a graduação.

Assim, evidencia-se a inadequação da nomenclatura “testamento vital” para designar declaração das determinações de uma pessoa acerca dos tratamentos aos quais não deseja ser submetida. Essa declaração vale para quando o indivíduo estiver em estado de terminalidade da vida e impossibilitado de manifestar sua vontade. Por essa razão, em estudo apresentado por Penalva 1010. Penalva, DL. Declaração prévia de vontade do paciente terminal [dissertação] [Internet]. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; 2009 [acesso 8 fev 2023]. Disponível: https://bit.ly/3A6oWxk
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, foi proposto que o documento passe a ser denominado no Brasil de “declaração prévia de vontade do paciente terminal”, proposta que vem sendo aceita pelos bioeticistas 44. Dadalto L. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Rev Bioét Derecho [Internet]. 2013 [acesso 8 fev 2023];(28):61-71. Disponível: https://bit.ly/3UPMWyf
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Ainda em relação à definição de testamento vital, foi avaliado outro equívoco na fala de alguns entrevistados: a confusão entre testamento vital e DAV. Isso ocorre, principalmente, em razão da constatação desses termos como sinônimos, como se nota na declaração dos acadêmicos:

“Para mim é a mesma coisa, eu não sei diferenciar os dois. Sei que é um direito. Eu acredito que seja um documento que tu escreves e deixa registrado em cartório com essas diretrizes de vontade, na minha concepção seja algo parecido com isso” (Acadêmico 3).

“Então é como eu falei, para mim vejo como sinônimos, mas pode estar errado, mas eu sempre vi como sinônimos” (Acadêmico 5).

O conceito de DAV surgiu em resposta ao avanço tecnológico e ao tratamento médico agressivo empregados em situações ambíguas, como no caso de prognóstico ruim. O cerne desse documento é o exercício da autonomia do paciente, cujas DAV foram designadas para protegê-lo. Portanto, quando perdida a capacidade de decisão do paciente, o documento garantirá sua autonomia acerca dos procedimentos médicos a que será submetido em detrimento da decisão de seu representante legal 1111. Nunes MI, Anjos MF. Diretivas antecipadas de vontade: benefícios, obstáculos e limites. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2014 [acesso 8 fev 2023];22(2):241-51. DOI: 10.1590/1983-80422014222005
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Há dois tipos de diretivas antecipadas: o testamento vital, no qual o paciente especifica os tratamentos médicos que devem ou não ser fornecidos em certas situações no futuro; e o durable power of attorney (DPA), traduzido como “mandato duradouro”, que consiste na autorização do representante legal ou do procurador para decidir pelo paciente no período em que este não estiver apto a fazê-lo 1111. Nunes MI, Anjos MF. Diretivas antecipadas de vontade: benefícios, obstáculos e limites. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2014 [acesso 8 fev 2023];22(2):241-51. DOI: 10.1590/1983-80422014222005
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As DAV são divididas em dois subgrupos: afirmação de valor e instrução diretiva. A primeira descreve as preferências gerais e os valores do paciente em relação ao tratamento médico de modo geral, mas não se dedica especificamente ao tratamento ou à enfermidade. Já a segunda expressa a preferência ou recusa por algum tratamento médico no contexto de determinada doença 1111. Nunes MI, Anjos MF. Diretivas antecipadas de vontade: benefícios, obstáculos e limites. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2014 [acesso 8 fev 2023];22(2):241-51. DOI: 10.1590/1983-80422014222005
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Com relação a aplicabilidade do testamento vital, 100% dos entrevistados disseram que nunca aplicaram nem presenciaram a aplicação do documento com algum paciente, como é visto nas seguintes falas:

“Não, nunca, não, nunca apliquei, nem vivenciei” (Acadêmico 5).

“Não, tanto que nem sabia do que se tratava” (Acadêmico 7).

