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Mulheres, manivas e artefatos: corpo, gênero e socialidades no noroeste amazônico

Women, manioc and artefacts: body, gender and socialities in Northwest Amazonia

Resumo

Neste artigo, argumentamos que as relações entre mulheres tukano orientais, manivas/mandiocas e artefatos de roça/casa-cozinha são orientadas por uma ética do cuidado que está pautada na composição vegetal e artefatual do corpo da mulher, o que implica uma relação de mútua afetação. Ao desenredar aspectos conceituais e práticos em torno de definições do ser mulher e de corporalidades femininas, demonstramos que a atribuição xamânica do nome no nascimento e sua complexificação na menarca, que envolve a ‘encorporação’ na mulher, de sementes e estacas de manivas e artefatos de roça/casa-cozinha, compõem corpos-pensamentos direcionados para o cultivo e o processamento de mandiocas, habilidades que só são desenvolvidas plenamente quando há por parte da menina/moça o interesse no aprendizado experimental junto a mulheres mais velhas nas roças e casas-cozinhas. A transformação da moça em uma mulher tukano oriental, que é dona de roça e dona de casa-cozinha, envolve o domínio e a manipulação de uma coleção composta por variedades de manivas e de artefatos. Concepções, práticas e relações se alteram em um complexo jogo que envolve composição familiar, biografia e transformações sociais.

Palavras-chave
Mulheres; Manivas; Artefatos; Corpos-pensamentos; Ética do cuidado; Povos tukano orientais

Abstract

In this article, we argue that the relationships between Eastern Tukanoan women, manioc and artefacts of garden/kitchen-house, are guided by an ethics of care which, in turn, is based on the vegetal and artefactual composition of the woman’s body, which implies a mutual affectation. By unravelling conceptual and practical aspects with regard to definitions of being a woman and female corporalities, we demonstrate that the shamanic attribution of the name at birth and its complexification at menarche, which involves the ‘embodiment’ in the woman, of manioc seeds and branches and garden/kitchen-house artefacts, compose bodies-thoughts directed to the cultivation and processing of cassava. Those skills are only fully developed when there is an interest on the part of the girl in experimental learning with older women in the gardens and house-kitchens. The transformation of the girl into an Eastern Tukanoan woman, who owns a garden and a kitchen-house, involves mastering and manipulating a collection composed of varieties of manioc sticks and artefacts. Concepts, practices and relationships change in a complex game that involves family composition, biography and social transformations.

Keywords
Women; Manioc sticks; Artefacts; Bodies-thoughts; Ethics of care.; Eastern Tukanoan peoples

Foi o interesse nos processos de composição dos corpos-pensamentos femininos que me levou a perseguir as relações entre mulheres, manivas1 1 Seguindo as expressões utilizadas por meus interlocutores e interlocutoras na língua portuguesa, ao mencionar manivas, refiro-me às partes visíveis de Manihot esculenta – seu caule e suas folhas – e, em especial, às partes de seu caule, utilizadas para o plantio da planta através de clonagem. Como mandioca, me refiro aos tubérculos subterrâneos, resultantes do plantio. Na língua Tukano, existe uma oposição entre o termo genérico kii, que geralmente é traduzido como mandioca, e o termo duhku, que acompanha os nomes das variedades de plantas que circulam, por exemplo, serã-duhku, termo que significa maniva-abacaxi (ver Ramirez, 1997, p. 285; Emperaire, 2010, p. 83). Este binômio deve ser sempre considerado relacionalmente. Ao se caracterizar um tipo específico de maniva, é comum fazer referência ao tipo de mandioca que ele ‘dá’. e artefatos entre grupos Tukano orientais2 2 A família linguística Tukano oriental pode ser considerada como composta por aproximadamente 17 povos que vivem no Brasil, na Terra Indígena Alto Rio Negro, mais especificamente no rio Uaupés e seus afluentes – Tiquié, Papuri e Querari –, e na Colômbia, na mesma bacia e no rio Apapóris, que tem como principal afluente o rio Pirá Paraná (ISA, 2002). , na Terra Indígena Alto Rio Negro, Amazonas. A articulação entre cosmologia e experiência, ciclo de vida e atividades produtivas, mulheres, manivas e artefatos no noroeste amazônico não é algo novo. Já no final dos anos 70, C. Hugh-Jones (1979, p. 231)Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press. demonstrou que se, entre os Barasana da região do Pirá Paraná, Colômbia, a produção da mandioca em si não consiste em uma atividade ritual, a analogia estrutural e as relações metafóricas existentes entre as fases do ciclo de vida masculino e feminino e as etapas do plantio/colheita, o processamento de mandiocas e consumo dos alimentos derivados, e as alusões míticas a estas etapas confirmam a conotação ritual deste processo. Tais associações analógicas permitem o estabelecimento de múltiplas outras associações, conscientes ou não: a equivalência entre a transformação feminina da mandioca e os ritos masculinos de jurupari; entre a separação de substâncias no processamento de mandiocas e a inseminação como parte do processo mais amplo da produção de pessoas; entre a terra fértil e o ventre materno; entre os tubérculos de mandioca e as crianças recém-nascidas, controladas por mulheres; e entre o caminho da roça e a vagina (C. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press., pp. 231-234, 296).

No entanto, desde então, estes dois debates seguiram caminhos relativamente separados na literatura sobre povos Tukano orientais: 1) sobre nominação, gênero e o lugar de extra-humanos (artefatos, plantas, substâncias) na composição da pessoa tukano (Andrello, 2006Andrello, G. (2006). Cidade do índio (1. ed.). UNESP/ISA/NUTI.; S. Hugh-Jones, 2002Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riquezas visíveis: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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, 2009; F. Cabalzar, 2010Cabalzar, F. (2010). Até Manaus, até Bogotá. Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentos [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07052010-122546
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; Lasmar, 2005Lasmar, C. (2005). De volta ao lago de leite: gênero e transformação no alto rio Negro. Edunesp/ISA/NuTI.), discussões presentes em estudos que, a partir de uma orientação cosmológica, estão mais preocupados com interrelações conceituais entre vários domínios, mas que, com exceção de Mahecha Rubio (2004)Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]., entre os Makuna, avançaram pouco no que diz respeito à articulação entre nome/corpo feminino e/ou na sua relação com as mandiocas; e 2) sobre mulheres, mandiocas e artefatos, circulação de manivas e de conhecimentos associados como parte da discussão sobre trocas e circulação de variedades de manivas (Chernela, 1986Chernela, J. M. (1986). Os cultivares de mandioca na área do Uaupés (Tukâno). In B. G. Ribeiro (Ed.), Suma Etnológica Brasileira (Vol. 1, pp. 151-158). Ed. Vozes/FINEP.), sobre o sistema agrícola no rio Negro (Emperaire, 2010Emperaire, L. (Org.). (2010). Dossiê de registro do sistema agrícola tradicional do Rio Negro. ACIMRN/IPHAN/IRD/UNICAMP-CNPq. http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_sistema_agricola_rio_negro.pdf
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, 2014; Emperaire et al., 2012Emperaire, L., Oliveira, A., & van Velthem, L. (2012). Patrimônio cultural imaterial e sistema agrícola: o manejo da diversidade agrícola no médio rio negro - Amazonas. Ciência e Ambiente, (44), 154-164. https://cienciaeambiente.com.br/shared-files/1855/?141-154.pdf
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; van Velthem & Emperaire, 2016Van Velthem, L., & Emperaire, L. (2016). Manivas aturás beijus: o sistema agrícola tradicional do Rio Negro (Patrimônio Cultural do Brasil). ACIMRN.) e sobre as expressões materiais e imateriais deste sistema, com foco nos artefatos e no modo como se relacionam com plantas, alimentos e espaços (van Velthem, 2012Van Velthem, L. (2012). Cestos, peneiras e outras coisas: a expressão material do sistema agrícola no rio Negro. Revista de Antropologia, 55(1), 401-437. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.46970
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). Tais trabalhos apresentam uma perspectiva interdisciplinar, que combina ecologia, agronomia e antropologia, e trazem pontos fundamentais, os quais se tornam pressupostos de nossa reflexão, como a qualidade de sujeito das mandiocas e a existência de socialidades entre plantas e entre mulheres e plantas.

Para além destas duas perspectivas, alguns trabalhos focalizam a roça como lócus de produção e circulação de saberes, como o de Strappazzon (2013, p. 11)Strappazzon, A. I. (2013). Pelos caminhos de manivas e mulheres: conhecimento, transformação e circulação no alto rio Negro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/122583
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sobre “práticas de conhecimentos femininos das roças e da transformação da mandioca brava em alimento e caxiri”, e sobre “as relações entre os gêneros, envolvendo a noção de complementariedade das esferas de saber e poder”, assim como o da antropóloga Rosi Whaikon (Pereira, 2019Pereira, R. F. [Rosi Waikhon]. (2019). Roças: espaços de construção da ciência indígena na região do alto rio Negro, conhecimentos que não são à toa. In D. Montardo, A. Tassinari & J. Vieira (Orgs.), Antropologia e educação: refletindo sobre processos educativos em contextos escolares, não escolares e de políticas públicas (pp. 33-47). Copiart/EDUA/EDUFRN., p. 33) sobre “conexões das redes visíveis e invisíveis [entre diferentes seres] dos mosaicos de espaços, tendo a roça como eixo referencial e tema de exercício de construção de conhecimentos compartilhados”.

Neste artigo, pretendo retomar preocupações presentes nos trabalhos ora mencionados, ao desenredar aspectos conceituais e práticos em torno de definições do ser mulher e de composições de corporalidades e pensamentos femininos nas relações com as manivas, a partir de experiências, narrativas e exegeses compartilhadas durante conversas e entrevistas realizadas em trabalho de campo de pós-doutorado, no ano de 2017, com interlocutoras e interlocutores de longa data, Tukano, Tuyuka, Desana e Tariana3 3 Atuo na região desde o ano de 2005. Primeiro, fui integrante do Programa Rio Negro, do Instituto Socioambiental (2005-2011), em seguida, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) (2011-2016) e, finalmente, realizei o pós-doutorado pelo PPGAS da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) (2017-2021). , moradores das comunidades de Acará Poço, Pirarara Poço, Cunuri e São José, localizadas no trecho médio do rio Tiquié, afluente do rio Uaupés, Terra Indígena Alto Rio Negro.

Neste sentido, demonstro que a atribuição xamânica do nome no nascimento e sua complexificação na menarca compõem corpos-pensamentos direcionados para o cultivo e processamento de mandiocas, habilidades que só são desenvolvidas plenamente através da experiência, quando há por parte da menina/moça o interesse no aprendizado junto a mulheres mais velhas nas roças e casas-cozinhas (Baase wii4 4 Os enunciados locais estão grafados na língua Tukano. , literalmente, casa de comida). Além disso, demonstro que a própria transformação da moça em uma mulher tukano envolve se tornar uma dona de roça e dona de casa-cozinha, fato que geralmente só se realiza no casamento e envolve o domínio e a manipulação de uma coleção (Emperaire, 2005Emperaire, L. (2005). A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira: recurso e patrimônio. Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, (32), 23-35., 2010Emperaire, L. (Org.). (2010). Dossiê de registro do sistema agrícola tradicional do Rio Negro. ACIMRN/IPHAN/IRD/UNICAMP-CNPq. http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_sistema_agricola_rio_negro.pdf
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; van Velthem, 2012Van Velthem, L. (2012). Cestos, peneiras e outras coisas: a expressão material do sistema agrícola no rio Negro. Revista de Antropologia, 55(1), 401-437. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.46970
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) composta por variedades de manivas e de artefatos de cultivo e processamento. Por fim, argumento que as relações entre mulheres tukano, com suas manivas e artefatos, são orientadas por uma ética do cuidado que, por sua vez, está pautada na consideração de que os corpos femininos são compostos xamanicamente por manivas e artefatos, o que implica uma mútua afetação entre as mulheres, as manivas/mandiocas e os artefatos de roça-cozinha. As concepções, as práticas e as relações acima mencionados se alteram em um complexo jogo que envolve composição familiar, biografia e transformações sociais. De modo mais amplo, este artigo permite demonstrar o rendimento para a etnologia rio-negrina da articulação entre os debates clássicos na etnologia indígena sobre construção da pessoa/corpo e nominação, bem como questões sobre especificidades de gênero nas relações humanas e extra-humanas.

DO DONO ÀS DONAS

Com o objetivo de pinçar e realçar pontos importantes para pensar sobre as relações entre nome, corpo, gênero e afecções, retomo partes de uma narrativa amplamente difundida entre os povos Tukano e Arawak e analisada na literatura antropológica (C. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press.; S. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, S. (1979). The Palm and the Pleaides. Initiation and cosmology in Northwest Amazonia. Cambridge University Press.; Bidou, 1996Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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; e, mais recentemente, pelo antropólogo bará, Barreto, 2021Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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), que se refere à origem da roça e do cultivo de mandiocas. Tomo como referência a versão registrada na coleção “Narradores indígenas do alto rio Negro” por homens dos clãs Hausirõ porã (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, pp. 83-98), a partir da qual persigo tramas estabelecidas por meus interlocutores, especialmente Rafael Azevedo, homem do clã Ñahuri porã, e sua esposa, Oscarina Caldas, Desana do clã Yuhugo, moradores de Acará Poço, médio rio Tiquié. Esta narrativa complexa reforça o argumento de S. Hugh-Jones (2009)Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press. de que, perante o panorama amazônico, a mitologia tukano tem a especificidade de combinar elementos de criação/transmissão e roubos e empréstimos; descendência e aliança; relações same-sex e cross-sex e, além disso, entre humanos e extra-humanos.

