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O Mal está neste chão: sobre as composições nas práticas de cura karajá e o regime de comunicação dos espíritos

Resumo

Em busca de tratamento para doenças resultantes de acometimento por espíritos, os Karajá, povo indígena centro-brasileiro, recorrem hoje, além de seus próprios xamãs, a xamãs de outras etnias e curandeiros regionais, bem como a sua fé em Deus. E todos esses curadores, a despeito de seus diferentes conhecimentos e técnicas, são considerados igualmente xamãs. Os médicos não indígenas, em contraste, não podem curar esses adoecimentos, e a esses especialistas só se recorre para tratar as ‘doenças de branco’. A diferença marcada entre doenças e especialistas, no último caso, contrasta com o regime de comunicação absoluta no primeiro. É a essa diferença que o artigo se dedica. Dialogando com a antropologia da saúde, por um lado, e com a questão da religião, por outro, proponho que o que permite que curadores de origens diversas tratem pessoas enfeitiçadas, diferentemente dos médicos, é o fato de que o xamanismo atualiza o regime de diferença infinita, ou de transparência absoluta, dos tempos primordiais.

Palavras-chave
Karajá; Biomedicina; Xamanismo; Regimes de diferença

Abstract

Today as they seek treatment for diseases that result from being affected by spirits, the Karajá, a Central Brazilian indigenous people, turn to their own shamans, shamans from other indigenous groups, regional healers, as well as their faith in God. All of these healers, despite their different knowledges and techniques, are equally considered shamans, while non-indigenous doctors cannot cure these illnesses and are only sought out to treat ‘white people’s diseases’. This marked difference between diseases and doctors contrasts with the regime of absolute communication for healing spirit ailments, and is the subject of this analysis. In dialog with the anthropology of health on one hand and the question of religion on the other, I argue that what allows healers from different origins to treat bewitched persons (unlike doctors) is the fact that shamanism actualizes the regime of infinite difference or absolute transparency from primordial times into the present day.

Keywords
Karajá; Biomedicine; Shamanism; Regimes of difference

Há alguns anos, eu estava em um restaurante no cais de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, quando vi um homem karajá – a quem conhecia bem – descer no porto ao lado, carregando um botijão de gás. Eu acenei e gritei, brincando com ele, comentando algo sobre o botijão. Ele riu e me respondeu dizendo que aquilo que ele levava para sua casa era tori hèè, “lenha dos brancos”. Em um estilo caracteristicamente centro-brasileiro, os Karajá marcam a todo tempo a diferença entre o que lhes é próprio e o que é alheio – dos brancos ou de outros povos. Isso não tem qualquer relação com ‘usar’ ou não essas ‘coisas’ – que, além de itens materiais, incluem também conhecimentos e modos de relação –, mas com uma memória e uma discriminação cuidadosas sobre as origens das coisas. O futebol, esporte praticado pelos Karajá com frequência e entusiasmo notáveis, é dos brancos, assim como as roupas, as comidas e as bebidas industrializadas que fazem parte do cotidiano das aldeias. Certos hábitos alimentares, como o consumo de determinadas espécies animais ou a preferência marcada pela caça sobre a pesca, são ‘coisas’ de outros povos indígenas – os Karajá são pescadores dedicados e consomem uma variedade muito limitada de espécies de caça.

Mas há um aspecto da vida desse povo que escapa a esse esforço sistemático de marcar as diferenças entre o próprio e o alheio que resulta nas fórmulas de proporcionalidade tão características do mundo ameríndio (ver Lima, 1996Lima, T. S. (1996). O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia Tupi. Mana, 2(2), 21-47. https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002
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; Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. B. (2002). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In Autor, A inconstância da alma selvagem (pp. 345-399). Cosac & Naify.) – o sangue é o cauim da onça, como no clássico exemplo amazônico, ou o gás é a lenha dos brancos, e assim por diante. Refiro-me à dimensão curativa do xamanismo ou, para ser mais exato, às práticas de cura de doenças provocadas pelo acometimento por ‘espíritos’. Para ser mais exato, digo, pois os Karajá recorrem com frequência a seus xamãs para tratar esses adoecimentos, cujo epítome é a feitiçaria, mas não recorrem apenas a eles. Curandeiros regionais e xamãs de outras etnias também são procurados, assim como se busca a Deus para combater malefícios ou acometimentos similares; e, o que é mais importante, todos estes podem promover tratamentos eficazes. Ainda que diferenças sejam reconhecidas, elas não são o nexo da relação entre esses diferentes curadores. Aqui, em lugar de fórmulas de proporcionalidade, o que encontramos são equações: todos são igualmente xamãs, e suas diferenças se resumem aos recursos e à força que cada um pode mobilizar – da mesma maneira, em suma, como os xamãs karajá diferem entre si.

Se os Karajá são tão sistemáticos em marcar a diferença entre o próprio e o alheio, por que não o fazem em relação ao xamanismo, para colocar a questão de maneira sintética? Se a discriminação das origens é tão importante para seu modo de criatividade e para o que chamam de inỹ bàdèdỹỹnana, “nosso conhecimento” ou “nossa cultura” (ver Nunes, 2022Nunes, E. S. (2022). A cultura dos mitos: do regime de historicidade karajá e sua potência “fria”. Revista de Antropologia, 65(1), e192801. https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192801
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), por que, nesse caso, as origens distintas dos diferentes curadores não são mais que secundárias? É essa a questão que gostaria de desenvolver nas páginas que se seguem.

O material que apresento neste artigo sugere convergências, por um lado, com discussões da antropologia da saúde, especificamente quando tratam da articulação dos sistemas terapêuticos indígenas e não indígenas. Como espero mostrar, entretanto, a distinção nítida que os Karajá traçam entre doenças ‘de índio’ e ‘de branco’ (e, correlatamente, entre os especialistas capazes de tratá-las) coloca essas convergências em segundo plano em relação a outras, referentes ao problema da ‘religião’: refiro-me ao caráter aparentemente ‘sincrético’ das possibilidades de cura das quais lançam mão, em um contexto de coexistência e comunicação entre diferentes matrizes religiosas. O argumento que desenvolvo, entretanto, tangencia essas duas abordagens apenas para se afastar delas. Gostaria de encarar a questão pelo prisma do xamanismo, pois é sua natureza, segundo entendo, que possibilita compreender essa linha de fuga transversal às diferenças discretas que permite que um xamã, karajá ou de outro povo, um curandeiro não indígena ou Deus possam curar uma pessoa karajá acometida por um feitiço.

O xamanismo, devo advertir de saída, é também o contexto da etnografia. Ainda que eu tenha atuado como colaborador da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) junto aos Karajá em diferentes momentos (de 2011 a 2016), minha etnografia não se situou no contexto da saúde indígena, mas voltou-se sobretudo para os temas do parentesco, do ritual e do xamanismo; e a descrição apresentada se nutre da oportunidade de acompanhar pacientes em tratamento xamânico e de escutar relatos sobre casos de adoecimento e cura, mas não de uma pesquisa empírica dedicada aos contextos de articulação entre o xamanismo e o sistema de atenção à saúde indígena.

DOENÇA DE ÍNDIO, DOENÇA DE BRANCO

Antes da chegada dos brancos ao vale do Araguaia, onde habitam imemorialmente os Inỹ1 1 Os Karajá são um povo falante de uma língua macro-jê (Davis, 1968). Assim como os Javaé e os Ixỹbiòwa, eles se autodesignam como Inỹ. Os três povos falam variantes de uma mesma língua, o inỹrybè, que apresenta uma diferenciação da fala pelo sexo do falante (ver Ribeiro, 2012). As variantes feminina e masculina das palavras aparecem indicadas no texto por meio dos símbolos ♀ e ♂, respectivamente. , não havia morte por causas naturais. Toda e qualquer morte é efeito da ação de outrem e, via de regra, gera especulações e acusações sobre quem seria o culpado: toda morte, em suma, é alguma variação de um assassinato. O mais comum – quando obviamente não se trata de um acidente, como o ataque de um animal ou um assassinato perpetrado por meios físicos – é que o culpado seja um feiticeiro; em alguns casos, entretanto, a morte pode decorrer do acometimento direto por algum espírito.

A presença dos brancos (desde meados do século XVII, de modo intermitente, e de maneira permanente a partir das primeiras décadas do século XX – ver Rodrigues, 2008Rodrigues, P. M. (2008). A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história [Tese de doutorado, University of Chicago].; Nunes, 2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].) se fez acompanhar, dentre muitas outras coisas, de uma gama de doenças novas, forasteiras. Depois das doenças contagiosas, ‘doenças do contato’ como gripe e sarampo, as transformações corporais provocadas pelo uso das coisas dos brancos, sobretudo no que diz respeito à alimentação, trouxeram outras enfermidades hoje bem conhecidas pelos Inỹ – anemia, diabetes, hipertensão, problemas hepáticos ou cardíacos e assim por diante. A causa da morte, nesses casos, não é uma questão: de modo geral, não há imputação de um culpado, de modo que essas doenças, quando fatais, se aproximam mais do que se chama de ‘morte por causas naturais’2 2 Ao colocar a questão dessa maneira, não estou sugerindo que as ‘doenças de branco’ seriam estrita ou meramente fisiológicas, o que implicaria rebater sua diferença para com as ‘doenças inỹ’ sobre o grande divisor entre matéria e espírito. O que quero sublinhar é apenas que, nesse caso, não há o reconhecimento de uma agência externa (um espírito, ou um feiticeiro) como causa do adoecimento; e que os inỹ estabelecem uma relação direta entre o consumo excessivo de álcool ou açúcar e problemas hepáticos ou diabetes, por exemplo – muito embora desenvolver melhor o ponto, evidentemente, necessitaria considerar esses adoecimentos a partir de sua noção de corpo, o que escapa ao propósito deste artigo. . Esse novo contexto epidemiológico passou a conviver com os adoecimentos inỹ, o que resultou em uma distinção entre as tori binana, ‘doenças de branco’, e as inỹ binana, ‘doenças inỹ’ ou ‘doença de índio’, ou seja, feitiço3 3 Como já disse, as inỹ binana incluem também adoecimentos resultantes do acometimento direto por algum ‘espírito’, ou seja, sem a mediação de um feiticeiro. Como estes são em quantidade muito menor, vou tomar, por uma questão de economia textual, ‘doença de índio’ como sinônimo de feitiço. .

Alguns dos sintomas dessas últimas são bastante nítidos, como mudança repentina de humor/comportamento, formigamento no corpo, escutar vozes ou ter visões. Outros, porém, são os mesmos de algumas ‘doenças de branco’ – dor de cabeça e vômito, por exemplo. Assim, quando uma pessoa fica enferma, uma questão importante é saber que tipo de doença lhe aflige. No cotidiano, acontece tanto que pessoas sejam levadas até um xamã que, após examiná-las, lhes assevera que se trata de uma tori binana e que, portanto, ele ou ela precisa ser levada para o hospital; quanto que pessoas sejam internadas e a doença continue a evoluir, até que a família leve o enfermo para ser tratado por um xamã. Cada um dos especialistas só pode tratar as doenças que lhes são ‘próprias’. Se a pessoa tem uma doença de branco, os esforços do xamã serão vãos; se ela está enfeitiçada, nenhum médico poderá curá-la. Nesse último caso, a internação em um hospital pode, com efeito, agravar o estado do doente, pois a aplicação intravenal de soro fisiológico, dizem os xamãs, intensifica os efeitos dos maléficos, podendo acelerar a morte do doente4 4 A ideia não é recente. Em um recorte de jornal datado de 1969, encontramos a seguinte passagem: “Os médicos Coge Kinati e Gun Bergstein, da Escola Paulista de Medicina, estão tentando salvar uma índia carajá de dois meses, desidratada, que está internada no Hospital dos Índios da Ilha do Bananal. Se a indiazinha se salvar, será facilitado o trabalho de integração entre o hospital e os índios, que terão confiança nos médicos. Há um pouco de desconfiança, natural devido aos preconceitos, desde que morreu, lá, uma índia adulta. O pajé previu a morte da índia e isto despertou antigas e arraigadas crendices. Os Carajás acharam que foi o sôro do hospital de matou a moça” (“No Bananal, índios cantam...”, 1969). .