Em comparação aos dados apresentados na pesquisa, em estudo feito por Simões e colaboradores 1212. Simões NG. Conhecimentos e práticas de médicos do IMIP sobre diretivas antecipadas de vontade: “corte transversal” [projeto de pesquisa]. Recife: Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira; 2017 [acesso 8 fev 2023]. Disponível: https://bit.ly/3MPF0el
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, a maioria dos entrevistados recebeu treinamento sobre DAV, 73,3% em congressos, jornadas e programas de pós-graduação e 26,7% por meio de livros durante a graduação. Dentre essas pessoas, apenas 16 afirmaram ter realizado o treinamento em prontuário (30,8%); 13 o fizeram de forma verbal (25%); quatro por meio de documento legal (7,7%); e um procedeu de outra forma (1,95%).

Visão do processo de finitude e morte digna

Por toda a história, a morte é um evento social fundante da humanidade, sendo compreendida em cada cultura como um universo de símbolos e significados que permite aos indivíduos interpretar suas experiências e guiar suas ações. Os rituais de luto têm facilitado a integração da morte, a transformação dos sobreviventes e a continuidade da vida dos seres humanos 1313. Giacomin K, Jorge W, Santos, Oliveira J, Firmo A. O luto antecipado diante da consciência da finitude: a vida entre os medos de não dar conta, de dar trabalho e de morrer. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2013 [acesso 8 fev 2023];18(9):2487-96. DOI: 10.1590/S1413-81232013000900002
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Como princípios fundamentais dos cuidados paliativos, são enfatizadas as seguintes precauções: prevenção e alívio do sofrimento, identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais. Nesse sentido, partindo do reconhecimento da morte como evento natural, os cuidados paliativos defendem a abordagem ativa e integral de uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de enfermidade crítica 1414. Santos VNM, Soeiro ACV, Maués CR. Qualidade de vida de pacientes oncológicos em cuidados paliativos domiciliares e desafios da prática médica diante da finitude da vida. Rev Bras Cancerol [Internet]. 2020 [acesso 8 fev 2023];66(4):e-02423. DOI: 10.32635/2176-9745.RBC.2020v66n4.423
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Quando questionados sobre “qual seu entendimento por morte digna?”, 46,6% dos entrevistados apresentaram declarações muito próximas do princípio de melhoria da qualidade de vida do paciente em fase terminal, como expressado na declaração a seguir:

“É um processo em que na medida do possível ela entenda como chegou ali e se ela buscou ajuda de outras pessoas, depositou o corpo dela, os cuidados dela nas mãos de outra pessoa, que seja uma relação de altíssimo respeito. A pessoa tem que se sentir amada, alguém tem que mostrar o valor do ser humano nesse fim para se sentir valorizada” (Docente 3).

Angeluci 1515. Angeluci CA. Considerações sobre o existir: as diretivas antecipadas de vontade e a morte digna. RBDCivil [Internet]. 2019 [acesso 8 fev 2023];21(3):47. Disponível: https://bit.ly/416IzkJ
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apresenta a definição do processo final de vida que se define como impossibilidade de reversão, seja porque o organismo não responde a quaisquer tratamentos, seja porque há falência de órgãos que impede a recuperação.

É preciso considerar que, por mais avançados e efetivos que possam representar os progressos biomédicos, ainda não se chegou à condição de livramento da morte e, portanto, respeitar, aceitar e preparar-se para sua chegada também é condição de exercício da dignidade humana 1616. Angeluci CA. Op. cit. p. 47-8. .

Conforme definição proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a qualidade de vida inclui a percepção do indivíduo sobre influências culturais, políticas e econômicas em seu contexto social, de modo que sua autonomia e satisfação com a vida são refletidas pelo alcance de seus objetivos pessoais 1414. Santos VNM, Soeiro ACV, Maués CR. Qualidade de vida de pacientes oncológicos em cuidados paliativos domiciliares e desafios da prática médica diante da finitude da vida. Rev Bras Cancerol [Internet]. 2020 [acesso 8 fev 2023];66(4):e-02423. DOI: 10.32635/2176-9745.RBC.2020v66n4.423
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. Essa preocupação com a qualidade de vida do paciente foi apresentada na fala de um dos entrevistados, porém com ressalvas de uma morte “planejada” que nem sempre acontece:

“Acho que é algo relacionado ao jeito que a pessoa planeja para morrer. Uma morte não planejada, mas respeitada. Respeitar o direito que a pessoa planejou para morrer” (Acadêmico 3).