Dentre os ancestrais responsáveis pela criação das condições para humanidade viver bem nesse mundo, Basebo (literalmente, ‘ser que tem comida em fartura’, Base – ‘comida’, boo – ‘fartura’), gente-maniva, que, “ao receber esse nome do Avô do Universo, . . . foi designado para ser o dono das plantações e ter como trabalho preparar roça e plantar” (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, p. 34). O ‘Avô do Universo’ também lhe concedeu pés de maniva primordiais que compunham seu corpo e deram origem às variedades que hoje são consideradas as mais importantes, as manivas-chefes5 5 Dois pontos importantes da sociocosmologia tukano: a diferenciação classificatória entre maiores e menores, que remete à classificação clânica hierárquica interna aos grupos de descendência tukano e que se reproduz na leitura das sociedades extra-humanas (ver A. Cabalzar, 2005, para peixes; Oliveira, 2017a, para constelações), e o valor dado aos protótipos, como modelos que se encontrariam no topo de uma escala classificatória e dos quais derivariam membros principais de um certo tipo. .

A ideia de um demiurgo cujo corpo seria composto por manivas e/ou corresponderia à própria roça já foi sublinhada por outros autores, como Bidou (1996, p. 65)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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e Barreto (2021, p. 162)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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. Bidou (1996, p. 69)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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chamou atenção para o significado do nome do herói em Desana (Baaribo, traduzido como ‘eu ser alimento’), apontando para o aspecto canibal de tal nome e, ao mesmo tempo, para como este indica um sujeito que é tomado como aquilo que dá. Meus interlocutores, por sua vez, estabelecem conexões entre nome, corpo, lugar/domínio e afecções/responsabilidades: aquele que é nomeado ‘ser que tem comida em fartura’ possui um corpo composto por manivas e domínio sobre roças e habilidade/responsabilidade de torná-las produtivas. Estas inter-relações, conforme veremos, remetem às lógicas de nominação e construção da pessoa tukano.

Na versão Hausirõ porã, as responsabilidades de Basebo são efetivadas através da sua capacidade de manipulação, via pensamento de dois itens híbridos, compostos por artefatos e plantas ou por seus derivados: uma pedra de tapioca (pedra de manivas do mundo todo) e um lança-chocalho de manivas, pontos que remetem ao jogo de composição artefatual interior e exterior da pessoa tukano (S. Hugh-Jones, 2009Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press.) e ao próprio modelo de ação xamânica tukano e rio-negrina, efetivada pela combinação entre veículos (artefatos, plantas, substâncias) e pensamentos-palavras (ver Lolli, 2013Lolli, P. (2013). Sopros de vida e destruição: composição e decomposição de pessoas. Revista de Antropologia, 56(2), 365-396. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2013.82473
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, para os Yuhupdeh). Conforme veremos, tal mecanismo de criação/transformação do tipo xamânico/masculino envolvido na produção de manivas/processamento de mandiocas vai gradualmente se transformando em um mecanismo de criação/transformação do tipo trabalho/feminino, na medida em que Basebo transfere esta responsabilidade/capacidade para as mulheres.

Em uma análise de cunho psicanalítico sobre mitos de origem da mandioca, Bidou (1996)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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identificou o que chamou de esquema fundador de sociedades Tukano e Arawak: que os sentimentos dominantes de ciúmes e o intercâmbio desfazem e instauram a separação entre os sexos, as gerações, os consanguíneos e os aliados. No entanto, argumenta, a partir das versões analisadas, que, enquanto as trocas são possíveis e equivalentes entre homens e homens, entre homens e mulheres estas são impossíveis, porque ora a mulher rouba, ora rejeita o que recebe.

De fato, as passagens mais realçadas por meus interlocutores Hausirõ e Ñahuri, em suas narrativas, dizem respeito ao rompimento de relações de descendência, estabelecimento de relações de aliança entre homens e de empréstimos e roubos entre homens e mulheres, mas também de (tentativas de) transferência de um demiurgo andrógeno, marcadamente masculino, que revela características femininas, para mulheres (nora, esposas). Esta passagem que está ausente da análise de Bidou (1996)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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é um movimento que, para meus interlocutores, cria as bases do trabalho feminino de produção e transformação agrícola culinária, envolvendo os espaços da roça e da casa-cozinha, o qual é fundamental para a constituição da pessoa-mulher tukano e para o bem-viver dos grupos Tukano.

Numa primeira passagem de Ñahuri e Kumarõ (2003, pp. 83-84)Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, temos, na narrativa Hausirõ porã, a figura de um homem viúvo, que mora com seus dois filhos e a esposa do primogênito, o qual é invejado, devido ao casamento, pelo mais novo. Este viúvo, que causou a morte da própria esposa no parto, ao amaldiçoá-la por esperar um filho resultante de uma traição, apresenta características peculiares: é produtor e provedor de alimentação completa para sua família, realizando tarefas comumente atribuídas às mulheres – cultivo e processamento de mandiocas e derivados, bem como preparo culinário, até mesmo de caxiri. Tal ponto não passa despercebido pela nora do herói na versão Desana, recolhida por Dominique Buchillet e analisada por Bidou (1996, p. 64)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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, quando esta o acusa de ser um homem que faz ‘coisas de mulher’. Este tipo de acusação, que remete à inversão de papéis de gênero, é recorrente entre os Tukano, conforme registrei anteriormente (Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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, 2019Oliveira, M. S. (2019). Vida, poder e conhecimento: cuidados contemporâneos em torno do nascimento entre grupos Tukano Orientais do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico. Revista de Antropologia da UFSCar, 11(1), 35-64. https://doi.org/10.52426/rau.v11i1.273
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), pois homens que não benzem são ‘acusados’ de serem ‘como mulheres’ e mulheres que ‘andam por aí’ quando menstruadas, ou quando bebem muita cachaça, são ‘acusadas’ de agir ‘como homens’.

Se a complementaridade da produção alimentar é um dos aspectos centrais entre os Tukano (C. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press.), a situação de viúvos, sejam homens ou mulheres, é de uma incompletude alimentar, que precisa ser sanada, fato que leva a uma maior dependência do trabalho e da boa vontade de outros parentes do gênero oposto. Acompanhei, em campo, o caso de dois irmãos que se tornaram viúvos precocemente, em um curto período, e que realizavam trabalho de pescaria cujos resultados ofereciam à sua mãe em troca do beiju e da quinhampira (caldo de pimenta com peixe), preparados por ela. O mais velho deles, por possuir uma filha adolescente, já começava a se beneficiar parcialmente dos beijus que ela preparava. Um outro caso marcante, foi de um homem viúvo que saiu de sua comunidade e se estabeleceu em uma pequena casa, próxima à da sua irmã, e cuja condição de viuvez, conforme me chamaram atenção algumas mulheres, estava simbolizada nas características de sua casa-cozinha, que era diferente daquelas das mulheres casadas e que comparavam a um ‘tapiri de pescador’, tanto por seu caráter improvisado e por sua estrutura externa pouco elaborada, quanto pela escassez de artefatos e utensílios. Acompanhei o caso de uma mulher viúva, que vivia a situação de falta de alimento, porém inversa a dos homens – possuía roça, preparava beiju, mas, desde que o marido morreu e o seu filho jovem começou a trabalhar como professor de uma escola, não tinha acesso a peixe. Costumava realizar visitas durante a tarde na casa de outras mulheres da comunidade, em que oferecia beiju em troca de peixe ou feijão, e, envergonhada, furtava-se de se alimentar durante as refeições comunitárias.

A androgenia característica das sociedades tukano (S. Hugh-Jones, 1995Hugh-Jones, S. (1995). Inside-out and back-to-front: the androgynous house in Northwest Amazonia. In J. Carsten & S. Hugh-Jones (Eds.), About the house: Lévi-Strauss and beyond (pp. 226-252). Cambridge University Press.), e marcante do período mítico (S. Hugh-Jones, 2009Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press.; C. Hugh-Jones, 2011Hugh-Jones, C. (2011). Desde el río de leche. Procesos espacio-temporales en la Amazonia noroccidental. Ediciones Universidad Central.), está presente em Basebo6 6 C. Hugh-Jones (2011, p. 235) fala sobre como o ‘Anaconda haste de maniva’ criou uma esposa para si e possui o poder de dicotomização sexual de si mesmo. , um demiurgo que recebe um nome masculino, mas que, por ter pleno domínio sobre aspectos masculinos e femininos da produção alimentar, mesmo sendo viúvo, garante seu autossustento e a sustentação de sua família. Mas essa condição sobre-humana não o satisfaz, ponto que fica claro em duas passagens da narrativa. Na primeira (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, pp. 84-87), por observar o desânimo da nora, que não consegue extrair goma de tapioca suficiente, decide ajudá-la, ‘emprestando’ sua pedra mágica de tapioca, colocando-a sob a bacia em que ela coa mandioca. Basebo, no entanto, dá um conselho, modalidade importante nas relações intergeracionais entre os Tukano (Pereira, 2013Pereira, R. F. (2013). Criando gente no alto rio Negro: um olhar Waíkhana [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Amazonas]. https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/2868
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; Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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): orienta o filho a pedir à esposa que não tire a bacia do lugar. O filho esquece de dar o conselho à esposa, e a nora, ao achar a pedra, esconde-a nos lábios de sua vagina. Ao tentar recuperá-la, Basebo é acusado de abuso sexual por seu filho ciumento. O ciúme e a briga levam ao rompimento das relações entre o pai e o filho (same-sex, descendência), passagem sobrevalorizada na análise psicanalítica de Bidou (1996)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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. Basebo, que havia passado a noite anterior repassando benzimentos (encantações xamânicas, em tukano, bahsese) a seu filho, faz um ‘estrago’ (prática xamânica prejudicial) nas roças dele e da esposa, transformando os cultivos em varas do mundo todo. Abandona seus filhos e torna-se um tipo de ser errante.

É comum encontramos, nas narrativas de origem tukano, o período de errância na trajetória dos demiurgos que criaram as condições para a vida humana nesse mundo. Nesse sentido, trajetórias de vida de homens e mulheres tukano são marcadas por períodos que meus interlocutores chamam, em português, de ‘andança’, caracterizados pelo afastamento da vida em comunidade e de suas responsabilidades, bem como pela experimentação de outros lugares, saberes, pessoas e conhecimentos (Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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, p. 140). Este período, no entanto, deve ter um fim, pois, se não o tiver, considera-se que a pessoa tenha sido vítima de ‘estrago’, tornando-se sihari mahsã, pessoa errante, condenada a andar para sempre, viver sem um lugar. Entre os jovens, a andança é vivida como uma situação provisória, que tem como marca, além da experimentação, as ações de ‘procurar mulher’ ou ‘encontrar marido’, situação que pode ser revivida no caso de viuvez. A andança também pode ser característica do período em que uma pessoa ou um casal rompe com sua família ou comunidade e está à procura de um novo lugar para se estabelecer. Esses dois pontos – a procura de mulher e a procura de um lugar – caracterizam a situação de Basebo, na versão de Ñahuri e Kumarõ (2003, p. 87)Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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. O demiurgo foi seduzido pelas duas filhas de Wariro, da família das pacas, cutias e acutivaias, que já tinha ouvido falar de Basebo e de seus poderes e tinha interesse de entregá-lo às filhas, para ter acesso à cobiçada pedra branca de tapioca, meio mágico de produção de alimentos (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, p. 89).