Só um xamã pode curar um feitiço, e há vários xamãs além dos inỹ, incluindo brancos. Mas médicos não são xamãs. Para o caso de muitos povos, isso não impede algum tipo de articulação entre xamanismo e biomedicina, seja pela atuação conjunta de especialistas indígenas e não indígenas – ainda que, quando se trata de ‘doença de índio’, a biomedicina seja frequentemente reconhecida pelos índios como capaz apenas de prover cuidados paliativos, amenizando sintomas, mas não de curar5 5 O que reflete a diferença fundamental entre as etiologias indígenas e não indígenas, fazendo com que a noção de uma “complementaridade terapêutica” seja equívoca (Cardoso, 2004, p. 165). –, seja quando xamãs se apropriam da estética e de conhecimentos médicos, além de remédios alopáticos, incorporando-os às suas práticas (ver Barreto, 2021Barreto, J. P. L. (2021). Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Amazonas]. https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/8289
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; Kelly, 2016Kelly, J. A. (2016). Sobre a antimestiçagem. Cultura & Barbárie.; Greene, 1998Greene, S. (1998). The shaman’s needle: development, shamanic agency, and intermedicality in Aguaruna Lands, Peru. American Ethnologist, 25(4), 634-658. https://www.jstor.org/stable/645858
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; Follér, 2004Follér, M.-L. (2004). Intermedicalidade: a zona de contato criada por povos indígenas e profissionais de saúde. In E. J. M. Langdon & L. Garnelo (Orgs.), Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa (pp. 129-147). Contra Capa Livraria/Associação Brasileira de Antropologia. http://www.aba.abant.org.br/files/5_00180776.pdf
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; Assumpção, 2014Assumpção, K. (2014). Negociando curas: um estudo das relações entre profissionais de saúde não-indígena e indígenas no Projeto Xingu [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Paulo]. https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/41782
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; Andrade & Sousa, 2016Andrade, J. T., & Sousa, C. K. S. (2016). Práticas indígenas de cura no Nordeste brasileiro: discutindo políticas públicas e intermedicalidade. Anuário Antropológico, 41(2), 179-202. https://doi.org/10.4000/aa.2581
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; Scopel et al., 2012Scopel, D. S., Dias-Scopel, R. P., & Wiik, F. B. (2012). Cosmologia e intermedicalidade: o campo religioso e a autoatenção às enfermidades entre os índios Munduruku do Amazonas, Brasil. Tempus: Actas de Saúde Coletiva, 6(1), 173-190. https://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/1141/1046
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; Langdon, 1994Langdon, E. J. (1994). Representações de doença e itinerário terapêutico dos Siona da Amazônia colombiana. In R. V. Santos & C. E. A. Coimbra Jr. (Orgs.), Saúde e povos indígenas (pp. 115-141). FIOCRUZ. https://static.scielo.org/scielobooks/wqffx/pdf/santos-9788575412770.pdf
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; Macedo, 2021Macedo, V. (2021). O cuidado e suas redes: doença e diferença em instituições de saúde indígena em São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 36(106), e3610602. https://doi.org/10.1590/3610602/2021
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).

Para os Karajá, entretanto, não há compatibilidade possível. Não há qualquer articulação terapêutica entre as ‘medicinas’ indígena e não indígena, mas sim algo que talvez pudesse ser definido como um ‘diagnóstico diferencial’: a determinação do que aflige o doente e, consequentemente, de que tipo de especialista pode tratá-lo. Essa determinação não é algo trivial. Há muitos casos em que diferentes entendimentos são disputados, médicos e xamãs apontando causas distintas, e a família pendendo para um lado ou outro. É, então, pelo efeito do tratamento que se pode confirmar a causa (ver também Macedo, 2021Macedo, V. (2021). O cuidado e suas redes: doença e diferença em instituições de saúde indígena em São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 36(106), e3610602. https://doi.org/10.1590/3610602/2021
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, p. 14): um doente hospitalizado que não melhora aos cuidados médicos ou um tratamento xamânico que não resulta em melhora do estado do paciente são evidências de que o especialista inicialmente procurado não é quem poderá tratar o doente – o que vale dizer, são evidências de que a causa da doença não é a que se imaginava6 6 Cabe notar, entretanto, que há situações em que a controvérsia permanece aberta mesmo após o falecimento. Em um caso recente, a morte de uma mulher foi imputada pelos médicos a uma tuberculose. Em sua aldeia, essa explicação foi amplamente aceita. Mas seus parentes mantiveram as suspeitas de que ela foi vítima de feitiço por parte da família de um rapaz assassinado pelo filho da falecida uma década antes – evento que gerou uma dura cisão entre as duas parentelas e desencadeou uma série de retaliações ao longo dos anos. Relataram-me, por exemplo, que um jovem foi visto por algumas vezes, no fim da tarde, nos fundos de sua casa, fazendo o que identificaram como uma prática de feitiçaria aprendida com curandeiros não indígenas. “Diz que foi tuberculose, mas eu acho que foi feitiço. Não sei”, me disse um homem. . O que interessa, entretanto, é que essa determinação, pacífica ou disputada, implica a exclusão de um ‘sistema médico’ em relação ao outro.

Ainda assim, é evidente que, de determinado ponto de vista, o xamanismo coexiste e convive com a biomedicina7 7 Falo de biomedicina em um sentido amplo, remetendo à matriz de conhecimentos que se atualiza em diferentes especialidades profissionais. O ponto é importante sobretudo porque as equipes de atenção à saúde indígena são multidisciplinares, envolvendo médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, nutricionistas e psicólogos, dentre outras especialidades, de modo que o encontro da biomedicina com o xamanismo (seja ele de que natureza for, colaborativa ou conflituosa) nem sempre é protagonizado por médicos. , articulando-se a ela de alguma maneira – os itinerários terapêuticos de pessoas que começam o tratamento em um hospital e terminam nas mãos de um xamã, ou vice-versa, dão exemplos disto. Esse “encontro entre diferentes tradições médicas” (Follér, 2004Follér, M.-L. (2004). Intermedicalidade: a zona de contato criada por povos indígenas e profissionais de saúde. In E. J. M. Langdon & L. Garnelo (Orgs.), Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa (pp. 129-147). Contra Capa Livraria/Associação Brasileira de Antropologia. http://www.aba.abant.org.br/files/5_00180776.pdf
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, p. 109) foi caracterizado por Greene (1998, p. 641)Greene, S. (1998). The shaman’s needle: development, shamanic agency, and intermedicality in Aguaruna Lands, Peru. American Ethnologist, 25(4), 634-658. https://www.jstor.org/stable/645858
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por meio da noção de “intermedicalidade”, um “espaço contextualizado de medicinas híbridas”. Por mais que pareça apontar para algum tipo de articulação terapêutica, a noção não obstante enfatiza o conflito e os atritos que emergem da coexistência dos diferentes sistemas médicos, além da assimetria de poder e do ímpeto constante da biomedicina em capturar as ‘etnomedicinas’, tornando-as parte do cuidado em saúde que se considera de direito universal8 8 Junto com o direito à saúde, para dizer de outro modo, vem a reboque uma compreensão muito específica, histórica e culturalmente localizada, do processo saúde-doença: aquela ancorada na ideia biomédica de corpo, que assume a doença (congênita ou adquirida) como derivada da estrutura ou do funcionamento do organismo. Nesse sentido, o reconhecimento da importância e da eficácia das ‘etnomedicinas’ frequentemente reverbera colateralmente em entendimentos culturalistas, ou mesmo folcloristas, das explicações indígenas sobre seus processos de adoecimento, o que faz com que as “diferenças culturais” apareçam simultaneamente como algo que deve ser valorizado e como uma barreira para a prática biomédica (ver Achatz, 2022). Do ponto de vista indígena, em contraste com essa concepção organicista, “a doença é uma relação” (Barcelos Neto, 2008, p. 56, grifo do autor), de modo que por trás de cada adoecimento há sempre um agente, via de regra não humano. . Intermedicalidade, portanto, são os fenômenos que acontecem ‘entre’ as práticas médicas indígenas e não indígenas, mas dificilmente remetem a uma articulação propriamente terapêutica – tratar-se-ia muito mais de uma forma de antimestiçagem (Kelly, 2017Kelly, J. A. (2017). Articulação de sistemas médicos, diálogos cerimoniais e reuniões políticas: comentários sobre a antimestiçagem cosmopolítica para além do interétnico. Amazônica – Revista de Antropologia, 9(2), 700-715. https://doi.org/10.18542/amazonica.v9i2.5671
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) do que de ‘medicinas híbridas’. Mas essa própria interpretação pressupõe uma relação entre entidades de mesma natureza – a biomedicina e o xamanismo ambos como medicinas, ‘etnomedicinas’ de (conjunto de) povos diferentes –, o que, assim me parece, não é de forma alguma o caso9 9 Me parece absolutamente opaca a ideia de que “os processos que fazem parte da relação saúde-cultura entre estes índios da selva amazônica [os Siona] são da mesma natureza dos que operam na nossa sociedade, apesar de existirem diferenças nas teorias etiológicas tanto quanto nas tecnologias e procedimentos terapêuticos” (Langdon, 1994, p. 115). Se por isso se entende simplesmente que as ‘medicinas’ indígenas são sistemas culturais, a afirmação é tautológica. Se se considera, por outro lado, as diferenças entre etiologias, procedimentos e técnicas, a diferença é radical e ontológica; e a equiparação entre elas só pode ser operada por meio de uma redução perspectiva de uma medicina a outra – mais exatamente, uma redução do xamanismo ao problema da saúde pública. . É só a partir de uma perspectiva estritamente sociomédica, que toma o xamanismo sob o ponto de vista da saúde pública, que tal noção de intermedicalidade pode fazer sentido.

O xamanismo pode ser considerado um sistema terapêutico, a seu modo, ainda que seja bem mais que isso: sendo uma arte eminentemente cosmopolítica, adoecimento e cura são apenas uma de suas facetas que, não obstante, implicam nexos de relações que se estendem muito além do corpo, e muito além do humano. Mas dificilmente pode ser considerado um ‘sistema médico nativo’10 10 Mesmo, note-se, nos termos de uma discussão voltada à saúde. É nesse sentido que Garnelo (2022, p. 302) opta por falar em “sistemas de cura e cuidados”, em lugar de “medicinas indígenas”, “tendo em conta que a manutenção e/ou a recuperação da saúde é domínio que abrange campos muito mais amplos que o das práticas de cura”. . Se esse enquadramento permite vislumbrar um conjunto de questões pertinentes ao problema da saúde pública – não pretendo, obviamente, negar isso –, ele oblitera outras dimensões do fenômeno, justamente as que são de interesse para a discussão que proponho. Pois, se há uma efetiva articulação terapêutica entre ‘sistemas’, como veremos, ela remete antes ao campo da religião que ao da saúde: em outras palavras, é no âmbito do xamanismo que essa articulação se dá11 11 Não é por acaso, me parece, que o xamanismo foi historicamente traduzido sob essas duas perspectivas: se há, como vimos, toda uma literatura que o trata como um “sistema médico nativo”, em diferentes tradições de estudos – do evolucionismo à antropologia da religião, passando pela teoria clássica (veja-se, a título de exemplo, o ensaio bibliográfico de Evans-Pritchard (1965) –, o xamanismo foi caracterizado como “religião indígena”. As limitações das duas traduções são bastante similares. .

Esse é um debate amplo, que foge do escopo deste texto. Gostaria, entretanto, de adicionar um ponto de complexidade à caracterização que acabo de fazer, algo que seria necessário desenvolver melhor em outro contexto. Me refiro aos luahi, remédios à base de plantas, aplicados geralmente de forma tópica ou em banhos. Ainda que os xamãs sejam a fonte desse conhecimento12 12 Os espíritos auxiliares dos xamãs lhes apontam qual remédio devem utilizar no tratamento de determinado paciente. Nas palavras do finado xamã Hibederi, “os remédios, [sabemos] como em um sonho. Os remédios, ele [espírito auxiliar] os aponta para mim, os remédios, plantas. É verdade que existem remédios, plantas”. Os remédios também podem se revelar aos xamãs, cantando para eles quando estes vão ao mato (cf. Nunes, 2016, pp. 277-278). , muitas pessoas, especialmente as mulheres mais velhas, sabem com quais plantas podem fazer remédios para finalidades específicas. Nesse caso, também algumas ‘doenças de branco’ podem ser tratadas. O exemplo mais emblemático foi, sem dúvida, o enfrentamento à pandemia de covid-19. Depois que alguns anciões faleceram da doença na aldeia de Santa Isabel do Morro, um remédio foi preparado em analogia àquele utilizado para tratar os efeitos de watò (o termo é mais comumente traduzido por ‘gripe’, mas se refere a uma gama de problemas respiratórios). Sendo amplamente usado pelas pessoas contaminadas que apresentavam sintomas respiratórios, não houve mais mortes pela doença, mesmo nos momentos mais agudos pandemia, quando morreram várias pessoas não indígenas na vizinha cidade de São Félix do Araguaia, por exemplo. No caso de muitos outros povos, parece haver o mesmo tipo de assimetria: médicos não são xamãs, por isso não podem curar ‘doenças espirituais’ ou ‘doenças de índio’; mas os curadores indígenas podem curar ‘doenças de branco’, pelo menos algumas delas. Antes que uma articulação terapêutica, entretanto, isso remete, de um lado, à limitação do escopo e da efetividade da biomedicina (que só pode tratar doenças cuja causa lhe é de antemão conhecida e para as quais já há procedimentos e medicamentos com eficácia comprovada) e, de outro, ao caráter aberto do xamanismo que remete, em última instância, ao fato de que a capacidade de cura provém da relação dos xamãs com seus espíritos auxiliares, quando não diretamente desses próprios espíritos13 13 Essa abertura do xamanismo se manifesta na capacidade de promover ‘novas formas’ de cura a partir da experimentação analógica. Veja, por exemplo, a maneira como João Paulo Barreto qualifica os kumuã, especialistas de cura alto-rionegrinos, como “eternos pesquisadores” que “aplicam as fórmulas de bahsese [benzimentos] nas experiências cotidianas, no contato de novos casos de afecções que vão aparecendo e que exigem sempre uma releitura dos Kihti ukũse e das novas fórmulas de bahsese”, configurando uma prática orientada para a “experimentação” e para o “resultado satisfatório” (Barreto, 2021, pp. 180-181). .