Outro fator predominante nas falas dos entrevistados é a associação da morte ao sofrimento:

“(...) não ter dor, tentar minimizar o máximo de sofrimento possível” (Acadêmico 4).

Ao associar a palavra “morte” diretamente aos sentimentos de dor, sofrimento, separação e perda, a sociedade contemporânea tende a se esquivar do tema, fazendo dele um tabu. Dessa forma, os profissionais de saúde treinados para salvar vidas sentem-se fracassados com a perda de pacientes e afastam-se do doente terminal como estratégia para lidar com esse processo e com os sentimentos associados a ele 1717. Siqueira Perboni J, Zilli F, Oliveira SG. Profissionais de saúde e o processo de morte e morrer dos pacientes: uma revisão integrativa. Pers Bioet [Internet]. 2018 [acesso 8 fev 2023];22(2):288-302. DOI: 10.5294/pebi.2018.22.2.7
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Assim como nascer, morrer também faz parte do processo de vida, sendo natural do ponto de vista biológico, porém o ser humano caracteriza-se por aspectos simbólicos, ou seja, pelo significado e valores que imprime às coisas. Portanto, o significado da morte varia ao longo do tempo e entre as diferentes culturas 1313. Giacomin K, Jorge W, Santos, Oliveira J, Firmo A. O luto antecipado diante da consciência da finitude: a vida entre os medos de não dar conta, de dar trabalho e de morrer. Ciênc Saúde Colet [Internet]. 2013 [acesso 8 fev 2023];18(9):2487-96. DOI: 10.1590/S1413-81232013000900002
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. Para o homem ocidental moderno, a morte passou a ser sinônimo de fracasso e vergonha, por isso ele tenta vencê-la a qualquer custo, mas quando não obtém tal êxito ela é escondida e negada 1818. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estud Psicol (Natal) [Internet]. 2006 [acesso 8 fev 2023];1(11):209-16. DOI: 10.1590/S1413-294X2006000200010
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Ainda que a morte seja o inevitável destino de todas as pessoas, a duração da vida e o seu fim são diferentes: depende da classe socioeconômica de cada indivíduo. No Brasil, tal fato ocorre devido às desigualdades sociais estruturalmente fundamentadas por dados como a discrepância da expectativa de vida nas diferentes regiões do país. Como exemplo dessa situação, pode-se citar a região Sul e a Nordeste, a primeira com expectativa de vida de 73,95 anos e a segunda com expectativa de vida de 68,3 anos, regiões historicamente marcadas por assimetrias sociais e financeiras que corroboram tais dados 1818. Combinato DS, Queiroz MS. Morte: uma visão psicossocial. Estud Psicol (Natal) [Internet]. 2006 [acesso 8 fev 2023];1(11):209-16. DOI: 10.1590/S1413-294X2006000200010
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A associação da morte com valores negativos dificulta o diálogo entre o profissional de saúde e seu paciente na tentativa de orientar este sobre a realização do testamento vital como direito individual. Com a possibilidade de declarar sua vontade acerca dos tratamentos a que não deseja ser submetido quando estiver inapto para decidir, essa não oferta configura-se como falta de assistência de qualidade para o paciente. Segundo Siqueira Perboni, Zilli e Oliveira, ao se afastarem de pacientes que estão em processo de fim de vida, os profissionais acabam por não ofertar uma assistência de qualidade ao paciente em um dos momentos mais delicados da sua vida. Assim, a assistência durante o processo de fim de vida volta-se para a dimensão biológica, tecnicista, ou seja, mais objetiva 1919. Siqueira Perboni J, Zilli F, Oliveira SG. Op. cit. p. 291 .

Autonomia versus paternalismo médico

Durante a pesquisa, os entrevistados foram questionados quanto à possível não aceitação do paciente ao tratamento proposto. As respostas giraram em torno da árdua tentativa de convencimento, isto é, os questionados afirmaram que deveriam tentar ao máximo convencer o paciente a realizar o tratamento que acreditavam ser o mais eficiente, expondo seus fundamentos científicos para tal, como é visto na seguinte frase:

“Mas se é um paciente muito grave que tem chance de viver, eu ia tentar de tudo para salvar, não respeitaria (...)” (Docente 1).