E aqui nós temos mais um personagem que aparece sem esposa, mas que, ao contrário de Basebo, vive, junto às suas filhas recém-moças, em uma situação que poderia ser considerada de miserabilidade, pois alimentam-se apenas de frutas de mato, ponto que costuma ser relacionado, pelos meus interlocutores, a uma situação próxima da extra-humanidade ou da humanidade primeva, que associam aos povos Nadahup, que não cultivariam mandioca de maneira adequada e que, por isso, roubariam dos Tukano, ou aos antigos Tukano, que consumiriam beiju feito a partir de frutas do mato. São as técnicas de cultivo e processamento de mandiocas, que viriam a ser introduzidas a partir das orientações de Basebo, que tornariam a dieta verdadeiramente humana. Basebo aceita duas esposas, estabelecendo, portanto, um casamento poligâmico com duas irmãs (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, p. 89), prática que, no imaginário histórico de meus interlocutores, remete à condição de homens em posição de chefia. É como chefe que meu interlocutor, o kumu (especialista xamânico) Rafael Azevedo, nos apresenta a imagem de Basebo narrada por Tarcisio Barreto, kumu do Alto Tiquié, ao se aproximar do território da família das pacas, cutias e acutivaias: “Basebo vinha descendo o rio, cheio de enfeites, em uma canoa, com seus ajudantes” (Rafael e Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Num primeiro momento, Basebo tomou para si toda responsabilidade sobre a subsistência alimentar da casa (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, pp. 87-90), fase que poderia ser interpretada como uma espécie de hipersserviço de noiva, quando o pretendente, para provar seu valor a qualquer custo, presta serviços diversos ao sogro e à sogra. Mas a não produtividade agrícola feminina o incomodou pela segunda vez. Na primeira vez, o demiurgo tentou aprimorar a capacidade produtiva da nora, compartilhando seu objeto mágico, e acabou sendo roubado; na segunda vez, ele mudou de estratégia. E aqui chegamos à segunda passagem (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, pp. 90-94). Basebo pede ajuda para suas esposas para ‘delimitar’ e ‘abrir’ uma roça grande e redonda, com o fio de lâmina de seu sio yahpu, ‘cabo de enxó’. E, então, fertiliza e cultiva a roça de forma mágica, ao posicionar-se no centro “da roça com seu bastão de manivas”:

Os dedos das mãos de Basebo eram todos os pés de maniva; suas pernas, caules; e os dedos do pé, as mandiocas. Este bastão representava todos os membros do corpo de Basebo, possuía também enfeites, acagantara de pena de arara, pedra branca de dança, coroa de folha de cunuri, cruzeta de pedras, todos a um só tempo eram seus poderes, espalhados na roça delimitada

(Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, pp. 91-92).

O demiurgo finaliza, através de seus poderes, via pensamento, o trabalho de derrubada e queima da roça, e convida as esposas para vê-la já cultivada, levando seus aturás apenas para coletar os vários tipos de plantações – manivas, batatas, frutas –, que surpreendem as esposas. Basebo procura mostrar e aconselhar suas jovens esposas sobre os modos adequados de cuidar da roça, os cultivos e o processamento dos alimentos, ações fundamentais do modo de transmissão de conhecimento tukano, que costumam, no entanto, ocorrer em contextos same-sex, entre mulheres. Indica-lhes como arrancar os pés de maniva, quebrando os galhos e amontoando-os, mas uma delas quebra o galho, de onde cai leite de manivas em seus olhos, dando origem a um tumor. E, se a roça e as manivas e mandiocas possuíam características de perfeição original – roças abertas e cultivadas via pensamento, roças que surgem limpas, mandiocas que já saem sem casca –, estas vão sendo pouco a pouco perdidas, com a desobediência das mulheres, que não escutam os conselhos de Basebo – olham para a roça quando ainda está sendo queimada, urinam na roça, comem antes de ralar mandioca –, tornando as roças e as e mandiocas hiper-reais – as primeiras, cheias de capins e pragas e as segundas, com cascas – e o trabalho feminino mais complicado, humano (Ñahuri & Kumarõ, 2003, pp. 93-94).

S. Hugh-Jones (2009, pp. 42-45)Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press. demonstra como os mitos tukano de criação da humanidade envolvem uma progressiva materialização e ‘embodyment’ a partir de um estado inicial imaterial e não corporal e a transição de um modo pré-humano e artefactual de reprodução, em que tubos e recipientes (masculino/feminino) substituem os órgãos reprodutivos normais que faltam às divindades, para um modo genital e totalmente humano. Aqui, da mesma maneira, podemos acompanhar uma transição. Primeiramente, tanto roça como comida eram produzidas por Basebo via xamanismo: a roça era aberta e cultivada ou fertilizada via pensamento7 7 Barreto (2021, p. 163) afirma que Ba’a sehé-Boo teria o poder de tirar do próprio corpo um pedaço de beiju para alimento cotidiano através da palavra transformadora. , através do lança-chocalho, instrumento de vida e de transformação fálico e tubular, e a comida era produzida através da manipulação da pedra de tapioca, colocada sobre um recipiente, a bacia. Com a entrada das mulheres em cena, o cultivo e o processamento de mandiocas adquirem caráter demasiadamente humano, através do trabalho feminino de plantar, colher, raspar, espremer, cozinhar, movimento este que não deixa de consistir numa espécie de fertilização mediada pelos humanos e seus artefatos. Uma leitura possível para o processo de abertura e fertilização da roça, através da conjugação entre os poderes xamânicos de Basebo e as ações das mulheres, pode ser de intercurso sexual entre o demiurgo e suas recém-esposas. No trabalho da roça, Bube (fazer penetrar em, enfiar) é o termo com o qual as mulheres tukano se referem à atividade de plantar as hastes de maniva na terra. As mandiocas serão por elas colhidas (sua, literalmente ‘arrancadas’), alojadas e carregadas em um recipiente, o aturá. Nesse sentido, Barreto (2021, p. 157)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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nos chama atenção para a analogia entre o caminho da roça e a própria vagina da mulher, no contexto da proteção xamânica do parto, ponto que já havia sido levantado por C. Hugh-Jones (1979, pp. 233-234)Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press..

Se, devido ao seu nome, a tarefa atribuída a Basebo pelo ‘Avô do Universo’ era a de criar as condições para a produção humana de alimentos e, em especial, de manivas, o protótipo para multiplicação humana de manivas e de produção de alimento a partir delas resulta da conjugação do pensamento xamânico de Basebo – que atua via artefatos mágicos (lança-chocalho e pedra de tapioca) – e do trabalho imperfeito das mulheres primevas, meio humanas, que manipulam artefatos utilizados até hoje pelas mulheres tukano. Nesse sentido, ao analisar a narrativa de sua mãe, Francisca, sobre o mesmo evento, Barreto (2021)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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chama atenção para o momento em que uma das irmãs urina na roça, tornando-a cheia de pragas, e destaca o papel da urina como elemento transformador que, ao mesmo tempo em que dificulta o trabalho na roça – a maldição de Basebo –, cria uma nova forma de trabalho feminino. Neste ponto, assim como Barreto (2021)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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, focalizo minha análise em uma questão que está ausente na análise de Bidou (1996)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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, que, por sua vez, põe em primeiro plano uma passagem posterior da narrativa em que o herói repassaria essas técnicas agrícolas diretamente para seu filho (transmissão patrilinear), tentativa frustrada na versão Hausirõ porã.

Portanto, em minha análise e na de Barreto (2021)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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, a complexificação da técnica de cultivo e processamento de mandiocas é pré-requisito para a autonomia humana do domínio da roça, que se torna feminino por excelência. Entre os Tukano orientais, históricos e contemporâneos, mesmo que as roças sejam abertas por homens nos terrenos de seus pais, ainda que, nesta ocasião, eles realizem benzimentos para que as roças se tornem férteis e produtivas, e que, em muitas situações, acompanhem as mulheres nas roças, as mulheres é que são as ‘donas de manivas e roças’, as quais se apropriam e possuem os conhecimentos sobre as variedades desses espaços, bem como a prerrogativa do cultivo e do processamento de mandiocas através da manipulação cotidiana de artefatos de trabalho. A narrativa acima nos informa que as prerrogativas e os conhecimentos sobre as manivas e mandiocas, seu cultivo e processamento, literalmente, ‘passaram para as mãos das mulheres’ através de uma situação de casamento poligâmico ancestral e de aliança entre grupos, entre gerações e gêneros, entre humanos e não humanos, diferenciando-se, assim, do padrão predominante rio-negrino, de herança via descendência patrilinear.

O argumento que exploro a seguir é de que, apesar de sua origem ancestral, longe de serem considerados dons ‘naturalmente’ femininos, a disposição e o pensamento para o cultivo de mandiocas devem ser produzidos contínua e progressivamente nas/pelas meninas e moças a cada geração, e que isso é efetivado através de dois procedimentos complementares: xamanismo e experiência.

CORPOS FEMININOS, CORPOS DE MANIVAS

Ao narrar sua versão e realizar uma exegese da narrativa de Basebo, Rafael Azevedo, kumu Ñahuri Porã, clã companheiro e vizinho dos Hausirõ porã, explica que as mulheres possuem, assim como Basebo, ‘vida’ (kahtise)/‘corpo’ (uhpu) de maniva, e que partes do corpo da mulher correspondem a partes de corpo de manivas. Trata-se de uma noção de composição vegetal do corpo feminino, que implica uma mútua afetação entre mulheres e manivas, de modo que o tipo de cuidado que a mulher dedica às manivas tem influências diretas nas condições do seu próprio corpo:

Manivas são importantes porque um pé de maniva é a vida da mulher, é o corpo dela. O cabelo é a folha dela, os frutos são os brincos dela, a mandioca são os pés dela. Se um benzedor vai benzer, ele menciona isso mesmo. Para todas as mulheres de todas etnias se benze assim... Tudo isso aqui é mandioca. O corpo dela. Por isso que a mulher não deve quebrar demais ou despedaçar tudinho. Nem quebrar à toa e jogar no chão, senão ela vai ser castigada. Será atingida por alguma doença. Dor de cabeça, dor de articulação, picada por tocandira, mordida por aranha, jararaca. Por isso ela tem o dever de cuidar bem, conservar bem. Vendo, por exemplo, que um pé de maniva foi roído por uma cutia e está caído no chão, ela tem que pegar e cuidar... O branco também tem macaxeira, que é o corpo dela. O que é da roça, é da mulher. O homem faz derruba, queima, abre, planta e pronto, mas essa força que é da sustentabilidade familiar, é ela que trabalha e é ela que tem conhecimento sobre cada tipo de maniva

(Rafael e Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Esta ênfase na correspondência entre partes de corpos/roça/espécies ou variedades de plantas não é particular à exegese de Rafael Azevedo, mas um princípio geral destas narrativas. Na versão de Ñahuri e Kumarõ (2003)Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, vimos a correspondência entre o corpo/ornamento de Basebo e a maniva/roça (dedos das mãos = pés de maniva; perna = caules; dedos do pé = mandiocas, enfeites de dança = poderes espalhados pela roça delimitada) e, ainda, como o herói possui uma pedra branca de tapioca e uma lança-chocalho de manivas, que são instrumentos de abertura e fertilização da roça.

Na análise de Bidou (1996)Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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sobre a versão desana, encontramos a analogia entre o corpo do herói, a roça e seus produtos, através da identificação entre a queima do corpo/ornamentos de Baribo e a queima da roça e a consubstancialidade entre corpo do herói e o amido (pedra de tapioca). Sobre a versão curipaco, o autor apresenta Kaaratari, ancestral cujo corpo seria composto por estacas, e produziria mandioca a partir do seu próprio dedo. Os produtos da roça seriam sua carne (kai – palavra que também designa ‘esperma’) (Bidou, 1996Bidou, P. (1996). Trois mythes de l’origine du manioc (Nord-Ouest de l’Amazonie). L’Homme, 36(140), 63-79. https://doi.org/10.3406/hom.1996.370156
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, pp. 65-66). A partir da versão tuyuka, narrada por sua mãe, Francisca, Barreto (2021)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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menciona o antropomorfismo da gente-maniva, ao se referir à correspondência entre o corpo cosmológico de Ba’asehé-Boo – corpo = toletes, braços = galhos, palmas das mãos = ramas, dedos dos pés fincados ao chão = mandiocas bravas, demais dedos = outras variadas espécies de plantas8 8 Barreto (2021) tem a riqueza de ressaltar a característica multiespecífica da roça, ponto também identificado pela antropóloga indígena Rosi Whaikon (Pereira, 2019). . As massas brancas e amarelas da mandioca seriam a carne de Ba’asehé-Boo. No procedimento de ralar a mandioca, a casca marrom seria a pele e o líquido (carregado em ácido cianídrico) seria o sangue (Barreto, 2021Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
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, pp. 162-163).

De acordo com C. Hugh-Jones (1979, p. 233)Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press., para os Barasana, o herói é a ‘Anaconda haste de maniva’, que se queima com o tabaco do sol primogênito, ação que representa a própria queima anual das roças. Nesta queimada primordial, surgem, a partir dos carvões, uma haste de maniva e um homem, que é a própria Anaconda renovada. Dos carvões de partes brandas (líquido corporal) do corpo do herói (gordura, paredes de intestinos, fígado etc.), surgem plantas como fungos e caruru. Neste sentido, C. Hugh-Jones (1979)Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press. estabelece as seguintes correspondências: ‘Anaconda haste de maniva’ = roça; pedaços de troncos carbonizados da roça queimada = ossos queimados de ‘Anaconda haste de maniva’; beiju de mandioca no cesto = ‘Anaconda haste de maniva’ enroscada no banco.

Mas a autora vai além, ao identificar as raízes da maniva (produto da associação entre hastes de maniva + terra fértil) correspondendo a crianças controladas pelas mulheres (C. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press., p. 233). Nesse sentido, a análise de C. Hugh-Jones (1979)Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press., realizada no final dos anos 1970, antecipa o debate desenvolvido posteriormente na etnologia das terras baixas que, como bem sintetizou Morim de Lima (2017)Morim de Lima, A. G. (2017). A cultura da batata-doce: cultivo, parentesco e ritual entre os krahô. Mana, 23(2), 455-490. https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23n2p455
https://doi.org/10.1590/1678-49442017v23...
, diz respeito ao parentesco vegetal, à extensão do parentesco para além do humano e ao tratamento das plantas como filho, adentrando na esfera da criação e do cuidado.

