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Laboratório, espetáculo, desmontagem: experimentos teatro[dia]lógicos do Carmen Group em A serpente, de Nelson Rodrigues

RESUMO

Nas fronteiras entre teatrologia e dialogismo, o presente artigo propõe reflexões sobre o processo de encenação do texto A serpente, de Nelson Rodrigues, nos anos de 2017 e 2018 pelo Carmen Group - Centro de Treinamento em Corpo, Arte, Movimento e Encenação. A partir de uma perspectiva que relata e, ao mesmo tempo, analisa etapas de criação cênica, o texto dialoga com a teoria bakhtiniana, buscando compreender aspectos constitutivos de três experimentos teatro[dia]lógicos: a mostra do trabalho laboratorial do grupo, denominada Serpentes de laboratório, a montagem de A Serpente em seu formato de Espetáculo e a sessão de Desmontagem Cênica. Os resultados sinalizam, para além das especificidades teóricas, técnicas e metodológicas características de cada um dos experimentos, aspectos relacionados à autoria, recepção e significação nas diferentes situações de comunicação teatral vivenciadas.

PALAVRAS-CHAVE:
Encenação; A serpente; Teatrologia; Dialogismo

ABSTRACT

On the border between theater and dialogism, this article proposes reflections on the process of staging A Serpente, by Nelson Rodrigues in 2017 and 2018 by the Carmen Group - Body, Art, Movement and Staging Training Center. From a perspective that reports and analyzes at the same time steps of scenic creation, the text dialogues with the Bakhtinian theory, seeking to understand the constitutive aspects of three dialogical-theatrical experiments: the group's laboratory work, called Serpentes de laboratório, the assembly of A Serpente [The Serpent]in its Show format and the session of Disassembly Scenic. In addition to the theoretical, technical and methodological specificities of each one of the experiments, results signal aspects concerning authorship, reception and significance of the different situations of theatrical communication experienced by the group.

KEYWORDS:
Staging; A Serpente; Theater theory; Dialogism

Quando o encenador está diante de uma obra dramática o seu papel não é dizer: “O que eu vou fazer com isso?”; o seu papel é dizer: O que ela vai fazer de mim? Jacques Copeau, 19201 1 COPEAU (2013, p.153)

Introdução

A peça em um ato A serpente, escrita por Nelson Rodrigues em 1978 (RODRIGUES, 2013RODRIGUES, N. A serpente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.), dispensa apresentações por se constituir obra-prima do teatro brasileiro da segunda metade do século XX. As inúmeras montagens e versões para o palco podem facilmente ser consultadas e constatadas por pesquisadores interessados na questão, assim como o texto na íntegra, publicado por diferentes editoras e com acessos gratuitos on-line.

O objetivo do presente artigo é propor reflexões [bakhtinianas] sobre o processo de encenação (Laboratório, Espetáculo e Desmontagem) de A serpente nos anos de 2017 e 2018 pelo Carmen Group (Centro de Treinamento em Corpo, Arte, Movimento e Encenação), atualmente sob minha responsabilidade artística, na Universidade Federal do Paraná. O grupo é constituído por alunos da graduação em Produção Cênica e do Programa de Pós-Graduação em Educação, ambos os cursos ofertados por esta universidade, assumindo um fluxo de participantes não fixos, que entram e saem do grupo a partir de seus desejos de pesquisa e/ou demandas de ordem pessoal.

Os encontros dos participantes do grupo acontecem semanalmente, dentro do espaço de disciplinas optativas por mim ofertadas, que tenham seu direcionamento para questões que interessam à criação cênica, seja pelo foco em aspectos relativos à dramaturgia do corpo e do ator, ou por centralizar seu escopo nos fundamentos de interpretação e/ou direção teatral. Sem abrir mão dos conteúdos e da relação com o conhecimento em teatro, as disciplinas optativas de caráter prático que integram o projeto Carmen Group (laboratórios experimentais e avançados), propiciam aos estudantes de graduação o contato com os processos de montagem de espetáculos na universidade, tema ao qual me dedico desde que iniciei minha trajetória acadêmica2 2 Ver Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo], publicado na Coleção Teatro, série Pedagogia do Teatro, da Editora Hucitec. (GONÇALVES, 2019). .