No que diz respeito à autonomia do paciente, Pereira 2020. Pereira PMFL. Relação médico-paciente: o respeito à autonomia do paciente e a responsabilidade civil do médico pelo dever de informar [dissertação] [Internet]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2010 [acesso 8 fev 2023]. Disponível: https://bit.ly/3KGnB5f
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afirma que, no caso de tratamento que expuser o paciente a risco de vida, há permissão legal de recusa prevista no artigo 15 do Código Civil. Assim, resta o questionamento da segunda hipótese, de que o paciente coloca em risco sua própria vida ao recusar o procedimento. A vontade do indivíduo de recusar um tratamento muitas vezes entra em conflito com o dever do Estado de proteção da vida, interesses de terceiros e o dever do médico de prestar assistência.

Tal análise leva à dúvida acerca do limiar entre o convencimento e a manutenção da vontade do paciente, pois suas decisões envolvem uma série de preâmbulos éticos, morais, educacionais e religiosos presentes em sua vida. Portanto, entender sua decisão envolve a compreensão do contexto social e cultural que o levou a tal escolha. Dessa forma, a fim de convencer o paciente a aceitar os benefícios do tratamento oferecido, a explicação do profissional de saúde implica saber em que circunstâncias aquele indivíduo está inserido, de modo que esse convencimento não seja puramente embasado na visão técnico-científica.

Posto isso, deve-se aceitar que o usuário é quem define sua necessidade de saúde 1212. Simões NG. Conhecimentos e práticas de médicos do IMIP sobre diretivas antecipadas de vontade: “corte transversal” [projeto de pesquisa]. Recife: Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira; 2017 [acesso 8 fev 2023]. Disponível: https://bit.ly/3MPF0el
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, o que leva a todo tipo de arbitrariedade mediante solicitações pouco racionais do paciente, que lhe trarão frustrações e também desanimarão o profissional de saúde 1111. Nunes MI, Anjos MF. Diretivas antecipadas de vontade: benefícios, obstáculos e limites. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2014 [acesso 8 fev 2023];22(2):241-51. DOI: 10.1590/1983-80422014222005
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. Tal fato está presente na afirmação de um dos entrevistados:

“(...) a gente entende que se fizer tudo como o livro dita as coisas vão dar certo, e a gente sabe bem que na prática não é bem assim que funciona” (Docente 2).

Estudo apresentado por Pirôpo e colaboradores 2121. Pirôpo US, Damasceno RO, Rosa RS, Sena ELS, Yarid SD, Boery RNSO. Interface do testamento vital com a bioética, atuação profissional e autonomia do paciente. Rev Salud Pública [Internet]. 2018 [acesso 8 fev 2023];20(4):505-10. DOI: 10.15446/rsap.V20n4.65009
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mostra que o avanço da tecnologia médica tem envolvido pacientes, familiares e profissionais da saúde, especialmente quando o assunto é a interdição da morte e o prolongamento da vida e da doença. De acordo com a Resolução CFM 1.995/2012 2222. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 31 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 ago 2012 [acesso 8 fev 2023]. Disponível: https://bit.ly/3N7LVQv
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, o médico aparece nesse cenário como parceiro na tomada de decisão da vida e da morte do paciente. Isso torna possível observar a redução do poder decisório dos médicos e familiares quando se deparam com casos de pacientes em estado terminal sem condições de autodeterminação.

A discussão entre a vida e a morte apresenta vários dilemas de decisões e participação de terceiros que convergem e divergem, ao mesmo tempo, sobre as questões do fim da vida. Profissionais de saúde, nesse contexto, assumem um papel importante quanto à dignidade da vida humana, desde o início até o fim. Partindo da premissa de preservar sempre a vida, o advento das tecnologias favorece sua manutenção e prolongamento, fato que tem dificultado a profissionais de saúde tomar decisão diante de pedido de morte feito por paciente 2121. Pirôpo US, Damasceno RO, Rosa RS, Sena ELS, Yarid SD, Boery RNSO. Interface do testamento vital com a bioética, atuação profissional e autonomia do paciente. Rev Salud Pública [Internet]. 2018 [acesso 8 fev 2023];20(4):505-10. DOI: 10.15446/rsap.V20n4.65009
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.