Os procedimentos de cuidado entre mulheres e manivas aparecem em outros momentos na literatura Tukano oriental. Emperaire (2010Emperaire, L. (Org.). (2010). Dossiê de registro do sistema agrícola tradicional do Rio Negro. ACIMRN/IPHAN/IRD/UNICAMP-CNPq. http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_sistema_agricola_rio_negro.pdf
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfin...
; Emperaire et al., 2012Emperaire, L., Oliveira, A., & van Velthem, L. (2012). Patrimônio cultural imaterial e sistema agrícola: o manejo da diversidade agrícola no médio rio negro - Amazonas. Ciência e Ambiente, (44), 154-164. https://cienciaeambiente.com.br/shared-files/1855/?141-154.pdf
https://cienciaeambiente.com.br/shared-f...
) faz referência a um ethos de relações entre seres da roça, que incluem o trato das agricultoras com as plantas cultivadas, sintetizadas em expressões como “manivas não podem passar sede”, devem “estar alegres e penteadas”, “fazem festas”, “são criadas” (Emperaire, 2010Emperaire, L., & Oliveira, J. C. (2010). Redes sociales y diversidad agrícola en la Amazonía brasileña: um sistema multicéntrico. In M. L. Pocchetino, A. H. Ladio & P. M. Arenas (Orgs.), Tradiciones & transformaciones en etnobotánica (pp. 180-185). Cyted-Risapred., p. 86; Emperaire et al., 2012Emperaire, L., Oliveira, A., & van Velthem, L. (2012). Patrimônio cultural imaterial e sistema agrícola: o manejo da diversidade agrícola no médio rio negro - Amazonas. Ciência e Ambiente, (44), 154-164. https://cienciaeambiente.com.br/shared-files/1855/?141-154.pdf
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, p. 151). Há também regras de colheita dos tubérculos, entendidos como “capital produtivo” da roça, que exigem cuidados em relação ao seu “capital reprodutivo” (Emperaire et al., 2012Emperaire, L., Oliveira, A., & van Velthem, L. (2012). Patrimônio cultural imaterial e sistema agrícola: o manejo da diversidade agrícola no médio rio negro - Amazonas. Ciência e Ambiente, (44), 154-164. https://cienciaeambiente.com.br/shared-files/1855/?141-154.pdf
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, p. 151) – as manivas – que, ao serem destacadas dos tubérculos, “não podem ser queimadas e nem abandonadas, devem ser fincadas na terra ou encostadas em um tronco queimado” (Emperaire et al., 2012Emperaire, L., Oliveira, A., & van Velthem, L. (2012). Patrimônio cultural imaterial e sistema agrícola: o manejo da diversidade agrícola no médio rio negro - Amazonas. Ciência e Ambiente, (44), 154-164. https://cienciaeambiente.com.br/shared-files/1855/?141-154.pdf
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, p. 151). De modo semelhante, a antropóloga Rosi Waikhon aborda a roça como um espaço de cuidado, conversa e circulação entre plantas, horticultoras e outros seres, e menciona práticas de cuidado da mulher em relação às manivas: a capina como sendo o corte de cabelos das manivas e a organização das estacas e dos tubérculos nas colheitas: além das estacas não poderem ser abandonadas, e sim ser fincadas ao solo, os tubérculos menores não devem ser deixados de lado, pois reclamam e choram, argumentando que possuem muita tapioca que não será dada à dona (Pereira, 2019Pereira, R. F. [Rosi Waikhon]. (2019). Roças: espaços de construção da ciência indígena na região do alto rio Negro, conhecimentos que não são à toa. In D. Montardo, A. Tassinari & J. Vieira (Orgs.), Antropologia e educação: refletindo sobre processos educativos em contextos escolares, não escolares e de políticas públicas (pp. 33-47). Copiart/EDUA/EDUFRN., p. 44).

Porém, o que a exegese de Rafael, apresentada no início deste tópico, nos revela, é, por um lado, uma correspondência que vai além daquela entre o corpo do herói e a roça/mandioca ou entre mandiocas e crianças, pois trata de uma correlação entre partes de corpos de mulheres e partes de corpos de manivas, a qual ultrapassa uma noção de metáfora ou analogia, apontando, de fato, para uma composição vegetal do corpo da mulher (ver Shiratori, 2020Shiratori, K. (2020). Vegetalidade humana e o medo do olhar feminino. In J. C. Oliveira, M. Amoroso, A. G. Morim de Lima, K. Shiratori, S. Marras & L. Emperaire (Orgs.), Vozes vegetais: diversidade, resistências e histórias da floresta (pp. 226-241). Ubu Editora/IRD., para os Jamamadi do médio Purus). E corpos que se compõem mutuamente efetivam ações que implicam a saúde e o bem-estar uns dos outros. Deste modo, essa composição vegetal traz, por implicação, uma ética do cuidado nas relações mulheres-manivas/mandiocas, que, por vezes, é formulada através do idioma de filiação ou mesmo de um ethos geral de cuidado nas relações estabelecidas nas roças.

Ao traçar um paralelo entre os ritos de iniciação masculina e a atividade feminina relacionada à mandioca, C. Hugh-Jones (2011, p. 236) retoma uma variação recolhida por Jean Jackson do mito uaupesiano acerca da “queda dos poderes das mulheres”, em que elas fazem para si mesmas o tripé onde repousa o cumatá (utilizado para a separação entre a goma e o tucupi da massa), e não fazem os instrumentos do jurupari, de modo que, ao invés de obterem o conjunto de instrumentos que conseguem unir para convocar uma espécie de poder ancestral inerente às flautas jurupari, adquirem a habilidade para separar os poderes da mandioca que se unem para alimentar a comunidade. A autora menciona que versões narradas entre grupos do Pirá-Paraná afirmam que, quando as mulheres tinham o jurupari, os homens ficavam com os braços brancos até os cotovelos, de tanto esmagar a mandioca na peneira. Esta contraposição entre o manejo do jurupari e o da roça, e sua fluidez entre gêneros, também está presente na versão dos Tukano (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, p. 139) e dos Makuna, em narrativas de origem e roubo das flautas sagradas (ver Mahecha Rubio, 2004, p. 158), e está implícita de outra maneira na quase identidade entre a ‘Anaconda haste de maniva’ e o jurupari (C. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press.).

Strappazzon (2013, p. 143)Strappazzon, A. I. (2013). Pelos caminhos de manivas e mulheres: conhecimento, transformação e circulação no alto rio Negro [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/122583
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sugere que, “se as mulheres Tukano não têm acesso direto às potencialidades do jurupari (flautas sagradas), têm [acesso] às potencialidades de Basebo, através de suas roças e mandiocas”. Desde S. Hugh-Jones (1979)Hugh-Jones, S. (1979). The Palm and the Pleaides. Initiation and cosmology in Northwest Amazonia. Cambridge University Press., sabemos que o jurupari é considerado uma espécie de menstruação feminina, e a menstruação, o jurupari feminino (Mahecha Rubio, 2004Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]., p. 159). Mahecha Rubio (2004, p. 158)Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]. demonstra como, para os Barasana e os Makuna, ao perderem o jurupari, recuperado pelos homens, as mulheres começam a menstruar e, ao mesmo tempo, são ‘castigadas’, tendo que trabalhar na roça. Andrello e Viana (2020)Andrello, G., & Viana, J. (2020). A humanidade e seu(s) gênero(s): mito, parentesco e diferença no noroeste amazônico. Revista de Antropologia, 65(1), e192786. https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192786
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retomam a passagem de uma narrativa tukano-desana sobre o conhecido mito de roubo da flauta jurupari pelas mulheres, em que uma das irmãs, tentando esconder a flauta em sua vagina, dá origem à menstruação, de modo que, como argumentam os autores, o jurupari, assim como afirmamos sobre Basebo anteriormente, é um ser andrógeno, cujas potencialidades são manifestadas em homens e mulheres de maneira distinta.

A estes argumentos, acrescento que, assim como os jovens moços só têm acesso ao jurupari e a seus poderes a partir do ritual de iniciação masculina, as moças só têm acesso, de fato, às potencialidades de Basebo e aos poderes de cultivo da roça a partir dos procedimentos xamânicos de complexificação da nominação, realizados por ocasião da primeira menstruação. As mulheres em menarca, portanto, plenas da potencialidade do jurupari, recebem os poderes de Basebo – o gente-maniva, que, assim como jurupari, possui a qualidade da androgenia – e, desta maneira, têm seus corpos e pensamentos compostos xamanicamente para trabalhar na roça, produzir mandioca e preparar caxiri. Aqui, cabe mencionar a passagem da narrativa usualmente pouco destacada: quando Basebo encontrou as filhas de Wariro pela primeira vez, elas estavam em período de primeira menstruação, e ele auxiliou o pretenso sogro na realização de encantações xamânicas relativas ao primeiro banho das moças em menarca (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, p. 87).

MANIVAS E ARTEFATOS: COMPOSIÇÃO XAMÂNICA DE CORPOS-PENSAMENTOS FEMININOS9 9 Para formulação aproximada e complementar, ver o capítulo 6 da tese de Barreto (2023).

Ao afirmar que os xamãs compõem partes de corpos da mulher, com partes de corpos de manivas, citação anteriormente mencionada neste artigo, Rafael aludia à encantação de nominação realizada no nascimento e complexificada na menarca. Entre grupos Tukano orientais, um tempo depois do nascimento da criança, um parente da linha agnática, geralmente o avô paterno, lhe atribui um nome pessoal, específico por gênero, que consiste na sua força vital, oriunda do clã patrilinear (C. Hugh-Jones, 1979Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press.; S. Hugh-Jones, 2002Hugh-Jones, S. (2002). Nomes secretos e riquezas visíveis: nominação no noroeste amazônico. Mana, 8(2), 45-68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000200002
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). Como argumentou S. Hugh-Jones (2009)Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press., no nascimento, na nominação, na puberdade e na iniciação, o kumu controla transições e transformações corporais, manipulando artefatos idênticos a partes do corpo. Esta identidade é afirmada em encantações em que meninos e meninas recebem xamanicamente artefatos rituais em seus corpos e, com a socialização, passam a externar, na puberdade, tais objetos em suas formas concretas, produzindo adornos cerimoniais e cerâmicas, respectivamente.

Seguindo esse fio condutor, entendo que, entre os Tukano, o verbo dare, que compõe a expressão eheriporã dare, traduzida simplificadamente como ‘dar o nome de coração’, revela o caráter artefactual de tal procedimento, pois o verbo dare, que em Ramirez (1997, p. 31) é glosado como “construir, fabricar, preparar”, é utilizado por meus interlocutores, tanto em referência à execução de procedimentos xamânicos como à realização de qualquer trabalho artesanal, como construir uma casa ou fabricar uma peça de cerâmica, cestaria ou uma armadilha de pesca. Tal conceito remete, e o fortalece, ao argumento de S. Hugh-Jones (2009)Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press., mencionado acima, sobre uma teoria ameríndia de fabricação de corpos e coisas, com a ideia de corpos sendo constituídos xamanicamente de partes/componentes de artefatos – ao que poderíamos acrescentar de plantas/animais/substâncias – e, ainda, corpos femininos sendo construídos na primeira menstruação por tipos/partes de manivas e, conforme veremos, por também seus artefatos de trabalho na roça e casa-cozinha.