Cabe-nos agora voltar ao xamanismo karajá para precisar a maneira como se desenrolam os processos de adoecimento e cura.

ADOECIMENTO E CURA

Uma pessoa está andando no mato ou pelo rio, sozinha ou acompanhada, quando sente ou presencia algo estranho. Voltando para a aldeia, sente-se mal. À noite, padece de uma capacidade de visão dilatada: mesmo dentro da casa, deitado, vê o céu através do telhado, ou vê o que se passa ao longe. E, principalmente, começa a ver um aruanã dançando e cantando. Um xamã é trazido para ver o doente e profere a sentença: “um aõni ♂ o pegou”. Esse é o roteiro mais comum para as crises iniciatórias ao xamanismo (ver Nunes, 2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].; Toral, 1992Toral, A. A. (1992). Cosmologia e sociedade Karajá [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Atoral-1992/cosmologia_e_sociedade_karaja.pdf
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). Sendo tratado por outro xamã, a pessoa lentamente se recupera, à medida em que estabelece uma relação como aquele aõni, o aruanã14 14 Os aruanãs (ijasò, na língua vernácula) são entidades mascaradas que habitam os três patamares do cosmos. Tendo sua alma-imagem (tyytyby ♂) trazida pelos xamãs à aldeia, onde os homens fabricam réplicas das máscaras de palha que são seus corpos, eles cantam e dançam por meses em um ciclo ritual próprio. Cada aruanã é uma dupla de máscaras. Sobre os ijasò e seu ciclo ritual, ver Toral (1992), Pétesch (1992), Rodrigues (1993, 2008) e Nunes (2016). que vê dançando a noite e que doravante se tornará seu xerimbabo.

Aõni ♂, anõni ♀ é um termo que se refere a uma quantidade de seres não humanos que habitam os três patamares do cosmos. Em geral, são monstruosos e perigosos, por vezes antropófagos [inròdu, ‘comedores (ròdu) de gente (inỹ)’] – não por acaso, a tradução que os Inỹ mais oferecem para o termo é ‘bicho’15 15 Assim como os regionais chamam figuras como o Curupira ou o Nego d’Água de ‘bicho’, remetendo não ao mundo animal, mas sim ao sobrenatural. É desse uso do termo pelos regionais, com efeito, que parece derivar a tradução dos Karajá para aõni. . Alguns, entretanto, como os aruanãs mascarados, podem ter seu perigo relativamente controlado e convertido em benefícios para as pessoas humanas, desde que a relação para com eles seja mediada por um xamã. O aruanã que aparece ao doente é, com efeito, apenas uma manifestação particular do aõni que se tornará seu xerimbabo. Este ser, que ele usualmente não mais vê sob a forma de aruanã, conversa com o xamã, lhe aponta perigos e acontecimentos relevantes, assim como o auxilia a tratar seus pacientes.

O xamanismo é uma prática multissensorial, que passa pelo desenvolvimento da audição, da visão, da habilidade com o uso das mãos e da capacidade de rexityytaa ♂, rexitàkytàka ♀, de extrair sua própria alma-imagem16 16 A expressão nominal mais comum para se referir à alma-imagem, componente agentivo da pessoa, é tyytàby ♂, tàkytàby ♀, literalmente “pele/casca (tyy) velha (tàby)”. Nessa expressão, entretanto, assim como em contextos discursivos geralmente ligados ao ritual e ao xamanismo, a alma-imagem é referida apenas como tyy ♂, tàky ♀ (ver Nunes, 2016). Sua qualificação como “velha” deriva do fato de que a alma-imagem da pessoa “já foi usada” por algum parente (Rodrigues, 1993, p. 82); isto é, a alma-imagem de um recém-nascido é o retorno de um ascendente falecido. e assim viajar pelo cosmos. Essas viagens são fundamentais para a aquisição de poder, bem como para alguns processos de tratamento. O sentido que singulariza a capacidade xamânica é a visão: os xamãs, dizem em português, têm seu ‘aparelho’, o que indica sua capacidade de ver coisas que as pessoas humanas em situações normais não podem ver – um aõni andando pelo mato, ou um feitiço no corpo de um doente, por exemplo. Não obstante a centralidade da visão para se definir um xamã – é xamã quem tem ‘a visão aberta’ –, é pelas mãos que passa todo o trabalho xamânico. Os curadores trazem nas palmas das mãos manchas verdes das plantas que usam para curar; a palma das mãos de um feiticeiro, por outro lado, é marcada com o vermelho do sangue das suas vítimas – o que só pode ser visto, obviamente, por aqueles que têm um aparelho, mas não pelas pessoas comuns. As mesmas capacidades que permitem a um xamã curar, permitem também que ele pratique a feitiçaria. No entanto, o feitiço ‘estraga a mão’ do xamã, que depois verá sua capacidade de curar reduzida ou anulada. Além de xamãs propriamente ditos, há também pessoas que apenas aprendem a manipular e jogar feitiços, pessoas com a ‘mão ruim’ (-èbo bina), mas que não têm as capacidades xamânicas da visão, da audição e da mobilidade pelo cosmos.

Assim como uma pessoa pode ser ‘pega’ por um aõni e, como consequência, se tornar xamã, há adoecimentos igualmente provocados por um ataque de aõni que não levam ao mesmo caminho. O doente, então, precisa ser tratado por um curador para se recuperar. Mas esses são casos excepcionais. A grande maioria dos adoecimentos é provocada por feitiço. As formas de ação do malefício no corpo da vítima são potencialmente infinitas, posto que os feitiços são inventados pelos feiticeiros, utilizando qualquer tipo de material à sua disposição para provocar efeitos específicos (desde grampeadores, para que a vítima fique ‘grampeada’, isto é, parada, sem reação, até cachaça, para induzir a pessoa a beber, por exemplo).

Alguns feitiços incidem primariamente sobre o corpo da vítima, introduzindo minúsculas flechas (wyhy) que provocam dores localizadas, ou outros materiais, como cordões que apertam a garganta. Outras introduzem um ou uma legião de aõni no ‘interior’ (wo ♂, woku ♀) da pessoa, provocando ‘loucura’ (itx), aparição repentina de pensamentos não usuais (como a ideação suicida), crises como ataques convulsivos ou mal-estar generalizado e apatia – uma vez mais, a diversidade é a norma. Outros, ainda, provocam a disjunção entre o corpo e a alma-imagem do doente, que é colocada em situações que afetam a vítima.

Essa breve descrição é, certamente, muito sumária, pois seria impossível inventariar toda a variedade de malefícios e efeitos por eles provocados – os casos relatados nas seções seguintes, espero, darão mais concretude à questão. O que importa reter é que o tratamento xamânico consiste geralmente em extrair da vítima aquilo que o feitiço coloca em seu corpo: seja uma flecha, seja os aõni que passaram a povoar seu ‘interior’. Para isso, é preciso ver aquilo que acomete o doente, ter mãos capazes de extrair o malefício ou os aõni e, em alguns casos, ser capaz de transitar pelo cosmos (para buscar a alma-imagem indevidamente separada do corpo da vítima). É precisamente por isso que médicos não podem curar feitiços. Se uma pessoa é atingida na perna por uma flecha-feitiço, sente dores e passa a perder os movimentos, não há nada que um médico possa fazer, nem mesmo para amenizar os sintomas: a flecha precisa ser extraída, e só um xamã pode fazê-lo. Quanto mais quando se trata de casos de acometimento por um aõni.

Essa separação nítida de domínios, protagonizados por especialistas distintos, no entanto, se desfaz por completo quando se trata de outros tipos de curadores: xamãs de outros povos e curandeiros não indígenas são capazes, tanto quanto os xamãs karajá, de curar feitiços.

‘É A MESMA COISA’

Talvez mesmo pelo relativo isolamento em relação a povos vizinhos, os Karajá não buscam usualmente xamãs de outras etnias. Essa, entretanto, é uma possibilidade em aberto – o que não deve surpreender, dados os muitos casos de circulação de tratamento xamânico entre povos distintos. Quando do início da crise de suicídios por enforcamento, cuja origem é um feitiço chamado bàtòtàka ♀, bàtòtaa ♂ (‘amarrar a garganta’) e que afligiu gravemente os Karajá durante toda a década de 2010 (sobre isso, ver Nunes, 2017aNunes, E. S. (2017a). Do feitiço de enforcamento e outras questões. In M. Aparício & L. C. Aráuz (Orgs.), Etnografías del suicidio en América del Sur (pp. 259-284). Abya Yala., 2017bNunes, E. S. (2017b). Karajá/Javaé – nó na garganta. In C. A. Ricardo & F. P. Ricardo (Orgs.), Povos indígenas no Brasil, 2011-2016 (pp. 682-685). Instituto Socioambiental.), os Inỹ solicitaram ao Distrito Sanitário Especial Indígena do Araguaia (DSEI Araguaia) que Mapulu, uma renomada xamã Kamayurá, fosse trazida para ‘tirar’ o feitiço das aldeias. Em sua estadia, a xamã localizou, retirou e destruiu três malefícios, além de realizar alguns tratamentos individuais. Como resultado de seu trabalho, resultaram cerca de seis meses sem tentativas de suicídio – quando, antes, as tentativas ocorriam quase diariamente. Mas o problema ainda não estava resolvido, como a própria xamã alertou. Em 2015, ela foi novamente à aldeia Santa Isabel do Morro. Dessa feita, porém, realizou apenas tratamentos individuais17 17 Presenciei apenas a segunda passagem da xamã kamayurá pela aldeia de Santa Isabel. O que sei de sua primeira visita devo a relatos tanto dos próprios Karajá quanto de alguns funcionários da SESAI-Brasília que acompanharam a ação. . Os Karajá observaram atentamente seus métodos. Ela utilizava uma folha seca para fazer um cone fino e comprido, usado como um tipo de cigarro. Puxando a fumaça e assoprando-a em suas mãos, ela então procedia à extração do malefício. No fim, o objeto extraído do corpo do doente se materializava em suas mãos, sob a forma de uma massa marrom, e era mostrado ao enfermo e à sua família. A sessão de tratamento ocorreu dentro de uma casa, e a fila dos que esperavam por atendimento se estendia porta afora.

Os Inỹ ressaltaram sua capacidade de mostrar o objeto-feitiço (algo que os xamãs karajá não fazem), o que lhes dava certeza tanto da origem do adoecimento – de que se trata deveras de feitiçaria – quanto da eficácia do tratamento da curadora. Com efeito, os Karajá atribuem aos xamãs alto-xinguanos, assim como aos dos Javaé, uma potência maior do que a de seus próprios: esses outros povos, como dizem, têm ‘xamãs fortes’. E, por isso mesmo, também os temem. Poderosos em demasia, são potencialmente feiticeiros terríveis.

A visita de Mapulu foi excepcional tanto pela atuação coletiva, no caso de um feitiço que se tornou uma verdadeira epidemia, quanto porque foi viabilizada pela SESAI. No cotidiano, é a própria família que procura um xamã de sua confiança e paga seus serviços. E não apenas os xamãs inỹ são procurados. Cada vez mais, tem sido frequente que as famílias levem seus enfermos para curandeiros regionais, pessoas não indígenas que têm um trabalho de cura, em geral não associado a nenhuma religião em particular. Essas pessoas são chamadas pelos Karajá de tori hàri, ‘xamãs (hàri) brancos (tori)’.

Durante o biênio que residi em São Félix do Araguaia, Mato Grosso, cidade vizinha à aldeia de Santa Isabel do Morro, pude conhecer uma delas. Uma senhora de meia idade, com uma casa repleta de plantas e de visitantes que vão em busca de ‘tratamento’18 18 Tratamento entre aspas, pois esse não é o termo em geral utilizado pelos não indígenas que procuram esses curandeiros. ‘Rezar’ ou ‘benzer’ são os verbos mais comumente empregados. Os Karajá, por seu turno, costumam se referir a suas visitas a essas pessoas da mesma maneira que às visitas de um xamã karajá à casa do doente: que vão até lá para ‘tirar feitiço’. A própria palavra ‘curandeiros’ é utilizada aqui na falta de termo melhor, muito no intuito de marcar uma distinção para com os xamãs (curadores ou feiticeiros) – que será delineada mais abaixo. Uma descrição mais detalhada da maneira como as pessoas indígenas e não indígenas se referem aos diferentes curadores poderia ser proveitosa, mas fugiria aos propósitos deste artigo. . Foi, com efeito, porque a visitei na companhia de um amigo karajá que buscava seus serviços que a conheci. Em um quarto no interior da casa, uma multidão de imagens de santos e outras entidades compõem o cenário onde ela benze as pessoas. Ela me contou que vai todos os anos à Bahia, onde atualiza seus conhecimentos e de onde traz remédios à base de planta que revende a seus pacientes – remédios esses que podem ser ingeridos, aplicados de forma tópica ou usados em banhos. Foi na Bahia que ela aprendeu a arte da ‘macumba’, como ela se referiu – algo evidentemente influenciado pelas religiões de matriz africana, embora não saiba precisar qual.