Contrariamente à ideologia do convencimento percebida em uma dentre as 15 entrevistas realizadas, outro entrevistado afirmou:

“Antigamente eu tinha uma visão que estou tentando desconstruir, e uma visão paternalista, fazer tudo até o fim, tentar e tentar. Muitos afirmam que o curso tira a empatia da pessoa, mas eu acho que não. Acho que o curso gera um pouco de maturidade para a gente. Acho que eu não vou trabalhar com convencimento. Eu acho ético expormos nossa opinião, sempre expondo e escrevendo no prontuário para não ser processado. Mas é a vida da pessoa, deixa ela viver como quer” (Acadêmico 3).

Na prática médica atual ainda são realizadas ações paternalistas, isto é, quando profissionais de saúde tomam decisões sem consultar as preferências do paciente, assumindo o que supõem ser o melhor para ele. Paternalismo é a colocação de limites à autonomia individual, com o objetivo de beneficiar uma pessoa cuja autonomia esteja limitada ou de prevenir dano 2323. Goldim JR. Paternalismo [Internet]. 1988 [acesso 8 fev 2023]. Disponível: https://bit.ly/3KHp5fp
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.

Segundo Joaquim Clotet 2424. Clotet J. O respeito à autonomia e aos direitos dos pacientes. Rev AMRIGS [Internet]. 1997 [acesso 8 fev 2023];53:433-5. Disponível: https://bit.ly/43BTNiS
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, na relação médico-paciente, os princípios da beneficência (princípio basilar da medicina) e da autonomia do doente são complementares, de modo que as tomadas de decisão são resultado da consideração de ambos, o que nem sempre constitui tarefa fácil. Sabe-se que o respeito ao princípio da autonomia não é aplicável a todas as pessoas, uma vez que algumas delas não podem atuar autonomamente por estarem incapacitadas ou dependerem de representante. Dessa forma, esse princípio deve ocupar lugar relevante em decisões médicas e na obtenção do consentimento informado, no início de qualquer tratamento e na avaliação dos riscos aceitáveis.

Portanto, a prática paternalista tem intuito aparentemente benéfico – fazer o que se acredita ser o melhor para o paciente –, contudo nega-lhe as preferências pessoais e desconsidera seu contexto cultural, social e moral, fatores que levam à formação das suas opiniões. Tal fato é estritamente relacionado à mentalidade intrínseca do profissional médico que adota a cura como melhor desfecho, por não entender que, em determinadas situações, é possível apenas aliviar a dor do paciente:

“Vai chegar um determinado momento [em] que a medicina não tem mais o que fazer pelo paciente na medida curativa, o que a gente pode fazer é dar conforto para esse paciente” (Docente 2).

Clotet 2525. Clotet J. Reconhecimento e institucionalização da autonomia do paciente: um estudo da the Patient Self-Determination Act. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2009 [acesso 8 fev 2023];1(2). Disponível: https://bit.ly/41BZ8oi
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apresenta as seguintes reflexões: o princípio médico que visa prioritariamente preservar a saúde e a vida do paciente (princípio da beneficência) próprio da tradição hipocrática está sendo questionado. Limites podem ser levantados a esse princípio? É correto o preestabelecimento do tratamento médico prevendo a própria incapacidade ou inconsciência? O estado de paciente terminal implica a negação e o abandono total às decisões alheias? O paciente pode ser o sujeito do processo médico-hospitalar que comumente precede o fim da vida?

De fato, o adoecimento é uma das principais fontes da percepção da condição humana da finitude, considerada individual e coletivamente. Além disso, o surgimento dos cuidados paliativos é acompanhado por mudanças no imaginário social e na transformação do ethos contemporâneo, mas essa transformação não está isenta de conflitos.

Embora existam crenças sobre a legitimidade moral da recusa da “obstinação terapêutica” – por violar os princípios de beneficência – não há, de fato, consenso. Uma das razões dadas para essa recusa é a chamada “humanização” da medicina, a qual deveria ser vista também como tentativa de “humanizar a morte” ou, ainda, o “processo de morrer” 2626. Schramm FR. Finitude e bioética do fim da vida. Rev Bras Cancerol [Internet]. 2012 [acesso 8 fev 2023];58(1):73-8. DOI: 10.32635/2176-9745.RBC.2012v58n1.1436
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.