De modo semelhante ao que foi registrado entre os Makuna (Århem et al., 2004Århem, K., Cayon, L., Angulo, G., & Garcia, M. (2004). Etnografía Makuna. Tradiciones, relatos y saberes e la Gente de Água. Instituto Colombiano de Antropología e Historia.; Mahecha Rubio, 2004; S. Hugh-Jones, 2009Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press.), meus interlocutores relatam que, durante a nominação, o xamã irá delinear a vida da criança, seu corpo e o pensamento, atribuindo-lhe certos tipos de artefatos, plantas e substâncias específicas para realizar certos trabalhos, que compõem especificidades de gênero, procedimentos que serão reforçados ou complexificados em rituais marcadores da puberdade. Como me explicaram os kumua Rafael e José Azevedo, o kumu oferece ao bebê, através do pensamento, artefatos rituais, seus ‘artefatos de vida’. Com seu banco de vida, a criança irá crescer saudável e ‘assentada’, com a postura adequada para ouvir os conselhos dos mais velhos e assumir as responsabilidades de desenvolver os trabalhos femininos ou masculinos. E são os kumua tukano do alto Tiquié que explicam que, ao receber o nome, a menina ganha seu banco de vida, sua cuia de vida, seu suporte de vida – e tem sua vida, seu corpo e sua carne misturados com “a cuia, o suporte de cuia e o banco de Basebo” (AEITYPP, 2011Associação Escola Indígena Tukano Yepa piro porá (AEITYPP). (2011). Nirõ kahse ukuri turi – Yepa Pirõ Porã tuoñase bueri turi. Imprensa Oficial., p. 19, traduções minhas). Neste sentido, meus interlocutores sublinham que, através desta complexa operação ritual, a vida/corpo da menina é dotada com os poderes de Basebo, o dono da alimentação, gente-maniva. Quando essa operação é efetuada, “a menina deverá crescer pensando em plantar manivas, tirar mato, arrancar mandioca, ralar e espremer, deverá desenvolver interesse em acompanhar sua mãe na roça e aprender com ela”, afirma o kumu José Azevedo (José Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

S. Hugh-Jones (2009, p. 49)Hugh-Jones, S. (2009). The fabricated body: objects and ancestors in NW Amazonia. In F. Santos-Granero (Ed.), The occult life of things (pp. 33-59). University of Arizona Press. chama atenção sobre como os moços iniciantes e as moças em primeira menstruação são treinados tecnicamente, moralmente e espiritualmente para produzirem coisas bonitas – cestas e cerâmica, respectivamente – e, após esse período, atuarem em produções que exigem mais conhecimento – ornamentos de penas, objetos rituais e tinta vermelha carajuru. Do mesmo modo, devem vestir-se com ornamentos e pinturas que produzem e embelezam a pessoa. Em um contexto em que as grandes festas rituais deixaram de ser realizadas, meus interlocutores ressaltam que estas práticas aconteciam no passado, e centram seus discursos no modo como, na puberdade, moços e moças terão uma responsabilidade maior em desenvolver atividades comuns voltadas para subsistência – pesca e roçado –, que envolvem, por sua vez, a manipulação de artefatos e substâncias – armadilhas de pesca e timbó, e utensílios de roça/cozinha e manivas/mandiocas, produzindo-se, dessa maneira, como homens e mulheres tukano.

Na primeira menstruação, o kumu benze as mãos e os braços das moças com manivas (de flores, cucura, cunuri, samaúma, entre outros elementos) para que ela possa, mais tarde, trabalhar a mandioca – isto é, ralá-la e espremê-la no cumatá (Ñahuri & Kumarõ, 2003Ñahuri (Miguel Azevedo) & Kumarõ (Antenor Nascimento Azevedo). (2003). Dahsea Hausirõ Porá Ukushe Wiophesase Merã Bueri Turi: mitologia sagrada dos Hausirõ Porã (Coleção “Narradores indígenas do rio Negro”, Vol. 5). UNIRT/FOIRN. https://acervo.socioambiental.org/acervo/livros/dahsea-hausiro-pora-ukushe-wiophesase-mera-bueri-turi-mitologia-sagrada-dos-tukano
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, p. 200). A moça, assim benzida, desenvolverá braços e pernas fortes para trabalhar na roça. Como me explicou o casal Rafael e Oscarina, o kumu incorpora xamanicamente vários tipos de maniva na moça, recebendo manivas-semente em suas mãos. Se a moça é benzida assim, “ela trabalha rápido na roça e na cozinha e, quando espreme mandioca, sai muita goma” (Rafael e Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Quando o kumu Jovino Azevedo ‘benze’ uma amomori mahsõ – moça em estado de primeira menstruação –, ele ‘oferece’ a ela xamanicamente seus ‘instrumentos de trabalho’ – os artefatos que ela utilizará no crescimento e processamento de mandiocas. Todos estes artefatos terão seus perigos despotencializados via benzimento através da menção e da neutralização das substâncias nocivas utilizadas na sua confecção, evitando, assim, que eles possam causar males à mulher. Após ser bem benzida durante a menarca, ela irá acompanhar o trabalho da mãe. A moça é também protegida contra os ataques sobrenaturais vindos da gente-árvore (yuhku-mahsã) e da gente-calango (yoasoã-mahsã), donos que habitam as roças de mandioca e que protegem esse lugar, podendo causar doenças a quem o frequenta. Protege-a do calor do Sol, que é um ser considerado extremamente nocivo – para isso, o xamã vai colocar balaios sobre a cabeça da moça, balaio de cipó-veado, cipó-titica, tatu-cipó e de outros tipos de cipó, como bukuro misi e poadari misi, onde as mulheres costumam armazenar o mato que é arrancado durante o trabalho na roça. Estes balaios são comparados pelos kumua aos antigos escudos de guerra que também tinham uso ritual. Devido a esta defesa xamânica, as mulheres são consideradas mais resistentes do que os homens para a realização de trabalho na roça, durante horas, sob o calor do sol. “É por isso”, afirma Jovino, “que às vezes, as mulheres, no dia do sol, põem na cabeça o balaio e seguem trabalhando tranquilamente” (Jovino Azevedo, comunicação pessoal, 2014).

Há certa variação ou abertura na forma como meus interlocutores kumua discorrem sobre a outorga dos bancos e sobre os poderes atribuídos aos meninos/moços e menina moças no nascimento e na puberdade que nos permite interpretações diversas. Nesse sentido, Mahecha Rubio (2004)Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]. afirma que, entre os Makuna, há duas versões sobre o assunto. Alguns kumua dizem que atribuem nomes aos recém-nascidos de ambos os gêneros, mencionando/outorgando xamanicamente bancos de cupim, leite materno e pintura negra wee, bancos que seriam mudados durante a iniciação masculina e feminina por definitivo, que permitiriam manejar os conhecimentos entre os adultos (Mahecha Rubio, 2004Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]., p. 217). Outros kumua, no entanto, afirmariam que os bancos nunca mudam e, à exceção do banco daqueles que retiram as doenças e do manejador de jurupari, eles seriam constituídos na nominação. Mulheres teriam ‘bancos de pintura negra’, maniva, carajuru, pimenta, frutas, tabaco e coca, e os homens têm bancos de tabaco, coca, yagé, yuruparí, entre outros relacionados com sua especialidade. Nos benzimentos iniciais, os conhecimentos e poderes associados a objetos rituais seriam nomeados com pouca força, de modo que estes lhes seriam atribuídos, mas não entregues, porque os bebês não estariam prontos para manejá-los. Na iniciação masculina e feminina, os bancos seriam nomeados de novo e se colocariam mais pensamentos e força através do sopro ritual para potencializar seus poderes, pois, agora sim, já estariam prontos para manejá-los (Mahecha Rubio, 2004Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]., pp. 218-219). De acordo com a autora, embora algumas meninas sejam benzidas para se tornarem cantoras, todas são benzidas para tornarem-se donas de roças, atribuindo a algumas a especialidade sobre certos tubérculos (Mahecha Rubio, 2004Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]., p. 220). A maniva seria a defesa da mulher e seu pensamento seria construído para produzir filhos e alimentos (Mahecha Rubio, 2004Mahecha Rubio, D. (2004). La formación de Masa Goro “personas verdaderas”. Pautas de crianza entre los Macuna del Bajo Apaporis [Dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia]., p. 120). As versões narradas pelos nossos interlocutores se aproximam mais dessa segunda opção.

Resumindo, pode-se dizer que, no nascimento, através da atribuição e da manipulação do nome, a menina recebe, por intermédio do pensamento do kumu, os poderes de Basebo, mas é na menarca que, de fato, começará a exercê-lo, ao receber, também pelo pensamento do kumu, sementes de maniva e artefatos de trabalho. Assim, ao mesmo tempo em que seu corpo estará capacitado e protegido para frequentar a roça e cultivar e processar mandioca, ela deverá desenvolver um pensamento para o trabalho na roça. Como José Azevedo explica, “assim ela vai sempre lembrar de trabalhar na roça (wehse darase wakũ), raspar, espremer mandioca, pois esse será o trabalho dela, e ela não vai ficar o dia todo sentada e com preguiça” (José Azevedo, comunicação pessoal, 2017). Nas palavras de Rafael Azevedo (comunicação pessoal, 2017): “Quando a mulher é trabalhadora ela coloca logo o aturá na cabeça, quando a mulher é preguiçosa já dá para sentir”. E acrescenta: “Ao ver que uma mulher é preguiçosa, o kumu mesmo pode retirar dela as sementes de maniva que anteriormente lhe entregou” (Rafael Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

TORNANDO-SE MULHER NO TRABALHO COM AS MANIVAS/MANDIOCAS

A afirmação de Rafael aponta para um aspecto fundamental do desenvolvimento da habilidade feminina: a experiência. Logo após os procedimentos de couvade10 10 Cuidados tomados pelos pais no pós-parto. , duas semanas depois do nascimento, a roça de mandioca foi o primeiro lugar para o qual Duhigo, a pequena bebê tukano, foi levada e apresentada por sua mãe e avó paterna, paramentadas com carajuru benzido, para impedir que seu corpo, ainda frágil, fosse atacado ou que tivesse sua vida roubada por seres naturais e sobrenaturais.

Atividades realizadas na roça, na cozinha e nos arredores da casa pelas mulheres envolvem processos de transmissão de conhecimentos femininos intergeracionais – entre mães e filhas, avós e netas, tias e sobrinhas, irmãs mais velhas e mais novas –, em que as mais velhas costumam mostrar como se faz tais práticas e aconselham as mais novas sobre como se portar e como trabalhar. As mais novas aprendem ouvindo recomendações, observando o modo como as mais velhas trabalham e experimentando ao realizar seus próprios afazeres.

Quando era bebê, Oscarina costumava acompanhar sua mãe na roça de mandioca, no seu colo, já observando o modo de trabalhar. Primeiro, ganhou um aturá pequeno, carregava umas poucas manivas, caminhava pouco durante o trajeto de retorno para casa, quando logo largava o aturá, entregando-o para sua mãe. Quando as mães têm bebês e filhas pequenas, é comum que construam uma espécie de casinha com rede na roça para deixar seus bebês dormirem e as meninas brincarem. Quando a menina está um pouco maior, ela começa a carregar um aturá médio, com mais mandiocas e caminha mais. Aprende o modo correto de arrancar mandioca, sem quebrar os tubérculos; a forma de organização das mandiocas por tamanho e peso no aturá; como caminhar corretamente, equilibrando o aturá em sua pequena cabeça. Na cozinha, começa a ajudar a mãe, preparando mingau e mastigando tubérculos para fermentação do caxiri, aprendendo a como manipular facas, ao descascar mandioca, ralando-a e espremendo-a no cumatá. Por vezes, circula pelas outras casas da comunidade, ajudando a avó paterna e as mulheres de seus tios paternos. Mas a menina, de certa forma, ‘brinca de trabalhar’, porque, como Oscarina sublinha, começa o trabalho e nunca termina, interrompendo-o no momento em que ela quiser (Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

São aprendizados multissensoriais, pois envolvem a distinção de sons, cores, odores e texturas muito específicas. É o caso, por exemplo, do preparo da manicuera, bebida feita a partir do líquido destilado da mandioca brava misturado com frutas da estação. Esse líquido é venenoso (possui cianeto), e seu preparo exige certa atenção: apenas quando estiver num determinado grau de fervura é que ele pode ser considerado pronto para o consumo. Tal estado só pode ser identificado a partir da observação da sua cor, do aspecto de sua espuma e do odor. Se a bebida for servida antes desse ponto, ela pode ocasionar problemas gastrointestinais e levar à morte

(Oliveira, 2017bOliveira, M. S. (2017b). Transformações da casa e atualização de conhecimentos femininos entre grupos Tukano, noroeste amazônico. In Anais do 13º Congresso Mundos de Mulheres (MM), Florianópolis. http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1498845249_ARQUIVO_Modelo_Texto_completo_MM_FG(1).pdf
http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/r...
, p. 7).

O momento em que uma menina vai começar a trabalhar mais intensamente na roça e a intensidade do seu trabalho dependem muito da configuração da família. As primeiras filhas costumam começar a trabalhar mais cedo; e quando uma mãe tem apenas uma filha, esta provavelmente vai ter mais trabalho a fazer. Oscarina, por exemplo, costumava dividir o trabalho com sua irmã e as duas brincavam de contar quem conseguia arrancar mais mandiocas, o que tornava a atividade mais leve e prazerosa.

Se as filhas mais velhas ou únicas iniciam o trabalho duro mais cedo, a partir da primeira menstruação, as moças têm uma certa obrigação moral de acordar cedo para fazer mingau, ir à roça com a mãe, sustentando um aturá grande, para trabalhar de modo mais contundente no processamento de mandiocas, e, principalmente, elas devem preparar seu próprio caxiri, a ser oferecido nas festas. O preparo e o oferecimento do próprio caxiri demarcam a condição de moça, indicando a possibilidade de iniciar sua vida sexual e de casar.