Contou-me também casos em que tratou de pessoas inỹ enfeitiçadas – sobre vários deles, pude também escutar relatos dos próprios karajá, em termos sempre muito semelhantes aos dela. Uma moça, por exemplo, chegou até ela muito mal. A curandeira rezou e conseguiu acalmar a doente. Passou então a mão no pescoço da moça e retirou um feixe de cabelo, que a estava estrangulando, asseverando que se tratava de um feitiço inỹ. Em outro caso, um homem maduro chegou até ela fraco, muito magro. A curandeira rezou, depois passou a mão em seu pescoço e retirou um barbante (‘desses que se usa nos enfeites’19 19 Ela se refere aos braceletes e jarreteiras fabricados com barbante industrializado (em substituição ao algodão fiado, antes utilizado) que compõem a ornamentação ritual inỹ – dexi, woudexi ♂, deobutè ♂ e wàlairi. ) que estava atado a sua garganta, apertando-a; por isso ele não conseguia comer. Também se tratava de um feitiço inỹ. Esse mesmo homem já havia me relatado sua história antes, ressaltando que, depois que ela o tratou, ele recuperou o apetite e não voltou mais a sentir o mal-estar que o afetava: “ela me curou, curou mesmo”.

Do mesmo modo como aos xamãs inỹ, entretanto, pesa sobre ela a ambiguidade de que, se é capaz de curar, também é capaz de fazer o mal. Um homem tapirapé lhe ameaçou depois de ela ter dito que era ele o responsável por algumas mortes por feitiçaria. Ouvi pessoas a acusarem de ser ela própria também feiticeira, e algumas deixaram de procurá-la depois de casos de adoecimento que, de acordo com outros xamãs, foram provocados por ela.

Um outro curandeiro de São Félix do Araguaia é bastante renomado por suas práticas de cura; homem comum, de baixa estatura, que alterna a prática terapêutica com uma ocupação no comércio regional. Não o conheci, mas, pelos muitos relatos que pude ouvir, a origem de sua prática está ligada sobretudo ao espiritismo. Ele benze seus pacientes e também lhes administra remédios à base de ervas, que ele mesmo fabrica e vende. Além disso, domina práticas divinatórias: manipulando materiais como alho e sal, faz pequenos gestuais visando saber quem está falando mal ou tentando fazer mal a você e, quando vai dormir, um espírito lhe revela; há alguns anos, ele conseguiu guiar de volta à aldeia um rapaz inỹ que estava, sob efeito de feitiço, vagando há dez dias pelo mato, depois de conversar com seus espíritos auxiliares e ver a localização do rapaz. Seus espíritos auxiliares também o protegem. Um homem inỹ me contou que aprendeu com ele, por meio de ensinamentos e da administração de banhos, algumas dessas técnicas de proteção.

Uma noite, seus cachorros começaram a latir em direção ao mato. Ele saiu de casa para ver o que era, mas tão logo pisou para fora sentiu uma mão em seu peito, segurando-o, impedindo-o de seguir. No dia seguinte, foi conversar com um xamã karajá de sua confiança, que lhe disse que um aõni muito perigoso estava andando perto da aldeia: alguém o havia impedido de colocar sua vida em perigo. Algum tempo depois, aconteceu novamente. Ele estava distraído à beira da água quando crianças que brincavam por perto gritaram, alertando-o de um jacaré que estava se aproximando dele. Alguns dias depois, ele ia descer para tomar banho no rio quando sentiu uma mão em seu peito, segurando-o novamente. Ele voltou e disse que tomaria banho depois. Uma mulher desceu em seu lugar e tomava banho tranquilamente, quando a esposa do homem foi até a beira do rio e viu um enorme jacaré bem ao lado dela. Novamente, ele foi consultar um xamã sobre o ocorrido, que lhe disse que aquele animal estava animado por um feitiço para pegá-lo. Por que, então, o jacaré não lhe pegou no outro dia, quando estava distraído? “Porque você tem muita fé”, disse o xamã, complementando que algum ‘anjo’ o estava protegendo – voltarei logo adiante à questão da ‘fé’.

Falando sobre este curandeiro não indígena, algumas pessoas me disseram que os tori hàri (‘xamãs brancos’) são mais fortes do que os inỹ, por dois motivos. Primeiro, eles veem e conversam acordados com seus espíritos auxiliares, ao passo que os xamãs karajá só podem fazê-lo quando rexityytaa, ou seja, quando, dormindo, extraem sua alma-imagem e andam pelo cosmos. Um homem me contava que procurou esse curandeiro quando se sentia mal. Ele olhava para o lado e conversava, o que lhe deixou confuso: “você está falando comigo?”. “Não”, respondeu, afirmando que conversava com seu espírito auxiliar. Pelo mesmo motivo, os xamãs javaé são considerados mais fortes do que os dos Karajá: eles veem tudo debaixo d’água, por exemplo, veem o boto se movimentando no fundo antes de ele subir para respirar, assim como veem muitos animais sob sua forma humana (cf. Toral, 1992Toral, A. A. (1992). Cosmologia e sociedade Karajá [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Atoral-1992/cosmologia_e_sociedade_karaja.pdf
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; Rodrigues, 1993Rodrigues, P. M. (1993). O povo do meio: tempo, cosmo e gênero entre os Javaé da Ilha do Bananal [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília].).

São mais fortes também porque, diferentemente dos xamãs javaé e karajá, podem optar por fazer somente o bem. Os inhàri estão inevitavelmente implicados no mesmo circuito que os feiticeiros. Mesmo que apenas curem, sempre carregam feitiços como forma de ‘proteção’. Quando uma pessoa é pega por um aõni, os feiticeiros logo vão tentar lhe convencer a se aliar a eles, a se tornar também um feiticeiro. Mesmo que a pessoa não aceite, eles lhe oferecem feitiços, que o novo hàri se vê compelido a aceitar, mesmo que não pretenda os utilizar; caso contrário, os feiticeiros ficarão bravos e poderão atacá-lo. Quando um xamã está curando muita gente, os feiticeiros podem vir até ele e pedir para que pare, pelo menos por um tempo, ou que não cure determinada pessoa. Caso o curador se recuse, pode acabar ele próprio atacado pelos feiticeiros – é sempre necessário negociar. A força dos tori hàri, nesse sentido, é sua capacidade de escapar desse circuito, de poder ‘fazer só o bem’.

Quando perguntava para os Karajá se esses curandeiros não indígenas eram realmente xamãs, no sentido que conferem ao termo, sempre ouvi a mesma e enfática resposta: “sim, são xamãs mesmo!”. Lembro-me de uma conversa que tive, muitos anos atrás, com o cacique Raul Hãwakati, da aldeia Buridina. Ele me contava sobre sua impressão quando assistiu uma sessão de trabalho em um centro espírita, comparando com o xamanismo karajá: “É a mesma coisa, não tem diferença”. Pois, sejam Karajá, Javaé, de outras etnias ou não indígenas, todos têm a visão aberta, se comunicam com os ‘espíritos’ e curam por intermédio deles. Diferenças evidentemente também são reconhecidas, e se baseiam em conjuntos de técnicas e procedimentos distintos. Essas diferenças, entretanto, são significativas sobretudo no que diz respeito a seu poder de cura, exatamente do mesmo modo como os xamãs karajá diferem entre si – há xamãs mais ‘fortes’ e mais ‘fracos’. Nesse sentido, que a xamã xinguana extraia o malefício do corpo do doente e lhe revele em forma física ou que os tori hàri conversem acordados com seus auxiliares são antes índices quantitativos, isto é, índices de sua maior potência xamânica, que qualitativos, ou seja, algo que indique uma diferença fundamental ou perspectiva. Mas naquilo que é fundamental, em sua capacidade de curar feitiços, ‘é a mesma coisa’.

A FÉ SALVA

Acima vimos como um xamã explicou para outro homem que ele havia sido protegido de um feitiço porque ‘tinha muita fé’. Essa, com efeito, é uma afirmação bastante comum. Muitas pessoas relatam que se protegeram ou mesmo se curaram de um feitiço fazendo recurso aos pastores e, principalmente, à Bíblia. Ouvi diversos relatos de pessoas que, em momentos de crise provocada pela ação de feiticeiros, abriram o livro sagrado e rezaram para Deus e, com isso, não sucumbiram.

No caso de um homem cujo adoecimento acompanhei de perto, uma série de crises provocadas pela ação de feitiço lhe provocava mudanças repentinas de comportamento, fortes dores de cabeça, dormência no corpo, além de o fazer escutar vozes que diziam para ele se enforcar. Quando começava a se sentir mal, abria a Bíblia e rezava, o que lhe acalmava e abrandava os sintomas. De outro homem, escutei um relato similar. Durante o pior momento da epidemia de suicídios à qual me referi, esse Karajá, que morava no Tocantins, veio visitar seus parentes em um feriado. Depois de tomar algumas cervejas, voltou para o hotel onde estava hospedado. Quando entrou no quarto, começou a se sentir mal. “Eu senti uma vontade, vontade mesmo de me matar”. Ele olhava para as cortinas e só conseguia vê-las como um objeto com o qual poderia se enforcar. Assustado, sentou-se na cama, abriu uma Bíblia que estava na mesa de cabeceira e rezou. Logo se sentiu melhor. Então foi embora, e isso nunca voltou a acontecer com ele. Um último exemplo. Pedro Hurusỹni é ‘original’ de Fontoura, mas mora há anos em Santa Isabel. Hoje, ele se diz ‘crente’. Em uma pescaria de tartaruga, ele me falava sobre sua religião. Disse que acredita em Jesus, e começou a me contar sobre uma de suas ‘revelações’. Na época, Hurusỹni ainda morava em Fontoura. Um afamado feiticeiro daquela aldeia tinha lançado um malefício para seu filho. Pedro, então, resolveu desafiá-lo. Foi até ele e disse que não tinha medo, que de sua vida só Jesus sabia, que ele podia ser enfeitiçado, mas só Jesus sabia de sua vida. Com raiva, o homem jogou feitiço para ele. À noite, Hurusỹni esperou pelo pior. Nada aconteceu a princípio, até que começou a se deparar com uma série de aparições. Ele ficou com muito medo, achou que ia morrer. A última aparição foi de uma vara de porcos do mato vindo em sua direção; no meio dos queixadas, lá estava o feiticeiro, e assim Pedro teve certeza sobre o autor do malefício. Sua esposa não viu nada. Ele tremia na cama, sua mulher o chamava e ele não acordava. Quando as aparições vieram, ele orou para Jesus e se manteve firme em sua fé. Rezou fervorosamente e, aos poucos, seu tormento foi passando. Sua fé, concluiu ele, o protegeu, Jesus o protegeu20 20 Outros casos etnográficos indicam um trânsito semelhante entre xamanismo e religiões cristãs. Veja-se, por exemplo, a aproximação que os Potiguary do Ceará estabelecem entre suas próprias práticas de cura e as igrejas evangélicas, no sentido de que ambas lidam, apesar das diferenças de método, com ‘problemas espirituais’: nas palavras de um curador, “as igrejas evangélicas vieram para nossa aldeia. Entre eles, ficar curado não é muito usando plantas medicinais, mas é uma questão espiritual. Qualquer um que enfrente problemas espirituais vai para uma igreja evangélica” (Andrade & Sousa, 2016, p. 195). No sentido inverso, mas indicando o mesmo tipo de trânsito, veja-se também a afirmação de um jovem kawaiwete de que “o pastor pode jogar praga naqueles que param de frequentar a igreja. Ou seja, segundo o indígena, o pastor possui o poder de adoecer pessoas” (Assumpção, 2014, p. 85). .

Recentemente, uma jovem comentava comigo: “Eu não tenho medo de feiticeiro, não. Meu Deus é mais forte”. As pessoas que, como ela, se convertem a religiões protestantes (diferentemente daquelas que se declaram católicas), por vezes dizem ‘não acreditar’ em feitiço. No entanto, basta um pouco mais de prosa para que essas mesmas pessoas relatem algum tipo de evento envolvendo o acometimento por espíritos – a feitiçaria inclusa. Antes que uma verdadeira descrença, essa recusa à feitiçaria parece exprimir duas questões. De um lado, a vontade de experimentar uma vida livre da moléstia que é a feitiçaria21 21 Uma utopia, a seu modo, similar àquela dos Wari’ que, quando de sua primeira conversão ao protestantismo, desejavam experimentar uma vida sem afins (Vilaça, 1996). Não há vida neste chão sem a feitiçaria pois, como um homem me disse certa vez, “o feitiço existe desde que o mundo é mundo”. ; de outro, o reconhecimento, amplamente compartilhado com os não protestantes, de que Deus é mais poderoso que qualquer feiticeiro, ou qualquer xamã; pois Deus é ele próprio um xamã, o maior dos xamãs.