Cano e colaboradores 2727. Cano CWA, Silva ALC, Barboza AF, Bazzo BF, Martins CP, Iandoli D Jr. Finitude da vida: compreensão conceitual da eutanásia, distanásia e ortotanásia. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2020 [acesso 8 fev 2023];28(2):376-83. DOI: 10.1590/1983-80422020282399
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mostram que a humanização da medicina considera integralmente o paciente e os aspectos biopsicossociais e espirituais abrangidos pelo binômio saúde-doença. No que tange à finitude da vida, a medicina humanizada denota, além do respeito à pessoa, maior interação entre equipe e paciente, buscando melhores resultados na escolha de condutas e tratamentos para promover o bem-estar.

A vida é um processo que tem um termo final inevitável, por vezes, incompreendido pela grande maioria dos seres humanos. Sujeita a adversidades e desprevenida em relação ao fim de sua trajetória, grande parte da humanidade tem guiado seu caminho pela negação do fim, mas torna-se refém do percurso vital. Na verdade, aceitar o encerramento da vida é uma decisão que carrega consequências que nada mais são do que exercer autonomia sobre uma suposta condição futura com que cada um poderá se deparar, na qual escolhas prévias serão capazes de estabelecer a caminhada e a responsabilidade dos envolvidos nesse cenário 2828. Mender CA, Marques JRN. A autonomia da vontade no fim da vida e o direito de antecipar escolhas. Braz J Dev [Internet]. 2021 [acesso 8 fev 2023];7(9):90403-18. DOI: 10.34117/bjdv7n9-278
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.

Considerações finais

O principal objetivo deste trabalho foi avaliar o nível de conhecimento de docentes e acadêmicos de medicina de uma universidade do Sul do Brasil quanto ao testamento vital e às DAV. No que diz respeito à autonomia do paciente, a análise dos resultados demonstra que, apesar do conceito de testamento vital ser parcialmente definido pelos entrevistados, há dificuldade em diferenciá-lo do conceito de DAV, pois a grande maioria dos participantes acredita tratar-se do mesmo documento. Além disso, a aplicabilidade do testamento vital é restrita na vivência prática dos profissionais médicos e nenhum dos entrevistados afirmou ter aplicado o documento em alguma experiência profissional.

Quanto ao processo de finitude e morte digna, houve prevalência da associação da morte ao sofrimento e à dor. Tal fato revela ideologia historicamente alicerçada na noção de morte como símbolo de perda, carregada de negativismo e considerada tabu social. Felizmente, foram unânimes entre os entrevistados declarações muito próximas ao princípio de melhoria da qualidade de vida do paciente em terminalidade e de conforto a seus familiares.

Sobre a autonomia, os entrevistados afirmaram que decisões de tratamento provêm do paciente, mas divergiram ao acreditar que deve ser realizada tentativa enfadonha de convencimento quanto ao proposto pelo profissional médico. A decisão do paciente é embasada em suas experiências culturais, sociais e emocionais, portanto a tentativa de convencê-lo a partir de opiniões pessoais ou puro embasamento técnico-científico vai contra sua autonomia .

Houve também definições semelhantes de DAV e testamento vital entre acadêmicos e docentes entrevistados. O que leva a pensar na importância desses temas serem abordados de forma mais ampla em universidades que oferecem cursos da área da saúde.

A difusão do conhecimento sobre o testamento vital ainda requer grandes avanços entre os profissionais médicos, sendo o período de formação acadêmica o mais propício para a ampliação do contato do futuro profissional com esse documento. Conhecer os direitos do paciente e aplicá-los é de suma importância para a garantia de sua autonomia e abordar o processo de finitude e a morte é necessário entre os profissionais de saúde, a fim de mitigar preceitos e tabus sobre o tema. Assim, esse profissional conseguirá ofertar a assistência médica adequada ao paciente no processo de terminalidade de vida, com auxílio dos conhecimentos da medicina paliativa e bioética.

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  • Aprovação CEP-Univali-CAAE 43036920.7.0000.0120

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2022
  • Revisado
    9 Fev 2023
  • Aceito
    20 Fev 2023
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