Antigamente, logo após a primeira menstruação, a moça tinha o casamento rapidamente arranjado pelos pais e, muitas vezes, o primeiro caxiri já era preparado na comunidade do esposo. Ao casar e se mudar para a comunidade do marido, levava apenas a rede e recebia da sogra artefatos de trabalho de cultivo e processamento de mandiocas, bem como a responsabilidade de cuidar do filho dela, a partir de seus próprios conhecimentos prévios e da observação do modo de trabalhar da sua mãe e da sua sogra, que não possui a responsabilidade de a orientar, como podemos ver na narrativa de Isabel Tuyuka, traduzida por sua nora, Aparecida:

A sogra não ensinou ela, ela aprendeu sozinha, praticamente vendo a sogra fazer. Primeiro a sogra deu um aturazinho com um terçadinho, para manejar a mandioca, deu a cuia maiorzinha e uma pequeninha, a sogra, que é para tomar manicuera. Depois ela deu diitu, panela de cerâmica, diipa, bacia feita de cerâmica, witari, trempe para fazer fogo. Panela não tinha para esquentar mingau. Era de costume, ninguém precisava de panela na época. “A partir de hoje, o meu filho é teu marido e é você que vai cuidar, está aqui a panelinha de barro e as coisas para colocar panela, a trempe”. Única coisa que a sogra deu para ela. E nunca disse, faça assim, assim, nada... Primeiro ela deu o aturá. Então, ela deu a panelinha de barro para separar já. Para fazer para ela e para o marido dela. Nem rede não existia, era feito de tucum. Aquelas redinhas que o pai dela fez para ela. Foi a única coisa que ela trouxe de casa

(Isabel Azevedo, comunicação pessoal, 2013, tradução de Aparecida Azevedo).

A introdução de bens manufaturados e a profissionalização das mulheres parecem ter modificado a dinâmica segundo a qual a sogra oferece à nora os utensílios de cozinha e cerâmica, feitos por elas mesmas. Tal prática ainda continua como uma referência nos relatos das mulheres. É o caso de Maria Aguiar, para quem, por ter saído da escola e se ‘aventurado’ ao trabalhar com as freiras nas cidades de São Gabriel e Manaus, casou em idade mais madura, chegando à comunidade do marido com seu próprio conjunto de utensílios de cozinha comprados; ou o caso de Oscarina, que diz que, quando chegou, ainda nova, ouviu da sogra a seguinte pergunta jocosa: “Já recebeu panelas do teu marido?”.

No entanto, a chegada da mulher à comunidade do marido continua sendo narrada como um período intenso de trabalho na roça da sogra:

Ela foi mostrar a roça dela, “nós vamos arrancar junto, fazer assim”, ela falou, muito legal. Depois, ela, quando chegou para casa, ela tinha contado para o marido dela, “ela vai trabalhar assim, assim, assim, assim, eu mandei fazer assim”, o que ela falou, já foi o contrário. Aí, a tarde, ela me disse, “tu que veio aqui, tu que entrou aqui com meu filho, tu foi deitar com ele, agora tu já sabes trabalhar, torrar farinha, capinar, como plantar, né? Como pintar as cuias, como preparar as cuias, né? Como ter pimenteira, assim, bia poose, né? Tudo isso, agora vai cair só para você”

(Oscarina e Maria Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Após um tempo trabalhando na roça da sogra, a mulher vai se tornar finalmente autônoma, dona de sua roça, aberta pelo marido ou em trabalho de ajuri (mutirão), em terreno do pai do seu marido, com as variedades de manivas herdadas principalmente da mãe e da sogra, provedora de sua família e pronta para entrar na rede de trocas da comunidade.

As mulheres estão constantemente sendo observadas e testadas desde que chegam à comunidade, pelas sogras, maridos, concunhadas, e, de acordo com seu comportamento, são respeitadas ou alvo de fofoca e desprezo:

Se acordam cedo para preparar o mingau, o beiju e esquentar a quinhampira, se possuem roças bem cuidadas, limpas e com variedades de cultivares, se preparam beijus e quinhampira com frequência, são consideradas trabalhadoras, boas mulheres. Se possuem roças pequenas e descuidadas ou abandonadas, se apresentam sempre beijus duros, antigos, quinhampiras “machucadas de peixe”, ou seja, requentadas várias vezes, são consideradas preguiçosas. Se produzem receitas difíceis que outras não se dispõem a produzir, como pratos à base de japurá (Erisma Japurá) e cunuri (Cunuria spruceana), que são trabalhosos e imprescindem de um cuidado especial, são consideradas especialistas, habilidosas (merĩgo)

(Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle...
, p. 247).

Resumidamente, a composição de mulheres donas de roça e cultivadoras de manivas se dá através de uma combinação entre xamanismo e experiência. Por um lado, a menina-moça é submetida a procedimentos xamânicos durante a primeira menstruação, que compõem seus corpos e direcionam seus pensamentos para realizar e aguentar o trabalho na roça, conhecer e cultivar manivas, manipular artefatos de trabalho de roça e cozinha. Por outro lado, tais habilidades precisam ser aguçadas e desenvolvidas através do engajamento da menina-moça-mulher na experiência diária de trabalho nestes espaços, que se inicia com seu aprendizado junto a sua mãe, irmãs e outras mulheres da família, se torna responsabilidade maior com a primeira menstruação e é aprimorado com o casamento, quando a mulher se transforma em dona de roças, manivas e artefatos.

COLEÇÕES E RELAÇÕES NA ROÇA E CASA-COZINHA

Durante atividades de pesquisa sobre a roça, Dona Oscarina, única agente indígena de manejo ambiental mulher da região do Tiquié, apresentou a mim, ao engenheiro agrônomo Pieter Van der Veldt, meu colega do Instituto Socioambiental (ISA), e aos seus colegas agentes, uma de suas três roças. Uma roça de capoeira, que havia sido recentemente plantada, em grande parte através de técnica de replante, ou seja, buscando mudas em sua roça antiga, com ajuda de suas duas filhas moças e de um filho jovem. Nas palavras de Oscarina Azevedo (comunicação pessoal, 2017): “Rafael [seu marido Tukano] nem conhece o que eu tenho, só conhece o beiju”. Se os homens têm a prerrogativa de narrar a história de origem da manivas e mencionar em seus bahsese as espécies de maniva-chefe e cada espécie de maniva que existem no território, especificando suas classes, são as mulheres que dominam e manipulam, no cotidiano, a correspondência entre nomes, aparência, uso e circulação de uma das variedades de plantas cultivadas na roça, especialmente manivas e remédios. Encontramos aqui, mais uma vez, a oposição complementar entre xamanismo e experiência, agora dividido, ou genderizado, como histórias/fórmulas:homens::nomes/tipos/usos: mulheres.

O entusiasmo de Oscarina ao nos contar sobre o conjunto de manivas por ela manejado em sua roça reforça o argumento de Emperaire (2005 citada em van Velthem, 2012Van Velthem, L. (2012). Cestos, peneiras e outras coisas: a expressão material do sistema agrícola no rio Negro. Revista de Antropologia, 55(1), 401-437. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.46970
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
, p. 429) sobre o gosto das mulheres rio-negrinas pela “diversidade e o colecionamento”. Oscarina, poderíamos dizer, é dona de uma coleção de manivas, “uma entidade global que tem seu próprio significado”, e não apenas de variedades isoladas e justapostas (Emperaire, 2010Emperaire, L., & Oliveira, J. C. (2010). Redes sociales y diversidad agrícola en la Amazonía brasileña: um sistema multicéntrico. In M. L. Pocchetino, A. H. Ladio & P. M. Arenas (Orgs.), Tradiciones & transformaciones en etnobotánica (pp. 180-185). Cyted-Risapred., p. 84). Dentre as dezoito variedades de manivas identificadas e nomeadas em sua roça, Oscarina classifica dez como brancas (buhtise), oito como vermelhas (soãse) e uma como macaxeira, nome que dão regionalmente ao tipo de mandioca não venenosa. Segundo Emperaire et al. (2012, p. 149)Emperaire, L., Oliveira, A., & van Velthem, L. (2012). Patrimônio cultural imaterial e sistema agrícola: o manejo da diversidade agrícola no médio rio negro - Amazonas. Ciência e Ambiente, (44), 154-164. https://cienciaeambiente.com.br/shared-files/1855/?141-154.pdf
https://cienciaeambiente.com.br/shared-f...
, os nomes das manivas no rio Negro fazem referência a elementos da biodiversidade, quando são da região, já as manivas de introdução mais recente, das quais não se sabe o verdadeiro nome, são nomeadas em função da pessoa que deu o nome ou da região de origem. Na roça de Oscarina, a maior parte das manivas cumpre esse primeiro critério e pertence a grupos de plantas (nomes, partes de, derivados de), especialmente as frutíferas, e animais (peixes, aves, caça). Outra parte faz referência a apelidos masculinos que se referem à posição de chefia (chefe, comandante) e demiurgo (Oahku). A origem das manivas de Oscarina demonstra a predominância de uma linha feminina de transmissão entre mãe-filha (4), sogra-nora (5) e entre primas-irmãs (4) (Desana do mesmo clã), que, em um caso, também é concunhada. Diferente do argumento posterior de Rivière (1987)Rivière, P. (1987). Of women, men and manioc. In H. O. Skar & F. Salomon (Orgs.), Natives and neighbors in South America (pp. 178-201). Ethnographic Museum., de que é a uxorilocalidade que garante a transmissão de manivas entre mulheres, Chernela (1986)Chernela, J. M. (1986). Os cultivares de mandioca na área do Uaupés (Tukâno). In B. G. Ribeiro (Ed.), Suma Etnológica Brasileira (Vol. 1, pp. 151-158). Ed. Vozes/FINEP. identificou três fatores sociais uaupesianos que explicariam o padrão diverso de manivas: exogamia linguística, virilocalidade e trocas de cultivares entre parentes de sexo feminino que circulam por diferentes comunidades em busca de novas variedades. Emperaire (2014, p. 77)Emperaire, L. (2014). Patrimônio agricultural e modernidade no rio Negro (Amazonas). In M. Carneiro da Cunha & P. Cesarino (Eds.), Políticas culturais e povos indígenas (pp. 59-89). UNESP.Hugh-Jones, C. (1979). From the Milk River: spatial and temporal processes in the Northwest Amazonia. Cambridge University Press. afirma que:

. . . a dona da roça está no centro de uma intensa rede de circulação das plantas que mobiliza dezenas de pessoas da família próxima ou extensa, aliados ou apenas conhecidos . . . . As [variedades] de mandioca circulam numa lógica de transmissão intergeracional, enquanto outras circulam de modo horizontal. As manivas circulam preferencialmente entre mulheres, de sogra a nora ou de mãe e filha; outras plantas, como as frutíferas, entre homens (Chernela, 1986Chernela, J. M. (1986). Os cultivares de mandioca na área do Uaupés (Tukâno). In B. G. Ribeiro (Ed.), Suma Etnológica Brasileira (Vol. 1, pp. 151-158). Ed. Vozes/FINEP.; Emperaire & Oliveira, 2010Emperaire, L., & Oliveira, J. C. (2010). Redes sociales y diversidad agrícola en la Amazonía brasileña: um sistema multicéntrico. In M. L. Pocchetino, A. H. Ladio & P. M. Arenas (Orgs.), Tradiciones & transformaciones en etnobotánica (pp. 180-185). Cyted-Risapred.). Algumas plantas, no geral variedades de mandioca ou plantas medicinais, transmitidas por sogras ou mães, acompanham o percurso de vida e de migração dos indivíduos e de suas famílias, e podem ser descritas como bens patrimoniais.

Das 24 plantas registradas, 1∕4 são tipos de tubérculos utilizados como tempero ou mistura de caxiri, ou seja, aplicados na sua fermentação. Existe também uma grande variedade de cubios (Solanum sessiliflorum), utilizados principalmente para se fazer mingau e se misturar a manicuera, pimentas utilizadas como base de preparo da quinhampira, além de molhos que acompanham a carne de caça, e outras frutas utilizadas no preparo do mingau e manicuera – abacaxi, abiu (Pouteria caimito) e bananas. Na roça de Oscarina, existe uma variedade de pimenta que ela ganhou da sogra, perdeu e recuperou com uma mulher miriti tapuia, que é esposa de um homem Ñahuri porã, clã de seu marido. Como mencionou Roberval, filho dessa mulher, “Quando a mulher perde uma maniva, ela procura de novo”, o que aponta para a atividade contínua das mulheres em plantar, transmitir e trocar mudas, sementes e nomes de plantas, fazendo-as continuar em produção e circulação. Algumas plantas ou variedades de plantas são consideradas espontâneas, da natureza, “não precisa plantar”, o que certamente faz referência àquelas manivas que não nascem a partir do plantio com estacas, mas sim de sementes (ver Emperaire et al., 2012Emperaire, L., Oliveira, A., & van Velthem, L. (2012). Patrimônio cultural imaterial e sistema agrícola: o manejo da diversidade agrícola no médio rio negro - Amazonas. Ciência e Ambiente, (44), 154-164. https://cienciaeambiente.com.br/shared-files/1855/?141-154.pdf
https://cienciaeambiente.com.br/shared-f...
, p. 149).