DEUS E O DIABO

Na mitologia inỹ, uma figura que se destaca: o demiurgo Ànỹxiwè (♂, Kànỹxiwè ♀). Ele foi o responsável por grande parte das transformações que imprimiram no mundo seu aspecto atual. Foi ele quem descobriu o sexo; quem roubou o sol do Urubu-Rei e criou, assim, o regime equilibrado entre dia e noite; quem fez a separação definitiva entre humanos e animais, por meio do roubo de determinados bens (machado, cestos, canoa, o fogo culinário etc.), que permitiu que a humanidade verdadeira emergisse. Por tudo isso, em um primeiro momento de aproximação com o mundo karajá, religiosos, sobretudo os missionários linguistas do Summer Institute of Linguistics (SIL) – que sistematizaram a escrita da língua karajá e traduziram o novo testamento – aproximaram a figura de Ànỹxiwè ao Deus cristão, em uma tentativa de tradução. Mas esse esforço não se mostrou produtivo. Se aparentemente os Inỹ aceitaram essa tradução por algum tempo, passaram a negar tal associação tão logo começaram a compreender melhor a teologia cristã. A seus olhos, Ànỹxiwè não poderia ser Deus porque, ao contrário desse último, o bem não é a motivação de suas ações. Ànỹxiwè é a um só tempo demiurgo e trickster, cujas criações e conquistas se dão, via de regra, por enganações, embustes e traquinagens. Vejamos brevemente.

No começo do mundo, só existiam Ànỹxiwè e sua avó. Ele não conhecia o sexo. Seu pênis endurecia, mas ela não sabia qual seria sua ‘comida’. É só quando olha diretamente para a vagina de sua avó e seu pênis endurece imediatamente que ele entende que aquilo poderia ser ‘a comida do pênis’. Disfarçado, copula com sua avó e comprova sua intuição. É dessa violência inaugural que se origina uma característica fundamental da socialidade humana atual. “Devido a esse acontecimento”, comenta o tradutor de uma versão dessa história registrada por Rodrigues (2008, p. 51)Rodrigues, P. M. (2008). A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história [Tese de doutorado, University of Chicago]., “de Tanỹxiwè [sic., pronúncia javaé] ter feito sexo com a própria avó, nós herdamos esse costume de fazer sexo, de produzir filhos, para aumentar a população, pois antes não tinha”.

Descoberto – mais especificamente, denunciado pelo Mutum, a quem ele joga fogo em retaliação –, Ànỹxiwè parte para uma longa caminhada. Ele se casa e fica um tempo junto a sua esposa e sua sogra. Mas, naquele tempo, o sol corria muito rápido pelo céu e a claridade durava muito pouco. Motivado por uma crítica de sua sogra, Ànỹxiwè se transforma em um bicho em putrefação para atrair Rararesa, o Urubu-Rei. Por meio deste embuste, Ànỹxiwè consegue pegar o Urubu-Rei e forçá-lo a entregar o sol, que era seu raheto – grande adorno plumário de cabeça. Estabelecendo o equilíbrio entre o dia e a noite, ele segue sua caminhada.

No caminho, ele vai encontrando vários animais que, naquele tempo, eram gente e falavam. A trama segue sempre mais ou menos dessa maneira: Ànỹxiwè cobiça um item que tal ou qual animal possui, faz uma oferta enganosa, rouba o item original e transforma aqueles seres em animais (em apenas animais, ‘definitivamente’ animais). O Lagartixa cortava uma árvore com seu machado; Ànỹxiwè propõe uma troca, oferecendo um machado de barro; ele aceita, mas o instrumento se quebra no primeiro golpe; quando reclama, Ànỹxiwè retruca que, dali em diante, ele será tõrikòkò (♀, tõriòò ♂), o animal lagartixa, que fica nos troncos de árvore balançando a cabeça para frente e para trás. E assim ocorre com vários outros animais. Até que o demiurgo chega a um lugar que ficou conhecido como iròdu iryna. Lá ele rouba o fogo dos animais e foge. Perseguido por estes, Ànỹxiwè joga um punhado de terra por cima dos ombros e cria um lago que o separa de seus perseguidores. Os animais enviam diversas cobras até que uma delas consegue trazer o fogo de volta. Ànỹxiwè, então, manda Krò Lahi (a Avó Sapo) atravessar o lago, beber o máximo de água possível e vomitar sobre o fogo dos animais. Com esse episódio, Ànỹxiwè termina sua série de transformações dos animais (em animais, escusado dizer).

Como poderia Ànỹxiwè ser Deus, então, se ele engana, tripudia, rouba? Aos olhos dos Inỹ, ele parece justamente o oposto. Logo no início de minhas pesquisas junto aos Karajá, eu estava em Buridina conversando com Karitxỹma sobre essas histórias antigas, ao que chegamos à pessoa de Ànỹxiwè. Ela me disse, então, que “o pessoal fala que ele é Deus. Mas, para mim, não é Deus, não. Acho que está mais para o Capeta! Porque ele só engana as pessoas”. Escutei inúmeras afirmações como essa. Ànỹxiwè é o “Cão”, o “Capeta”, o “Diabo”, termos usados pelos Inỹ.

Deus, o verdadeiro, o único, é Xiburè. Ele é também um poderoso aõni. Um biu làdu, ‘morador do Mundo do Alto’, ele é o maior de todos os hàri, xamãs. O Biku ♀, Biu ♂, patamar superior do cosmos, é estratificado em três camadas. No tempo em que Ànỹxiwè caminhava sobre este chão, Xiburè ficava na camada mais próxima ao mundo do meio. De lá, ele alimentava as pessoas. Quando se tinha fome, pedia-se para ele: “Eu vou comer tal coisa!”, e a coisa desejada aparecia imediatamente na frente da pessoa. Quando a comida acabava, Xiburè a renovava até que a pessoa se saciasse. Certo dia, porém, um jovem rapaz duvidou de seus poderes e disse que queria comer um “mingau de fezes”. Quando o prato apareceu à sua frente, ele recusou. Ofendido, Xiburè subiu para o último patamar do Mundo do Alto, onde se encontra até hoje. Demasiado distante, ele não mais escuta os pedidos das pessoas por comida que, assim, precisam plantar, caçar e pescar para se alimentar.

Xiburè é a fonte do maior poder xamânico de cura que pode haver. Embora ele não seja um ‘criador’, como Ànỹxiwè, sua benevolência sem ambiguidade em relação aos humanos faz com que os Inỹ o considerem como Deus. Colocando diretamente, Xiburè é Deus. Como certa vez disse Mahuèdèru, “em português, ele é Deus, já nós o chamamos de Xiburè”. Não se diz que Xiburè é o Deus dos Inỹ, ou que Deus é o Xiburè dos brancos, como se diz que o gás é a lenha dos Tori. Nada de fórmulas de proporcionalidade aqui, o que temos é verdadeiramente uma equação: os Inỹ insistem que ele é um só, o único, que Deus e Xiburé são nomes diferentes para a mesma pessoa22 22 Ver também o caso kaxinawá. Falando sobre algumas das personagens da mitologia desse povo, Cecilia McCallum (2002, p. 389) afirma que “alguns, como o saudoso Moico, dizem que o Inca primordial é o Deus cristão. Jesus Cristo seria uma outra figura ancestral, Yubenauabuxka, cuja cabeça subiu para aos céus e se transformou na lua”. .

Além das figuras de Xiburè e Ànỹxiwè, Deus e o Diabo, a mesma questão se coloca também em relação a outras entidades. Já vimos como um xamã explicou ao homem que lhe perguntava porque o jacaré enviado pelo feiticeiro não o pegou, que algum ‘anjo’ o protegia. Também Mahuèdèru, na mesma narrativa de onde extraí o comentário acima citado, fala que seu avô Texibrè, um poderoso xamã, viu um ‘padre’ no Mundo do Alto, que sua neta diz ser, na verdade, um ‘anjo’. Toral (1992, p. 206)Toral, A. A. (1992). Cosmologia e sociedade Karajá [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Atoral-1992/cosmologia_e_sociedade_karaja.pdf
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, falando sobre os moradores deste patamar do cosmos, afirma que os Karajá distinguem entre eles o ibutu-mtàby, “o pai de todos nós”, “um velho de compridos cabelos e barba branca que usava um roupão branco até os pés”, ao passo que os Javaé “mencionam os impressionantes . . . . padres dominicanos de batinas imaculadas que os visitaram intermitentemente”.

O que vale para as figuras benignas vale igualmente para as malignas. Da mesma maneira como Xiburè é Deus, Ànỹxiwè é o Diabo. Depois de sua longa caminhada pelo rio, rapidamente descrita aqui, não se sabe para onde ele foi. Mas, hoje, os Inỹ dizem que seus congêneres ainda vivem entre eles. De várias pessoas, ouvi a ideia de que, como bem resumiu um homem, “a Bíblia diz que o Diabo está aqui na terra. E é verdade, porque aqui tem feitiço. O mal está aqui”. Os feiticeiros também são demônios, manifestações de Satanás. O círculo, então, se fecha. Deus pode proteger contra os feitiços, porque ele é o maior dos xamãs; e a existência de feiticeiros mostra que o Mal está neste chão.

TEMPO-MUNDO AÕNI

Pensar essa espécie de curto circuito entre diferentes práticas de cura, dos xamanismos indígenas e não indígenas ao poder de Deus e da fé, exige que retornemos aos tempos primordiais, narrados pela mitologia, e ao conceito de aõni. Pois, mais que simplesmente um conjunto de seres não humanos, este termo remete a uma capacidade ou modo de ação inextricável ao xamanismo e que define o tempo primevo.

A mitologia inỹ faz uma distinção entre dois grandes tempos, que poderíamos nominar de o tempo primordial e o ‘tempo dos antigos’. As histórias de Ànỹxiwè e Xiburè, que vimos muito resumidamente aqui, além de uma série de outros acontecimentos, tiveram lugar no tempo primordial. São histórias que contam sobre a formação do mundo e dos seres que viriam depois a povoar o mundo atual. A transição para o ‘tempo dos antigos’ (hỹỹna mahãdu bàde-u ♂) é marcada por dois acontecimentos. Primeiro, o roubo do fogo por Ànỹxiwè, que completa a transformação dos animais. Depois, o surgimento da humanidade verdadeira, saída do Fundo do Rio (patamar inferior do cosmos) em substituição à primeira humanidade, extinta após a revelação de um segredo ritual masculino23 23 Essas são duas das histórias inỹ mais bem conhecidas e documentadas. Sobre a saída do Fundo do Rio, ver Nunes (2016, pp. 553-556), Pétesch (1992, p. 445), Rodrigues (2008, p. 77) e Pimentel da Silva e Rocha (2006, pp. 102-108); sobre a segunda, conhecida como inỹ wèbòhòna, ver Nunes (2016, pp. 546-553), Rodrigues (1993, pp. 273-274; 2008, pp. 578-579), Pimentel da Silva e Rocha (2006, p. 85) e Donahue (1978). . As histórias que se seguem a esses eventos narram a maneira como a humanidade verdadeira adquiriu ou aprendeu os elementos que caracterizam aquilo que se chama de inỹ bàdèdàkỹnana ♂, inỹ bàdèdỹỹnana ♀, ‘nosso conhecimento’ ou ‘nossa cultura’: a origem dos ornamentos corporais, das práticas rituais e do conhecimento sobre a agricultura, por exemplo24 24 Há ainda um terceiro tempo, o “tempo do pessoal de hoje” (wijina bòdu mahãdu bàdeu ♂), marcado pela vida juntos aos brancos, sobre o qual não cabe entrar em detalhes aqui. Para uma caracterização mais detalhada sobre a diferença entre esses três tempos, ver Nunes (2016, 2022). .

O tempo primordial é marcado por uma série de ações e capacidades que se tornariam impossíveis no ‘tempo dos antigos’. Ánỹxiwè, poderoso aõni, protagoniza uma série de episódios nesse sentido, mas ele não é o único. Longe disso, todos os seres do tempo primordial eram capazes de ações extraordinárias. Animais e humanos namoravam e procriavam; pessoas transformavam a si mesmas e aos outros.

A saga de Hãwyy Wènõna é repleta de exemplos: tudo começa com um grupo de homens mortos pelos pirarucus que pescavam, que se revelam como aõni. Estes, por sua vez, assumem a aparência dos homens mortos e voltam para a aldeia. Hãwyy Wènõna descobre que seu marido é, na verdade, um aõni disfarçado e foge com seu filho, sendo perseguida depois pelo aõni. No meio do caminho, ela entra com o menino dentro da barriga do Socó-Boi (Hõi) para se esconder, de onde ele sai todo pintado, como a ave. Depois a mulher pensa em sua irmã mais nova, fazendo-a aparecer ao seu lado. Quando a jovem se transforma em onça ao provar da banha de Hãlòèlahi ♂, a ‘Avó Onça’, Hãwyy Wènõna bate com o pé no chão e faz uma árvore gigantesca encolher a ponto de ela e o filho subirem em sua copa, e em seguida faz a árvore crescer novamente. Mais adiante, depois de uma negociação malsucedida com um morador do Mundo do Alto por água, seu filho se transforma em pássaro e a abandona25 25 Ver íntegra da narrativa em Nunes (2016, pp. 526-539). .

Ao me narrar a história do fim da primeira humanidade, Mahuèdèru descreveu esse tempo como ixỹ isỹruhukỹ rỹiramỹhỹ-ku, “no tempo em que as pessoas estavam perto da transformação”. Seu genro Xirihore, que me ajudou a revisar a narrativa, traduziu isỹru por ‘perto da transformação’ e comentou que, “naquele tempo, qualquer pessoa se transformava em algum bicho”26 26 Isỹru é um termo antigo (hỹỹna ♂ rybè, ‘palavra dos antigos’) para o qual não há equivalente exato na linguagem atual. . Por isso, naquele tempo, os pensamentos, os desejos e, principalmente, as palavras eram perigosas. O que se pensava, o que se desejava, o que se falava, acontecia. Ànỹxiwè ‘transformava com suas palavras’ (ritxuhòmỹhỹre): bastava falar ‘agora vocês serão pato’, ‘camaleão’, ‘ema’ etc., que as gentes-animais se transformavam nos animais designados. Essa, com efeito, era uma propriedade daquele mundo primevo.