Há também uma série de remédios dos quais, muitas vezes, as mulheres hesitam em revelar seus nomes, ou mesmo nos confundem, ao apresentar dois nomes para o mesmo remédio. Afirmam que seus nomes são ‘invertidos’ ou ‘trocados’, pois devem ser mantidos em segredo devido à sua potência. Na roça de Oscarina, a grande maioria dos remédios está relacionada ao controle da fertilidade da roça e da mulher – remédios para incrementar a fertilidade da mulher, para manipular o sexo do bebê, para facilitar o parto, contraceptivos abortivos. Estes remédios foram conseguidos com a mãe, a filha, a prima-irmã e com a filha do cunhado de sua irmã. Oscarina não nos mostrou as puçangas (plantas para atrair homens), que geralmente ficam plantadas no quintal perto de casa e, em alguns casos, são compradas. Um remédio considerado fundamental é aquele que fica no centro da roça, chamando outras plantas, e tem um nome secreto (por isso, não o revelo) de um animal que ‘está relacionado à vagina e à força reprodutiva da mulher’ e é um ‘símbolo que possui múltiplas expressões’: é o nome de uma constelação (que corresponde ao Cruzeiro do Sul), sendo também o nome de uma pedra que existe no médio Tiquié e que os indígenas associam à vagina da mulher. Em uma espécie de jogo, os homens tentam acertar uma pedrinha no orifício que existe nessa grande pedra; se acertarem, é sinal de que irão conseguir esposa. Como me explicou o kumu Miguel Azevedo (citado em Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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, p. 241), para os Tukano, “tudo que existe no céu também está marcado nas pedras”. No benzimento de primeira menstruação, alguns kumua retiram poderes de tal constelação para delinear o corpo da mulher, “tornando-o forte para desenvolver trabalhos na roça e culinários” (Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle...
, p. 241).

Se os diferentes tipos de manivas podem ser considerados uma espécie de riqueza que circula entre clãs através das mulheres, a relação entre uma mulher e a variedade de manivas é estritamente pessoal e experimental. Podemos traçar uma analogia do tipo de relação biográfica que a mulher estabelece com a maniva e o tipo de relação que o homem estabelece com nomes pessoais e ornamentos, as riquezas dos grupos. Nesse sentido, Rafael traça uma analogia entre a relação pessoa-nome pessoal e mulher-maniva, ao me explicar que, assim como quando o kumu vai atribuir um nome à pessoa, ele tem que perceber se aquele nome cabe àquela pessoa, e o sinal positivo que lhe chega é uma vontade de suspirar; do mesmo modo, ao interagir com uma variedade de maniva, a mulher precisará perceber se aquela variedade se ‘dá com ela’, se ela vai conseguir se desenvolver e reproduzir sobre os seus cuidados. Nem toda maniva é passível de ser cultivada por toda mulher. Nas palavras de Rafael Azevedo (comunicação pessoal, 2017):

A mulher conhece o pé de cada tipo e sabe se um pé de maniva é para ela, ou é para a outra. Assim, ela não deve roubar manivas da roça de outra mulher, me dizia a finada minha mãe. Pois se ela tirar da outra, vai acontecer que de noite a maniva volta para a roça de onde foi tirada. Fica só isso aqui, ela levou, ela tentou, a maniva engana de nascer, mas ela nasce sem miolo e com pouco tempo morre.

Oscarina Azevedo (comunicação pessoal, 2017) revela que ainda guarda na memória os ensinamentos que escutou de sua mãe:

Tem mulheres que cortam galhos de maniva e jogam no fogo. Eu não gosto de fazer assim. Todo pedacinho que a gente planta de maniva ela sempre dá mandioca. São os dedos do nosso ancestral “Basebo” e da mulher também. A minha mãe sempre contava isso, por isso que a gente não deixa maniva maltratar no sol. Essa maniva é igual a nós. Ela sempre me falava. É uma pessoa também e, como um ser humano, ela dá castigo quando a gente não arranca bem, se a gente joga ela assim. Tem mandioca pequena que às vezes a gente esquece, deixa no chão. Ela fica sofrendo, como se fosse uma criança gritando e, durante toda sua vida, você terá esse castigo de não ter trabalho, de não trabalhar, de não ter fartura.

Oscarina e Rafael reforçam nosso argumento sobre a composição vegetal do corpo da mulher, e ainda demonstram claramente a atribuição da qualidade de sujeito às manivas/mandiocas, exemplificando como ambas noções implicam a existência de etiquetas de comportamento entre mulheres e plantas. Desse modo, o aprendizado do cultivo de mandioca não exige apenas o que poderíamos chamar do domínio de uma técnica específica de plantio, mas sim a construção cotidiana de uma relação de cuidado e respeito entre a mulher e a maniva, que influencia no êxito do trabalho e na saúde da mulher.

Se as mulheres atuais herdaram essas prerrogativas sobre manivas/mandiocas, Basebo é considerado o dono sobrenatural de roças e cultivos, e o usufruto deste ambiente exige a realização de negociação entre a mulher e o ‘dono’. Nesse sentido, Rafael Azevedo (comunicação pessoal, 2017) conta que apenas agora, que é homem maduro e possui conhecimentos xamânicos, consegue compreender o significado das palavras que escutava sua mãe cantar quando pequeno: “Avô, eu estou plantando (enfiando a maniva na terra) aqui, eu estou cuidando da maniva, eu canto para você isto, estou plantando e cantando para você com cuidado”.

Ao iniciar um plantio, ela estava pedindo permissão ao ‘dono’ do terreno, que, como esclareceu Oscarina, é o próprio Basebo. Rafael acrescenta que sua mãe proferia palavras cantadas para Yuhku mahsã (gente-árvore), para que Basebo retirasse do mato, e devolvesse para a roça, as manivas e frutas que escondeu de seu filho em tempos primordiais, ao fazer a mencionada praga antes de ir embora, como vingança em relação ao tratamento que recebeu de seu filho ciumento. Até hoje, alguns xamãs fazem essa praga e, quando se vai arrancar maniva, essa roça não rende, acaba rápido. “Meus avós, aqui sua neta vai começar a arrancar mandioca e dispor em seu aturá”, ela dizia como se estivesse brincando, “minha finada mãe era todo tempo sorridente” (Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Se as mandiocas coletadas serão lavadas nos igarapés, elas serão processadas nas casas-cozinhas, um lugar predominantemente feminino. É neste lugar que estão armazenados os artefatos utilizados para o processamento da mandioca brava.

C. Hugh-Jones (1979, pp. 78-79) nos explica esquematicamente que, quando os Barasana residiam em malocas compostas por homens de um certo grupo de descendência, com suas esposas e filhos, cada casal vivia em um compartimento e possuía seu próprio fogo para uso culinário. Porém, próximo à porta de entrada das mulheres, havia uma zona comunal de cozinha. De acordo com meus interlocutores, tukano, na época das malocas, forno, trempe, panelas e outros artefatos eram feitos de cerâmica. As mulheres costumavam usar um ralo de casca de ucuzeiro (Monopteryx uacu) ou obtinham, por meio de trocas feitas com os Baniwa, raladores de madeira, cobertos com pedrinhas de quartzo. Quando os salesianos destruíram as malocas, fundaram comunidades compostas por uma casa de madeira, coberta por palha, para cada família nuclear, com um ambiente para as famílias dormirem e outro que era a cozinha com fogo, jirau e forno. Na época do garimpo, os indígenas passaram a construir casas de barro com cobertura de alumínio e, à parte, uma casa-cozinha, com teto de palha de caraná (Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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, p. 240).

Atualmente, é comum que, no início do casamento, a mulher divida não apenas a roça, mas a casa-cozinha com a sogra. A sofisticação da construção e da composição de uma casa-cozinha, assim como da roça, é sinal da maturidade do casamento, da capacidade do casal em manter sua subsistência e do cuidado da mulher em ter uma coleção composta por manivas e artefatos. Nesse sentido, van Velthem (2012)Van Velthem, L. (2012). Cestos, peneiras e outras coisas: a expressão material do sistema agrícola no rio Negro. Revista de Antropologia, 55(1), 401-437. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.46970
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
, em seu estudo sobre cultura material entre os Baré do médio rio Negro, estende a noção de coleção de Emperaire (2005, 2010), mencionada anteriormente, para o conjunto de artefatos de processamento de mandiocas, manipulados pela mulher. De acordo com a autora, como toda coleção deve ser exposta em algum lugar, enquanto as manivas são expostas na roça, os artefatos o são na chamada casa de forno, onde “cada artefato possui seu lugar de acondicionamento, e, ao mesmo tempo, de apresentação de suas qualidades formais, funcionais e relacionais” (van Velthem, 2012Van Velthem, L. (2012). Cestos, peneiras e outras coisas: a expressão material do sistema agrícola no rio Negro. Revista de Antropologia, 55(1), 401-437. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2012.46970
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
, p. 429).

Ao realizar, junto à arquiteta Marcela Rufino e às mulheres tukano, tuyuka e desana, um levantamento das casas-cozinhas em no médio e alto Tiquié11 11 Levantamento realizado por ocasião da exposição “Peixe e gente no rio Tiquié”, promovida pelo Museu da Amazônia, Instituto Socioambiental, Associação das Comunidades Indígenas do Médio Tiquié, Associação Escola Tukano Yupuri e Associação das Tribos Indígenas do Alto Tiquié. :

. . . pudemos identificar que muitos artefatos ainda são produzidos localmente, sendo que uma boa parte dos utensílios registrados por Berta Ribeiro (1995)Ribeiro, B. (1995). Os índios das águas pretas: modo de produção e equipamento produtivo. Companhia das Letras/Edusp. é encontrada nas cozinhas contemporâneas. O material de processamento de mandiocas continua sendo os tipitis, cumatás armados sobre trempes e peneiras, que, assim como os balaios para colocar e servir o beiju, são feitos de arumã. O coxo ou canoa utilizado na fermentação do caxiri é feito de madeira e guardado na cozinha ou fora dela. Algumas mulheres possuem ralos de madeira feitos com pedrinhas de quartzo, mas a maioria utiliza ralos feitos com lata. Os caititus (estrutura composta por uma caixa de madeira com um motor acoplado), movidos a gasolina, são encontrados cada vez com maior frequência nas cozinhas e utilizados como opção ao ralador. Muitas vezes, são de uso compartilhado entre mulheres da mesma comunidade – sogra e nora, cunhadas, tia e sobrinha –, o que remete ao antigo compartilhamento do forno entre as mulheres que ocorria nas malocas

(Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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, pp. 243-244).

A maior parte desses artefatos é elaborada pelos maridos, pais, sogros ou cunhados, sendo recebida como presentes, passando a constituir uma espécie de propriedade inalienável da mulher (Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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, p. 244).

Além destes artefatos comporem os corpos das mulheres de modo invisível através do xamanismo, são veementemente sovinados. Especialmente os aturás – cestos cargueiros –, utilizados para carregar mandioca, que antigamente eram feitos pelos homens (Barreto, 2021Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286...
, p. 160), mas atualmente são feitos pelas mulheres hupda e obtidos através da troca por mercadorias. Isso foi algo que percebi a partir de duas tentativas malfadadas: na primeira, quando participei da montagem de uma exposição e tentei adquirir um aturá diretamente de um homem, que me respondeu que esse negócio não poderia ser feito, pois sua esposa, a dona do aturá, não estava em casa, e só ela poderia dizer se, e em que termos, o ‘venderia’ a mim; na segunda, quando pedi emprestado a uma velha, em cuja casa eu estava hospedada durante parte do meu trabalho de campo, um dos seus aturás para poder acompanhar sua filha na roça, ela me respondeu, em tom de ofensa, que não me emprestaria e que eu deveria adquirir os meus próprios. Aqui vemos, mais uma vez, os objetos físicos como extensão da pessoa, contrapartida dos objetos interiores.

CORPOS-PENSAMENTOS E VIDAS FEMININAS EM TRANSFORMAÇÃO

Através dos procedimentos xamânicos realizados na primeira menstruação, o kumu, após dialogar com a mãe da moça,

. . . tem um certo poder de decisão sobre o futuro ou destino da moça, pois vai atribuir a ela, numa espécie de bahsese de reforço de nominação, além da capacidade reprodutiva, capacidades relativas aos trabalhos (darase) que ela vai desempenhar ao longo da sua vida. Antigamente as mulheres eram benzidas para serem donas de maloca, cantoras rituais ou donas de roça. Atualmente os kumua realizam inovações ao experimentarem a inserção de novos itens nas fórmulas dos benzimentos relativos à primeira menstruação de suas netas ou abrandam certas potências e conhecimentos (F. Cabalzar, 2010Cabalzar, F. (2010). Até Manaus, até Bogotá. Os Tuyuka vestem seus nomes como ornamentos [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07052010-122546
https://doi.org/10.11606/T.8.2010.tde-07...
), na tentativa de adequar seus corpos e pensamentos às atuais

(Oliveira, 2016Oliveira, M. S. (2016). Sobre casas, pessoas e conhecimentos: uma etnografia entre os Tukano Hausirõ e Ñahuri porã do médio rio Tiquié, Noroeste Amazônico [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/167903
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, p. 232).

Rafael afirma que não realizou bahsese para que suas filhas fossem exímias trabalhadoras de roça, pois, se o fizesse, elas iriam querer trabalhar e não iriam desenvolver um pensamento voltado para o estudo. Tanto para seus filhos como para as suas filhas, ele ofereceu em bahsese livros didáticos, quadro negro, giz, caneta, lápis, mesa e outros artefatos relacionados ao estudo. Dessa maneira,

Elas não se interessam de ralar, espremer porque não foram benzidas para isso. Elas são confusas. Querem trabalhar, mas o livro está na frente. Pensam em ir para roça, mas não fazem. Antigamente não existia ainda educação escolar. Elas trabalhavam só na roça, iam todo dia para roça, não tinham que fazer outra coisa. Hoje, quando minhas filhas trabalham, elas conseguem pouca goma

(Rafael Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Oscarina identifica uma relação entre a realização do bahsese com carajuru durante a primeira menstruação e a quantidade de goma/tapioca que uma mulher consegue produzir, ao espremer a massa de mandioca:

Tem alguns que benzem carajuru para quem tem a primeira menstruação. Para mim não aconteceu isso. Benze para que, quando a mulherada espremer a massa que foi ralada, ela tenha tapioca grande. Para quem não foi benzido, quando a agente espreme três ou quatro vezes assim, a gente faz assim, né? Espreme pouco. Espreme, coloca no cumatá a massa, e vai espremendo, se acabar essa goma, sair tudo, a gente tira, a gente pega a massa no balde, e deixa a massa no balde, e faz de novo. É muito. Se a gente espremeu na segunda ou terceira vez, a tapioca já vai se assentando desse tamanho [grande], se foi benzida. Se não foi benzida, é assim desse tamanho [pequeno], não cresce mesmo. Por isso que nossos avós no passado sempre benziam, com carajuru para passar nas mãos, com wee também

(Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

No entanto, se tal procedimento não é realizado na primeira menstruação, ele pode ser feito em outro momento, como no casamento, quando a mulher começa a assumir uma responsabilidade ainda maior no processamento de mandiocas. Ao casar, a sogra de Oscarina percebeu que a nora não conseguia produzir uma grande quantidade de tapioca e pediu para seu filho realizar o bahsese:

Porque minha sogra mandava benzer quando eu fiquei com o Sr. Rafael. Toda mulher indígena, quando a gente quer ter sogra, ela sempre reclama. A gente espreme com força, a tapioca não cresce, ela fica assimzinha... Para quem dá bem, o aturá fica cheio, chega até nessa altura, espremendo. Para quem não dá, fica assim... Assim que ela me reclamava, tanto, tanto...

(Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Nesse sentido, a quantidade de tapioca é vista mais como um resultado de capacidade/atributo pessoal, do que em função da qualidade da mandioca. Oscarina observa comparativamente o nível de produção de tapioca das suas quatro filhas e relaciona-o com a realização (ou não) do bahsese com carajuru durante a primeira menstruação, demonstrando uma diferenciação de estratégia dos pais em relação às filhas, relacionada à senioridade: enquanto as duas primeiras foram benzidas pelo pai “para ter tapioca”, as duas últimas que “não foram benzidas para tapioca, não têm tapioca” (Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017). Em diálogo com sua cunhada Maria, Oscarina analisa que o “tempo dos brancos”, marcado pela escolarização, produziu um desinteresse das moças em relação ao trabalho na roça e, ao mesmo tempo, levou os velhos a não benzerem mais as mulheres para serem grandes trabalhadoras de roça, “só um pouco”.

Por isso eu fico preocupada, né... Assim, na primeira menstruação, quem sabe benzer... Benze tudo... Ele benze para trabalhar... Agora nesses dias, nossos pais e nossos velhos conhecedores dizem “já é dia dos brancos, como pode benzer tudo isso”... Só benzem para trabalhar na roça mesmo, só, trabalhar um pouco, não muito, mas devido à educação do estudo, que tá fazendo, essa não quer trabalhar mais não... Porque antigamente não existia escola, os nossos avós e nossas mães, elas sempre iam desde pequena, eu também fui para roça, como eu falei. Hoje não, assim desse tamanho já vai na escola, né? Sem aprender o trabalho da mãe, o trabalho da roça, o homem também quer aprender a pescar, já vai na escola, de lá que ele não quer mais saber, dessa coisa, da cultura nossa, é nossa cultura mesmo. Saber pescar, saber trabalhar, da mandioca também

(Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

Tendo em conta essas transformações no modo de vida, compara sua experiência com as de suas filhas, aconselhando-as:

Por isso que eu sempre falo para minha filha, se vocês não estudarem vocês vão ser perdidas, para mim já basta que eu casei com 15 anos. Eu sabia fazer beiju, eu que preparava mingau, eu que cozinhava, quando a gente casa ninguém ajuda, né? Nem a sogra também

(Oscarina Azevedo, comunicação pessoal, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme vimos neste artigo, a narrativa tukano do Basebo e da origem do cultivo da mandioca, bem como os procedimentos xamânicos realizados no nascimento e na primeira menstruação revelam que corpos de mulheres são compostos por manivas/mandiocas e artefatos. As vidas de mulheres e manivas/mandiocas estão intrinsecamente relacionadas e se afetam mutuamente. Se o cultivo da segunda é prerrogativa da primeira, a habilidade e o interesse no cultivo da mandioca devem ser produzidos em meninas e mulheres. As encantações realizadas na nominação e complexificadas na primeira menstruação parecem insuflar um tipo de habitus nos corpos femininos: o pensamento que se fixa nas manivas e nas roças, de modo que o espaço dos cultivos, como também sua própria substância passam a constituir a vida das mulheres. As habilidades de trabalho com manivas e mandiocas nas roças e casas-cozinhas devem ser desenvolvidas por meio de práticas de conhecimento multissensoriais intergeracionais e de mesmo sexo, que envolvem os atos de mostrar-observar, dizer-ouvir e fazer. Ao tornar-se dona de roça e de casa-cozinha, a mulher se torna dona de uma coleção de manivas e artefatos com os quais estabelece uma relação pessoal e experimental. Aprender a cultivar e a processar a mandioca exige, mais do que o domínio de uma técnica específica, o desenvolvimento de atitudes de cuidado e respeito às manivas/mandiocas, que implica a condição do corpo da própria mulher. Transformações sociais, xamanismo e experiência se entrelaçam e revelam modificações na composição da vida da mulher tukano que, escolarizada e profissionalizada, tem as potências relativas à roça reduzidas, desenvolve corpos menos robustos e pensamentos confusos, exercendo com menor maestria a arte de cultivar e processar mandioca.

  • 1
    Seguindo as expressões utilizadas por meus interlocutores e interlocutoras na língua portuguesa, ao mencionar manivas, refiro-me às partes visíveis de Manihot esculenta – seu caule e suas folhas – e, em especial, às partes de seu caule, utilizadas para o plantio da planta através de clonagem. Como mandioca, me refiro aos tubérculos subterrâneos, resultantes do plantio. Na língua Tukano, existe uma oposição entre o termo genérico kii, que geralmente é traduzido como mandioca, e o termo duhku, que acompanha os nomes das variedades de plantas que circulam, por exemplo, serã-duhku, termo que significa maniva-abacaxi (ver Ramirez, 1997Ramirez, H. (1997). A fala tukano dos Ye’pâ-Masa (Tomo II: Dicionário). Inspetoria Salesiana da Amazônia Cedem., p. 285; Emperaire, 2010Emperaire, L., & Oliveira, J. C. (2010). Redes sociales y diversidad agrícola en la Amazonía brasileña: um sistema multicéntrico. In M. L. Pocchetino, A. H. Ladio & P. M. Arenas (Orgs.), Tradiciones & transformaciones en etnobotánica (pp. 180-185). Cyted-Risapred., p. 83). Este binômio deve ser sempre considerado relacionalmente. Ao se caracterizar um tipo específico de maniva, é comum fazer referência ao tipo de mandioca que ele ‘dá’.
  • 2
    A família linguística Tukano oriental pode ser considerada como composta por aproximadamente 17 povos que vivem no Brasil, na Terra Indígena Alto Rio Negro, mais especificamente no rio Uaupés e seus afluentes – Tiquié, Papuri e Querari –, e na Colômbia, na mesma bacia e no rio Apapóris, que tem como principal afluente o rio Pirá Paraná (ISA, 2002Instituto Socioambiental. (ISA). (2002). Tukano. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Tukano
    https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:T...
    ).
  • 3
    Atuo na região desde o ano de 2005. Primeiro, fui integrante do Programa Rio Negro, do Instituto Socioambiental (2005-2011), em seguida, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC) (2011-2016) e, finalmente, realizei o pós-doutorado pelo PPGAS da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) (2017-2021).
  • 4
    Os enunciados locais estão grafados na língua Tukano.
  • 5
    Dois pontos importantes da sociocosmologia tukano: a diferenciação classificatória entre maiores e menores, que remete à classificação clânica hierárquica interna aos grupos de descendência tukano e que se reproduz na leitura das sociedades extra-humanas (ver A. Cabalzar, 2005Cabalzar, A. (2005). Gente-Peixe: os peixes na cosmologia dos povos tukano do rio Tiquié. In A. Cabalzar (Ed.), Peixe e gente no alto rio Tiquié: conhecimentos tukano e tuyuka, ictiologia, etnologia (pp. 52-83). Instituto Socioambiental., para peixes; Oliveira, 2017aOliveira, M. S. (2017a). Através do universo: notas sobre as constelações na cosmologia Tukano. Revista AntHropológicas, 28(1), 134-168. https://doi.org/10.51359/2525-5223.2017.23997
    https://doi.org/10.51359/2525-5223.2017....
    , para constelações), e o valor dado aos protótipos, como modelos que se encontrariam no topo de uma escala classificatória e dos quais derivariam membros principais de um certo tipo.
  • 6
    C. Hugh-Jones (2011, p. 235)Hugh-Jones, C. (2011). Desde el río de leche. Procesos espacio-temporales en la Amazonia noroccidental. Ediciones Universidad Central. fala sobre como o ‘Anaconda haste de maniva’ criou uma esposa para si e possui o poder de dicotomização sexual de si mesmo.
  • 7
    Barreto (2021, p. 163)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
    https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286...
    afirma que Ba’a sehé-Boo teria o poder de tirar do próprio corpo um pedaço de beiju para alimento cotidiano através da palavra transformadora.
  • 8
    Barreto (2021)Barreto, S. S. (2021). Wesé da’rase, o’re do’oke kiti. A urina se transforma em suor para o trabalho da roça. Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía, 6(2), 151-173. https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286
    https://doi.org/10.29112/ruae.v6i2.1286...
    tem a riqueza de ressaltar a característica multiespecífica da roça, ponto também identificado pela antropóloga indígena Rosi Whaikon (Pereira, 2019Pereira, R. F. [Rosi Waikhon]. (2019). Roças: espaços de construção da ciência indígena na região do alto rio Negro, conhecimentos que não são à toa. In D. Montardo, A. Tassinari & J. Vieira (Orgs.), Antropologia e educação: refletindo sobre processos educativos em contextos escolares, não escolares e de políticas públicas (pp. 33-47). Copiart/EDUA/EDUFRN.).
  • 9
    Para formulação aproximada e complementar, ver o capítulo 6 da tese de Barreto (2023)Barreto, S. S. (2023). O peixe sobre beiju é o leite e a espuma de buiuiu. Uma reflexividade antropológica indígena sobre a gestão cosmopolítica tukano no alto rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Amazonas]..
  • 10
    Cuidados tomados pelos pais no pós-parto.
  • 11
    Levantamento realizado por ocasião da exposição “Peixe e gente no rio Tiquié”, promovida pelo Museu da Amazônia, Instituto Socioambiental, Associação das Comunidades Indígenas do Médio Tiquié, Associação Escola Tukano Yupuri e Associação das Tribos Indígenas do Alto Tiquié.

AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente ao casal Oscarina Desana e Rafael Tukano, pelo acolhimento afetuoso em Acará Poço, e pela densa e atenta interlocução, que tornou possível a idealização e a composição deste artigo. Este texto foi redigido durante e a partir de minha pesquisa de pós-doutorado, realizada como bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (projeto 2016/24017-8), sob supervisão do professor Dr. Geraldo Andrello (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal de São Carlos - UFSCar), a quem agradeço pelos diálogos constantes que me inspiraram a compor o argumento central do artigo (xamanismo/experiência). Agradeço enormemente ao professor Dr. Stephen Hugh-Jones, pela leitura cuidadosa e por ricos comentários feitos durante minha estada em sua casa, em Wales, durante a pandemia. Agradeço ao professor Harry Walker, que me recebeu na Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (BEPE/FAPESP) (projeto 2019/20616-2) e visiting research fellow na London School of Economics, entre 2019 e 2020. Agradeço à turma de pesquisadores em América Latina do Departamento de Antropologia desta instituição, em especial a Jan David Haucke, cuja discussão sobre a ética do cuidado nas relações humanas e não humanas inspirou o teor deste artigo. Agradeço aos revisores anônimos pelas preciosas e detalhadas sugestões.

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Editado por

Responsabilidade editorial: Marlia Regina Coelho-Ferreira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    20 Fev 2024
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