As personagens fazem, dizem, ou simplesmente pensam algo, que, pelo poder mesmo de sua fala/pensamento, acontece: palavra e coisa, pensamento e ato, ainda não estavam separados. Por isso, é comum que as narradores e narradores comentem, diante de tais atos extraordinários, que tal ou qual personagem é aõni, e é por isso que pôde fazer o que fez. O tempo primordial, em suma, é caracterizado por um modo de conhecimento ou de ação aõni; um modo de ‘pensação’, poderíamos dizer, pois pensar não difere de fazer, conhecer não difere de (fazer) existir.

As histórias desse tempo primevo são povoadas por seres cuja natureza própria é indiscernível: não se pode ter certeza se estamos diante de um humano, um animal ou um aõni. As personagens humanas muito frequentemente se revelam como não humanas; os animais eram gente e falavam. Anterior aos intervalos discretos e às formas, este tempo é marcado por um regime pré-cosmológico de “transparência originária ou complicação infinita onde tudo dá acesso a tudo” (Viveiros de Castro, 2006Viveiros de Castro, E. B. (2006). A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, 15(14/15), 319-338. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
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, p. 323). Os seres desse tempo, antes que mergulhados em um estado de indiferenciação, são internamente atravessados por um fluxo infinito de diferenças. Não se trata de que o Lagartixa transformado por Ànỹxiwè, por exemplo, fosse um animal que se apresentava como humano, ou um humano que aparecia sob forma animal – suas qualidades humana e animal não coexistiam enquanto conjuntos de diferenças discretas. O Lagartixa e todos os outros seres do tempo primordial, esse regime de diferença infinita, esse tempo de puro contínuo, são aõni, e é daí que deriva sua capacidade de comunicação universal.

A história que a mitologia conta é aquela da passagem desse estado de puro contínuo para outro, no qual há intervalos discretos entre conjuntos de diferenças bem determinados (Lévi-Strauss, 2004Lévi-Strauss, C. (2004 [1964]). O cru e o cozido: Mitológicas 1. Cosac & Naify. [1964]); a passagem desse regime de diferença infinita para outro, em que conjuntos de afecções e capacidades correspondem a formas corporais específicas e discretas umas em relação às outras (Viveiros de Castro, 2002Viveiros de Castro, E. B. (2002). Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In Autor, A inconstância da alma selvagem (pp. 345-399). Cosac & Naify., 2006Viveiros de Castro, E. B. (2006). A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, 15(14/15), 319-338. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
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). O que Ànỹxiwè faz com os animais que transforma é extrair sua qualidade aõni: depois de transformados, os animais serão agora apenas animais, inequivocamente animais – não são mais gente, não mais falam. De modo análogo, a emergência da humanidade verdadeira corresponde a um procedimento de ‘deaõnização’ operado pelo mito: se a primeira humanidade vivia demasiado ‘perto da transformação’, a humanidade verdadeira, ancestrais dos Inỹ atuais, emerge do Fundo do Rio já subtraída de seu aspecto aõni: assim como as pessoas de hoje, eles já não mais conversam, pedem ajuda ou namoram animais, não têm mais o poder de fazer atos extraordinárias nem de fazer as coisas acontecerem apenas pela manifestação de seu pensamento, como antes. Os Inỹ, agora, são gente verdadeira, e apenas isso.

Esse ‘afastamento’ da transformação, entretanto, coloca-se mais em termos de distância do que de ausência, pois, como disse Viveiros de Castro (2006, p. 324)Viveiros de Castro, E. B. (2006). A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, 15(14/15), 319-338. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
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, “os espíritos são o testemunho de que nem todas as virtualidades foram atualizadas e que o turbulento fluxo mítico continua a rugir surdamente por debaixo das descontinuidades aparentes entre os tipos e espécies”. As formas corporais opacas dos seres ocultam sua humanidade uns para os outros, mas essa opacidade é relativa, pois reversível. Para as pessoas comuns, isso comumente se apresenta como um risco – ou melhor, é já um sinal de que algo não está bem, de que você já está acometido por algum adoecimento. Mas há uma classe de pessoas (os xamãs) e um tempo/espaço (os rituais de praça – sobre isso, ver Nunes, 2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].) nos quais o tempo-mundo aõni pode existir controladamente entre os Inỹ27 27 Em relação às pessoas comuns, poderíamos também mencionar os sonhos. Pois, quando se dorme, a alma-imagem (tyytàby) sai do corpo e anda, e suas aventuras podem ser transparentes, por assim dizer, a seu dono por meio de seus sonhos. Em certo sentido, portanto, os xamãs diferem dos comuns apenas em grau, pois aqueles especialistas controlam os vagares de sua alma-imagem. .

O xamanismo é evidência de que o regime de comunicação universal do tempo primevo persiste em coexistência com o mundo atual. Os xamãs são capazes de ver aquilo que as pessoas comuns não veem, visitam os aruanãs em suas moradas, conversam e negociam com aõni diversos. Permanecendo humanos para os seus, parentes de outros humanos, eles não obstante adquirem um aspecto aõni por meio da aliança com o espírito auxiliar que lhes provocou a crise iniciatória. E os Karajá são muito explícitos quanto a isso, afirmando que os xamãs são aõni. Pessoas humanas não são capazes de curar doenças causadas pelo acometimento por espíritos; é só como aõni que os xamãs podem fazê-lo.

DO REGIME DE COMUNICAÇÃO DOS ESPÍRITOS

O recurso dos Karajá a uma série de curadores além de seus próprios confere ao xamanismo inỹ uma característica ‘regional’, em analogia ao argumento de Pérez Gil (2010)Gil, L. P. (2010). Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um diálogo regional. In M. C. Souza & E. C. Lima (Orgs.), Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena (pp. 169-184). Athalaia. sobre os Yaminawa da Amazônia peruana. Ao lado de uma matriz xamânica própria, os Yaminawa recorrem à prática caracterizada pelo uso da ayahuasca e que tem o canto como elemento central. Esse xamanismo é regional, nos diz Pérez Gil, porque compartilhado por uma variedade de povos indígenas e não indígenas (dentre os quais os Yaminawa distinguem uma série de categorias). Marcado por uma relativa homogeneidade, ele contrasta com a diversidade humana da região. A autora evoca demonstração de Townsley de que o xamanismo desse povo conheceu um florescimento, e não uma decadência, frente à intensificação das relações com os não indígenas, e que isso se deveria à capacidade dos xamãs de estabelecer relações com o exterior. Pérez Gil (2010, p. 180)Gil, L. P. (2010). Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um diálogo regional. In M. C. Souza & E. C. Lima (Orgs.), Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena (pp. 169-184). Athalaia. argumenta, entretanto, que não se trata meramente disso: a produtividade do xamanismo “em termos sociológicos e cosmológicos deriva, me parece, de sua capacidade para se inserir em um diálogo inteligível”.

As diferenças entre os casos yaminawa e karajá – me refiro sobretudo ao fato de que não há, entre os últimos, uma matriz xamânica partilhada28 28 No caso ucayalino, isso se deve à particularidade da história da região (ver, por exemplo, Gow, 1994). Por outro lado, entre os Karajá, cuja história se caracteriza por um relativo isolamento na calha do Araguaia, há uma nítida diferenciação entre sua prática xamânica e a de outros povos, e a relação com os curadores não indígenas não se desdobra em trocas de conhecimentos entre aqueles e os xamãs inỹ. O que chama atenção, ao contrário, é a ‘homogeneidade’ da efetividade terapêutica, à revelia da heterogeneidade dos curadores. – se diluem, entretanto, quando notamos a diversidade de situações em que os itinerários terapêuticos indígenas em determinado ambiente regional são compostos por uma pluralidade de especialistas, e não apenas pelos xamãs de seu próprio povo (ver, por exemplo, Andrade & Sousa, 2016Andrade, J. T., & Sousa, C. K. S. (2016). Práticas indígenas de cura no Nordeste brasileiro: discutindo políticas públicas e intermedicalidade. Anuário Antropológico, 41(2), 179-202. https://doi.org/10.4000/aa.2581
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; Scopel et al., 2012Scopel, D. S., Dias-Scopel, R. P., & Wiik, F. B. (2012). Cosmologia e intermedicalidade: o campo religioso e a autoatenção às enfermidades entre os índios Munduruku do Amazonas, Brasil. Tempus: Actas de Saúde Coletiva, 6(1), 173-190. https://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/1141/1046
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; Chaumeil, 1992Chaumeil, J.-P. (1992). Varieties of Amazonian Shamanism. Diogenes, 40(158), 101-113. https://doi.org/10.1177/039219219204015809
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). Em áreas de intensa presença e resistência negra, como na Amazônia e no Nordeste, a questão, colocada nestes termos, se abre também para o que Goldman (2015Goldman, M. (2015). “Quinhentos anos de contato”: por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem. Mana, 21(3), 641-659. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p641
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, 2021)Goldman, M. (2021). ‘Nada é igual’: variações sobre a relação afro-indígena. Mana, 27(2), 1-39. https://doi.org/10.1590/1678-49442021v27n2a200
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chamou de relação afroindígena – o xamanismo dos povos do Nordeste, assim como a encantaria amazônica, são marcados por uma série de composições com práticas religiosas de matriz africana. Em meio a essa diversidade, o fato de que nem todas essas situações se fundam sobre uma matriz xamânica partilhada nos permite, acredito, radicalizar o argumento de Pérez Gil (2010)Gil, L. P. (2010). Praxes yaminawa e xamanismo ucayalino: notas de um diálogo regional. In M. C. Souza & E. C. Lima (Orgs.), Conhecimento e cultura: práticas de transformação no mundo indígena (pp. 169-184). Athalaia.. Pois é justamente a possibilidade de ‘diálogo inteligível’ que sustenta a efetividade terapêutica de curadores de origens diferentes. Mas o que permite esse diálogo não é uma espécie de ‘código comum’, historicamente desenvolvido. Não se trata de uma comunicação ‘simbólica’ ou ‘social’, nem tampouco humana: trata-se, em uma palavra, do regime de comunicação dos espíritos.

O xamanismo, como dizia, é uma linha de fuga por meio da qual o regime de comunicação universal do tempo primordial pode ainda se exprimir no mundo atual. A cura tanto quanto o adoecimento são mediações entre estes dois tempos-mundos, o atual das diferenças discretas e o primordial da diferença infinita. O feitiço induz o acometimento de uma pessoa humana por um aõni, o que só pode ser revertido pelo xamã-enquanto-aõni, dotado ele mesmo, nesta circunstância, de uma transparência absoluta. É xamã e pode curar, poderíamos dizer, quem é capaz de acessar esse regime de comunicação universal. A maneira como se é capaz de fazê-lo pouco importa frente a seu resultado: seja por meio da relação com um espírito auxiliar (os xamãs inỹ e de outros povos), por meio de conhecimentos derivados de religiões de matriz africana ou do espiritismo (os curandeiros regionais) ou clamando pela cura e pela proteção divinas (por intermédio da fé), é a capacidade de acessar o regime de comunicação dos espíritos que possibilita a prática terapêutica. É porque os Karajá estão com a atenção firmemente voltada para isso – algo que se mede por seus efeitos, isto é, na maneira em que o trabalho de um curador qualquer é capaz de recuperar a saúde de um parente doente –, que afirmam que todos estes são igualmente xamãs.

Eis a razão pela qual médicos não podem tratar feitiços. Mais no início do texto, fiz uma crítica à noção de “intermedicalidade” como um “espaço contextualizado de medicinas híbridas” (Greene, 1998Greene, S. (1998). The shaman’s needle: development, shamanic agency, and intermedicality in Aguaruna Lands, Peru. American Ethnologist, 25(4), 634-658. https://www.jstor.org/stable/645858
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, p. 641). Se não há articulação propriamente terapêutica entre xamanismo e biomedicina, o que poderia ser considerado ‘híbrido’ é, na melhor das hipóteses, o espaço de coexistência entre ambos, mas não ‘as medicinas’ em si29 29 Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho: “a relação entre a biomedicina e as curas tradicionais torna-se convergente quando ambas intentam sanar mazelas que acometem as crianças. Nesses casos, os índios procuram médicos considerando que os remédios industrializados receitados por esses especialistas possam findar os males que abatem certas crianças. Todavia, quando essas prescrições médicas não funcionam, os indígenas procuram imediatamente um curador da aldeia” (Andrade & Sousa, 2016, p. 194). Ora, que ‘convergência’ há nisso? A ‘hibridez’ aqui se resume à coexistência entre biomedicina e ‘curas tradicionais’, ao ‘espaço contextualizado’, como diz Greene (1998), espaço esse que é ele próprio o efeito da perspectiva sociomédica. . É no campo do xamanismo, como procurei mostrar, que pode haver articulação, na medida em que a prática xamânica se abre a, quando não se nutre de, composições com diferentes práticas de cura. Se a relação com a biomedicina implica quase sempre uma alternância excludente, as conexões do xamanismo com outras práticas de cura – passando do eixo da saúde para o da religião, por assim dizer – suscitam prontamente as imagens tão evocadas da ‘hibridez’ e do ‘sincretismo’.

As limitações desse par de conceitos vêm sendo exploradas pelas discussões recentes sobre mistura, antimestiçagem, contramestiçagem e contrassincretismo (Kelly, 2011Kelly, J. A. (2011). State healthcare and Yanomami transformations: a symmetrical ethnography. Arizona University Press., 2016; Goldman, 2015Goldman, M. (2015). “Quinhentos anos de contato”: por uma teoria etnográfica da (contra)mestiçagem. Mana, 21(3), 641-659. https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n3p641
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, 2021; Cusicanqui, 2010Cusicanqui, S. R. (2010). Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Tinta Limón., 2019Cusicanqui, S. R. (2019). Um mundo ch’ixi es possible: ensayos desde um presente em crisis. Tinta Limón.; Nunes, no preloNunes, E. S. (no prelo). No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura e transformação entre os Karajá de Buridina. Editora Elefante.). Mas há mais aqui do que o eterno problema da tentativa de purificação, a labiríntica busca por “isolar traços de culturas originais puras que teriam se mesclado” (Goldman, 2014Goldman, M. (2014). A relação afro-indígena. Cadernos de Campo, 23(23), 213-222. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v23i23p213-222
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, p. 217) e que, ao assumir as ‘origens históricas’ ou ‘diferenças culturais’ como dados a partir dos quais diferentes ‘sistemas religiosos’ se articulam, tende a fazer todo tipo de composição entre diferentes aparecer como um problema: a diferença original tomada como dada, é a composição que precisa ser explicada. O que o caso karajá mostra, ao contrário, é que, se há algo que necessita de explicação, é a diferença de origem. Sua mitologia conta em detalhes a origem dos inỹ e de outros povos, como (vale dizer, de quem) se adquiriu esse ou aquele elemento (ver Nunes, 2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].). E, como disse, essas diferenças são sistematicamente relembradas e explicitadas. Mas, no que diz respeito à ‘religião’, o evidente é que é xamã, e pode curar, quem é capaz de acessar o regime de comunicação dos espíritos.

Falar de ‘articulação’ entre o xamanismo e outras práticas de cura, portanto, é no máximo um atalho descritivo, pois isso pressuporia a existência prévia de ‘sistemas’ que passariam a se relacionar a posteriori. É evidente que o xamanismo karajá participa de um contexto sociocultural particular, e tem uma origem histórica diferente das religiões cristãs e de matriz africana das quais se desdobraram as práticas de cura não indígenas. Daí deriva o reconhecimento das diferenças entre o conjunto de conhecimentos, técnicas e procedimentos dos diversos xamãs, indígenas e não indígenas. Mas, na medida em que todas essas práticas atualizam o regime de transparência absoluta do tempo primordial, não se pode dizer que elas primeiro difiram, para depois se relacionar. O que estou afirmando, ao dizer isso, é que a questão é anterior e exterior às diferenças discretas que podem ser formuladas em termos ‘históricos’.

Trata-se, para dizer novamente, do regime de comunicação dos espíritos. É por isso, me parece, que as composições religiosas tenham sido sempre tão prolíferas. É igualmente por isso que, como notou Kelly (2016, p. 711)Kelly, J. A. (2016). Sobre a antimestiçagem. Cultura & Barbárie., “as demarcações dicotômicas ou bifurcações próprio/alheio parecem menos estruturantes” para a discussão sobre a relação afroindígena; pois, na imaginação conceitual desta – ao contrário daquela sobre a antimestiçagem, que lida com um regime de diferenças discretas (índios e brancos, xamanismo e medicina, discurso cerimonial e discurso político) –, as composições religiosas têm lugar fundamental, remetendo à diferença infinita própria do regime de comunicação dos espíritos. A diferença, em suma, é contextual e não substantiva; o que vale dizer, contextos diferentes de um mesmo caso etnográfico podem apresentar uma variação ou outra. Eis a razão pela qual os Karajá não dizem que os curandeiros não indígenas são ‘xamãs dos brancos’, da mesma forma como dizem, para voltar ao exemplo com o qual iniciei este texto, que o gás é a lenha dos brancos: eles são ‘xamãs brancos’, assim como há xamãs de outros povos, e assim como Xiburè-Deus é o maior dos xamãs. Em todos os outros contextos, discrimina-se sistematicamente entre o próprio e o alheio.

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    Os Karajá são um povo falante de uma língua macro-jê (Davis, 1968Davis, I. (1968). Some Macro-Jê relationships. International Journal of American Linguistics, 34(1), 42-47. https://doi.org/10.1086/464994
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    ). Assim como os Javaé e os Ixỹbiòwa, eles se autodesignam como Inỹ. Os três povos falam variantes de uma mesma língua, o inỹrybè, que apresenta uma diferenciação da fala pelo sexo do falante (ver Ribeiro, 2012Ribeiro, E. R. (2012). A grammar of Karajá [Tese de doutorado, University of Chicago].). As variantes feminina e masculina das palavras aparecem indicadas no texto por meio dos símbolos ♀ e ♂, respectivamente.
  • 2
    Ao colocar a questão dessa maneira, não estou sugerindo que as ‘doenças de branco’ seriam estrita ou meramente fisiológicas, o que implicaria rebater sua diferença para com as ‘doenças inỹ’ sobre o grande divisor entre matéria e espírito. O que quero sublinhar é apenas que, nesse caso, não há o reconhecimento de uma agência externa (um espírito, ou um feiticeiro) como causa do adoecimento; e que os inỹ estabelecem uma relação direta entre o consumo excessivo de álcool ou açúcar e problemas hepáticos ou diabetes, por exemplo – muito embora desenvolver melhor o ponto, evidentemente, necessitaria considerar esses adoecimentos a partir de sua noção de corpo, o que escapa ao propósito deste artigo.
  • 3
    Como já disse, as inỹ binana incluem também adoecimentos resultantes do acometimento direto por algum ‘espírito’, ou seja, sem a mediação de um feiticeiro. Como estes são em quantidade muito menor, vou tomar, por uma questão de economia textual, ‘doença de índio’ como sinônimo de feitiço.
  • 4
    A ideia não é recente. Em um recorte de jornal datado de 1969, encontramos a seguinte passagem: “Os médicos Coge Kinati e Gun Bergstein, da Escola Paulista de Medicina, estão tentando salvar uma índia carajá de dois meses, desidratada, que está internada no Hospital dos Índios da Ilha do Bananal. Se a indiazinha se salvar, será facilitado o trabalho de integração entre o hospital e os índios, que terão confiança nos médicos. Há um pouco de desconfiança, natural devido aos preconceitos, desde que morreu, lá, uma índia adulta. O pajé previu a morte da índia e isto despertou antigas e arraigadas crendices. Os Carajás acharam que foi o sôro do hospital de matou a moça” (“No Bananal, índios cantam...”, 1969).
  • 5
    O que reflete a diferença fundamental entre as etiologias indígenas e não indígenas, fazendo com que a noção de uma “complementaridade terapêutica” seja equívoca (Cardoso, 2004Cardoso, M. (2004). Políticas de saúde indígena e relações organizacionais de poder: reflexões decorrentes do caso do Alto-Xingu. In E. J. M. Langdon & L. Garnelo L. (Orgs.), Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa (pp. 159-174). Contra Capa Livraria/Associação Brasileira de Antropologia. http://www.aba.abant.org.br/files/5_00180776.pdf
    http://www.aba.abant.org.br/files/5_0018...
    , p. 165).
  • 6
    Cabe notar, entretanto, que há situações em que a controvérsia permanece aberta mesmo após o falecimento. Em um caso recente, a morte de uma mulher foi imputada pelos médicos a uma tuberculose. Em sua aldeia, essa explicação foi amplamente aceita. Mas seus parentes mantiveram as suspeitas de que ela foi vítima de feitiço por parte da família de um rapaz assassinado pelo filho da falecida uma década antes – evento que gerou uma dura cisão entre as duas parentelas e desencadeou uma série de retaliações ao longo dos anos. Relataram-me, por exemplo, que um jovem foi visto por algumas vezes, no fim da tarde, nos fundos de sua casa, fazendo o que identificaram como uma prática de feitiçaria aprendida com curandeiros não indígenas. “Diz que foi tuberculose, mas eu acho que foi feitiço. Não sei”, me disse um homem.
  • 7
    Falo de biomedicina em um sentido amplo, remetendo à matriz de conhecimentos que se atualiza em diferentes especialidades profissionais. O ponto é importante sobretudo porque as equipes de atenção à saúde indígena são multidisciplinares, envolvendo médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, nutricionistas e psicólogos, dentre outras especialidades, de modo que o encontro da biomedicina com o xamanismo (seja ele de que natureza for, colaborativa ou conflituosa) nem sempre é protagonizado por médicos.
  • 8
    Junto com o direito à saúde, para dizer de outro modo, vem a reboque uma compreensão muito específica, histórica e culturalmente localizada, do processo saúde-doença: aquela ancorada na ideia biomédica de corpo, que assume a doença (congênita ou adquirida) como derivada da estrutura ou do funcionamento do organismo. Nesse sentido, o reconhecimento da importância e da eficácia das ‘etnomedicinas’ frequentemente reverbera colateralmente em entendimentos culturalistas, ou mesmo folcloristas, das explicações indígenas sobre seus processos de adoecimento, o que faz com que as “diferenças culturais” apareçam simultaneamente como algo que deve ser valorizado e como uma barreira para a prática biomédica (ver Achatz, 2022Achatz, R. W. (2022). Cuidando e tomando cuidado. Avizinhando-se de situações de “suicídio” em comunidades hupd’äh [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. https://doi.org/10.11606/D.47.2022.tde-20032023-173122
    https://doi.org/10.11606/D.47.2022.tde-2...
    ). Do ponto de vista indígena, em contraste com essa concepção organicista, “a doença é uma relação” (Barcelos Neto, 2008, p. 56, grifo do autor), de modo que por trás de cada adoecimento há sempre um agente, via de regra não humano.
  • 9
    Me parece absolutamente opaca a ideia de que “os processos que fazem parte da relação saúde-cultura entre estes índios da selva amazônica [os Siona] são da mesma natureza dos que operam na nossa sociedade, apesar de existirem diferenças nas teorias etiológicas tanto quanto nas tecnologias e procedimentos terapêuticos” (Langdon, 1994Langdon, E. J. (1994). Representações de doença e itinerário terapêutico dos Siona da Amazônia colombiana. In R. V. Santos & C. E. A. Coimbra Jr. (Orgs.), Saúde e povos indígenas (pp. 115-141). FIOCRUZ. https://static.scielo.org/scielobooks/wqffx/pdf/santos-9788575412770.pdf
    https://static.scielo.org/scielobooks/wq...
    , p. 115). Se por isso se entende simplesmente que as ‘medicinas’ indígenas são sistemas culturais, a afirmação é tautológica. Se se considera, por outro lado, as diferenças entre etiologias, procedimentos e técnicas, a diferença é radical e ontológica; e a equiparação entre elas só pode ser operada por meio de uma redução perspectiva de uma medicina a outra – mais exatamente, uma redução do xamanismo ao problema da saúde pública.
  • 10
    Mesmo, note-se, nos termos de uma discussão voltada à saúde. É nesse sentido que Garnelo (2022, p. 302)Garnelo, L. (2022). Intermedicalidade, autoatenção e interfaces de sistemas de saberes sobre doença, cura e cuidados. In C. C. Teixeira, C. D. Silva & L. Garnelo (Orgs.), Saúde indígena em tempos de pandemia: movimentos indígenas e ações governamentais no Brasil (pp. 300-312). Mórula. http://ds.saudeindigena.icict.fiocruz.br/handle/bvs/7336
    http://ds.saudeindigena.icict.fiocruz.br...
    opta por falar em “sistemas de cura e cuidados”, em lugar de “medicinas indígenas”, “tendo em conta que a manutenção e/ou a recuperação da saúde é domínio que abrange campos muito mais amplos que o das práticas de cura”.
  • 11
    Não é por acaso, me parece, que o xamanismo foi historicamente traduzido sob essas duas perspectivas: se há, como vimos, toda uma literatura que o trata como um “sistema médico nativo”, em diferentes tradições de estudos – do evolucionismo à antropologia da religião, passando pela teoria clássica (veja-se, a título de exemplo, o ensaio bibliográfico de Evans-Pritchard (1965)Evans-Pritchard, E. E. (1965). Theories of primitive religion. Clarendon Press. –, o xamanismo foi caracterizado como “religião indígena”. As limitações das duas traduções são bastante similares.
  • 12
    Os espíritos auxiliares dos xamãs lhes apontam qual remédio devem utilizar no tratamento de determinado paciente. Nas palavras do finado xamã Hibederi, “os remédios, [sabemos] como em um sonho. Os remédios, ele [espírito auxiliar] os aponta para mim, os remédios, plantas. É verdade que existem remédios, plantas”. Os remédios também podem se revelar aos xamãs, cantando para eles quando estes vão ao mato (cf. Nunes, 2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]., pp. 277-278).
  • 13
    Essa abertura do xamanismo se manifesta na capacidade de promover ‘novas formas’ de cura a partir da experimentação analógica. Veja, por exemplo, a maneira como João Paulo Barreto qualifica os kumuã, especialistas de cura alto-rionegrinos, como “eternos pesquisadores” que “aplicam as fórmulas de bahsese [benzimentos] nas experiências cotidianas, no contato de novos casos de afecções que vão aparecendo e que exigem sempre uma releitura dos Kihti ukũse e das novas fórmulas de bahsese”, configurando uma prática orientada para a “experimentação” e para o “resultado satisfatório” (Barreto, 2021Barreto, J. P. L. (2021). Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro [Tese de doutorado, Universidade Federal do Amazonas]. https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/8289
    https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/828...
    , pp. 180-181).
  • 14
    Os aruanãs (ijasò, na língua vernácula) são entidades mascaradas que habitam os três patamares do cosmos. Tendo sua alma-imagem (tyytyby ♂) trazida pelos xamãs à aldeia, onde os homens fabricam réplicas das máscaras de palha que são seus corpos, eles cantam e dançam por meses em um ciclo ritual próprio. Cada aruanã é uma dupla de máscaras. Sobre os ijasò e seu ciclo ritual, ver Toral (1992)Toral, A. A. (1992). Cosmologia e sociedade Karajá [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro]. http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/tese%3Atoral-1992/cosmologia_e_sociedade_karaja.pdf
    http://etnolinguistica.wdfiles.com/local...
    , Pétesch (1992)Pétesch, N. (1992). La pirogue de sable: modes de représentations e d’organization d’une société du fleuve: les Karajá de l’Araguaia (Brésil central) [Tese de doutorado, Université de Paris X]., Rodrigues (1993Rodrigues, P. M. (1993). O povo do meio: tempo, cosmo e gênero entre os Javaé da Ilha do Bananal [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]., 2008)Rodrigues, P. M. (2008). A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história [Tese de doutorado, University of Chicago]. e Nunes (2016)Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]..
  • 15
    Assim como os regionais chamam figuras como o Curupira ou o Nego d’Água de ‘bicho’, remetendo não ao mundo animal, mas sim ao sobrenatural. É desse uso do termo pelos regionais, com efeito, que parece derivar a tradução dos Karajá para aõni.
  • 16
    A expressão nominal mais comum para se referir à alma-imagem, componente agentivo da pessoa, é tyytàby ♂, tàkytàby ♀, literalmente “pele/casca (tyy) velha (tàby)”. Nessa expressão, entretanto, assim como em contextos discursivos geralmente ligados ao ritual e ao xamanismo, a alma-imagem é referida apenas como tyy ♂, tàky ♀ (ver Nunes, 2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].). Sua qualificação como “velha” deriva do fato de que a alma-imagem da pessoa “já foi usada” por algum parente (Rodrigues, 1993Rodrigues, P. M. (1993). O povo do meio: tempo, cosmo e gênero entre os Javaé da Ilha do Bananal [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]., p. 82); isto é, a alma-imagem de um recém-nascido é o retorno de um ascendente falecido.
  • 17
    Presenciei apenas a segunda passagem da xamã kamayurá pela aldeia de Santa Isabel. O que sei de sua primeira visita devo a relatos tanto dos próprios Karajá quanto de alguns funcionários da SESAI-Brasília que acompanharam a ação.
  • 18
    Tratamento entre aspas, pois esse não é o termo em geral utilizado pelos não indígenas que procuram esses curandeiros. ‘Rezar’ ou ‘benzer’ são os verbos mais comumente empregados. Os Karajá, por seu turno, costumam se referir a suas visitas a essas pessoas da mesma maneira que às visitas de um xamã karajá à casa do doente: que vão até lá para ‘tirar feitiço’. A própria palavra ‘curandeiros’ é utilizada aqui na falta de termo melhor, muito no intuito de marcar uma distinção para com os xamãs (curadores ou feiticeiros) – que será delineada mais abaixo. Uma descrição mais detalhada da maneira como as pessoas indígenas e não indígenas se referem aos diferentes curadores poderia ser proveitosa, mas fugiria aos propósitos deste artigo.
  • 19
    Ela se refere aos braceletes e jarreteiras fabricados com barbante industrializado (em substituição ao algodão fiado, antes utilizado) que compõem a ornamentação ritual inỹ – dexi, woudexi ♂, deobutè ♂ e wàlairi.
  • 20
    Outros casos etnográficos indicam um trânsito semelhante entre xamanismo e religiões cristãs. Veja-se, por exemplo, a aproximação que os Potiguary do Ceará estabelecem entre suas próprias práticas de cura e as igrejas evangélicas, no sentido de que ambas lidam, apesar das diferenças de método, com ‘problemas espirituais’: nas palavras de um curador, “as igrejas evangélicas vieram para nossa aldeia. Entre eles, ficar curado não é muito usando plantas medicinais, mas é uma questão espiritual. Qualquer um que enfrente problemas espirituais vai para uma igreja evangélica” (Andrade & Sousa, 2016Andrade, J. T., & Sousa, C. K. S. (2016). Práticas indígenas de cura no Nordeste brasileiro: discutindo políticas públicas e intermedicalidade. Anuário Antropológico, 41(2), 179-202. https://doi.org/10.4000/aa.2581
    https://doi.org/10.4000/aa.2581...
    , p. 195). No sentido inverso, mas indicando o mesmo tipo de trânsito, veja-se também a afirmação de um jovem kawaiwete de que “o pastor pode jogar praga naqueles que param de frequentar a igreja. Ou seja, segundo o indígena, o pastor possui o poder de adoecer pessoas” (Assumpção, 2014Assumpção, K. (2014). Negociando curas: um estudo das relações entre profissionais de saúde não-indígena e indígenas no Projeto Xingu [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Paulo]. https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/41782
    https://repositorio.unifesp.br/handle/11...
    , p. 85).
  • 21
    Uma utopia, a seu modo, similar àquela dos Wari’ que, quando de sua primeira conversão ao protestantismo, desejavam experimentar uma vida sem afins (Vilaça, 1996Vilaça, A. (1996). Cristãos sem fé: alguns aspectos da conversão dos Wari (Pakaa Nova). Mana, 2(1), 109-137. http://www.etnolinguistica.org/biblio:vilaca-1996-cristaos
    http://www.etnolinguistica.org/biblio:vi...
    ). Não há vida neste chão sem a feitiçaria pois, como um homem me disse certa vez, “o feitiço existe desde que o mundo é mundo”.
  • 22
    Ver também o caso kaxinawá. Falando sobre algumas das personagens da mitologia desse povo, Cecilia McCallum (2002, p. 389)Mccallum, C. (2002). Incas e Nawas. Produção, transformação e transcendência na história Kaxinawá. In B. Albert & A. R. Ramos (Orgs.), Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico (pp. 375-401). Editora UNESP; Imprensa Oficial do Estado. afirma que “alguns, como o saudoso Moico, dizem que o Inca primordial é o Deus cristão. Jesus Cristo seria uma outra figura ancestral, Yubenauabuxka, cuja cabeça subiu para aos céus e se transformou na lua”.
  • 23
    Essas são duas das histórias inỹ mais bem conhecidas e documentadas. Sobre a saída do Fundo do Rio, ver Nunes (2016, pp. 553-556)Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]., Pétesch (1992, p. 445)Pétesch, N. (1992). La pirogue de sable: modes de représentations e d’organization d’une société du fleuve: les Karajá de l’Araguaia (Brésil central) [Tese de doutorado, Université de Paris X]., Rodrigues (2008, p. 77)Rodrigues, P. M. (2008). A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história [Tese de doutorado, University of Chicago]. e Pimentel da Silva e Rocha (2006, pp. 102-108)Pimentel da Silva, M. S., & Rocha, L. M. (Orgs.). (2006). Linguagem especializada: mitologia Karajá. Editora da UCG.; sobre a segunda, conhecida como inỹ wèbòhòna, ver Nunes (2016, pp. 546-553)Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]., Rodrigues (1993Rodrigues, P. M. (1993). O povo do meio: tempo, cosmo e gênero entre os Javaé da Ilha do Bananal [Dissertação de mestrado, Universidade de Brasília]., pp. 273-274; 2008Rodrigues, P. M. (2008). A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história [Tese de doutorado, University of Chicago]., pp. 578-579), Pimentel da Silva e Rocha (2006, p. 85)Pimentel da Silva, M. S., & Rocha, L. M. (Orgs.). (2006). Linguagem especializada: mitologia Karajá. Editora da UCG. e Donahue (1978)Donahue, G. (1978). O mito Karajá dos dois poderosos e dos dois periquitos. Publicações do Museu Municipal de Paulínia, (6), 1-4. http://www.etnolinguistica.org/biblio:donahue-1978-mito
    http://www.etnolinguistica.org/biblio:do...
    .
  • 24
    Há ainda um terceiro tempo, o “tempo do pessoal de hoje” (wijina bòdu mahãdu bàdeu ♂), marcado pela vida juntos aos brancos, sobre o qual não cabe entrar em detalhes aqui. Para uma caracterização mais detalhada sobre a diferença entre esses três tempos, ver Nunes (2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]., 2022)Nunes, E. S. (2022). A cultura dos mitos: do regime de historicidade karajá e sua potência “fria”. Revista de Antropologia, 65(1), e192801. https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.192801
    https://doi.org/10.11606/1678-9857.ra.20...
    .
  • 25
    Ver íntegra da narrativa em Nunes (2016, pp. 526-539)Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]..
  • 26
    Isỹru é um termo antigo (hỹỹna ♂ rybè, ‘palavra dos antigos’) para o qual não há equivalente exato na linguagem atual.
  • 27
    Em relação às pessoas comuns, poderíamos também mencionar os sonhos. Pois, quando se dorme, a alma-imagem (tyytàby) sai do corpo e anda, e suas aventuras podem ser transparentes, por assim dizer, a seu dono por meio de seus sonhos. Em certo sentido, portanto, os xamãs diferem dos comuns apenas em grau, pois aqueles especialistas controlam os vagares de sua alma-imagem.
  • 28
    No caso ucayalino, isso se deve à particularidade da história da região (ver, por exemplo, Gow, 1994Gow, P. (1994). River people: Shamanism and history in Western Amazonia. In N. Thomas & C. Humphrey (Orgs.), Shamanism, history and the state (pp. 99-113). University of Michigan Press.). Por outro lado, entre os Karajá, cuja história se caracteriza por um relativo isolamento na calha do Araguaia, há uma nítida diferenciação entre sua prática xamânica e a de outros povos, e a relação com os curadores não indígenas não se desdobra em trocas de conhecimentos entre aqueles e os xamãs inỹ. O que chama atenção, ao contrário, é a ‘homogeneidade’ da efetividade terapêutica, à revelia da heterogeneidade dos curadores.
  • 29
    Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho: “a relação entre a biomedicina e as curas tradicionais torna-se convergente quando ambas intentam sanar mazelas que acometem as crianças. Nesses casos, os índios procuram médicos considerando que os remédios industrializados receitados por esses especialistas possam findar os males que abatem certas crianças. Todavia, quando essas prescrições médicas não funcionam, os indígenas procuram imediatamente um curador da aldeia” (Andrade & Sousa, 2016Andrade, J. T., & Sousa, C. K. S. (2016). Práticas indígenas de cura no Nordeste brasileiro: discutindo políticas públicas e intermedicalidade. Anuário Antropológico, 41(2), 179-202. https://doi.org/10.4000/aa.2581
    https://doi.org/10.4000/aa.2581...
    , p. 194). Ora, que ‘convergência’ há nisso? A ‘hibridez’ aqui se resume à coexistência entre biomedicina e ‘curas tradicionais’, ao ‘espaço contextualizado’, como diz Greene (1998)Greene, S. (1998). The shaman’s needle: development, shamanic agency, and intermedicality in Aguaruna Lands, Peru. American Ethnologist, 25(4), 634-658. https://www.jstor.org/stable/645858
    https://www.jstor.org/stable/645858...
    , espaço esse que é ele próprio o efeito da perspectiva sociomédica.

AGRADECIMENTOS

Este artigo agrega materiais presentes nos capítulos dois e quatro de minha tese de doutorado (Nunes, 2016Nunes, E. S. (2016). Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos [Tese de doutorado, Universidade de Brasília].), financiada por bolsa e taxa de bancada do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), complementados por pesquisa de campo posterior, realizadas com recursos próprios. O argumento central, que se encontra lá esboçado, foi aqui consideravelmente desenvolvido. Agradeço a Rafaela Achatz, Valéria Macedo e Marcio Goldman pela leitura e pelos comentários à versão preliminar do artigo, embora deva reconhecer que não pude resolver muitas das questões que me colocaram, permanecendo para mim como valiosos apontamentos sobre algumas das limitações do exercício a que me propus.

  • Nunes, E. S. (2024). O Mal está neste chão: sobre as composições nas práticas de cura karajá e o regime de comunicação dos espíritos. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 19(1), e20230027. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2023-0027.

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Editado por

Responsabilidade editorial: Priscila Faulhaber Barbosa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2023
  • Aceito
    25 Ago 2023
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