Para cumprir com o objetivo proposto, o ensaio relata e analisa o processo criativo vivenciado pelo grupo, tomando como caso particular três experimentos teatro[dia]lógicos. O primeiro foi a mostra do trabalho laboratorial denominado Serpentes de laboratório, apresentado em duas sessões no auditório do Setor de Educação Profissional e Tecnológica (SEPT-UFPR), tendo como público-alvo alunos da graduação em Produção Cênica e do Mestrado em Educação em julho de 2017. O segundo foi a participação do grupo, com a Montagem de A serpente (em seu formato de Espetáculo), na Mostra de Teatro Universitário do Festival de Teatro de Curitiba, em duas sessões para público diverso, em março de 2018. O terceiro foi uma apresentação na qual o grupo assumiu o formato de Desmontagem Cênica: A serpente - Desmontagem, realizada em junho de 2018 no Teatro Experimental da UFPR, no âmbito do evento Outras palavras - Dramaturgias Contemporâneas, promovido pelo Núcleo Criativo PalavrAção - Pró Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC-UFPR).

A escolha do termo experimento ao invés de experiência não denota valoração do caráter semântico de uma palavra em detrimento de outra, mas sinaliza o fato de que todo o processo de encenação de A serpente é constituído de três momentos devidamente situados - Laboratório, Espetáculo, Desmontagem - cada um deles com características e especificidades próprias a serem investigadas, que se traduzem, portanto, em experimentos, também alocados e contextualizados, que integram e carregam em si a própria experiência3 3 Para maior aprofundamento nas questões referentes aos termos experimento e experiência na educação, ver o artigo “Currículo, experimento e experiência: contribuições da Educação em Ciências”, de Ferraro (2017). . Os experimentos, relatados e analisados neste artigo, são considerados como teatro[dia]lógicos, por abrigarem, ao mesmo tempo, a teatrologia - estudo investigativo de teorias e estéticas do teatro - e o dialogismo - perspectiva bakhtiniana de estudo do diálogo em diferentes esferas de atividade humana.

A partir do relato e análise dos três experimentos teatro[dia]lógicos - Laboratório - Espetáculo - Desmontagem, busco compreender os sentidos do fazer teatral no contexto universitário, especialmente quando relacionados a uma pesquisa cênica assumidamente amadora e antiprofissional (COPEAU, 2013COPEAU, J. Apelos. Apresentação e tradução de José Ronaldo Faleiro. São Paulo: Perspectiva, 2013.), que não aceita apenas colocar diante do público um espetáculo pronto e finito. Mais do que isso, a pesquisa teatral universitária do Carmen Group encontra na imprevisibilidade e na incerteza de processos criativos caóticos e não convencionais, as cápsulas motivacionais que justificam a própria existência do teatro em esferas educacionais nos tempos contemporâneos - uma existência que resiste e sobrevive graças à sua negação aos formatos prontos e seguros, que, em última instância, podem significar e aceitar o marasmo e o conformismo, adjacências que não podem coincidir com o fazer teatral nos tempos atuais.

Serpentes de laboratório

A noção de laboratório é muito bem articulada por Schino (2012)SCHINO, M. Alquimistas do palco: os laboratórios teatrais na Europa. Trad. Maria Clara Cescato e Anita K Guimarães. São Paulo: Perspectiva, 2012. em seu aprofundado estudo sobre os laboratórios teatrais na Europa. A autora defende a noção de laboratório em sua aproximação com o termo russo studinnost, em uma referência direta ao estúdio como lugar de aprendizado. Os estúdios cênicos se caracterizaram como estopim de diversas estéticas e possibilidades, advindas de pesquisa pura e interessada nos processos orgânicos de criação e não somente na montagem de espetáculos. É nessa perspectiva que os integrantes do Carmen Group apoiam seus projetos cênicos, que consistem muito mais em olhar e conhecer seus corpos-autores do que em transformar esses corpos em cena apresentável. Os encontros/ensaios se constituem, desse modo, como um lugar de cruzamentos teórico-práticos que privilegiam o auto-envolvimento nas situações artístico-pedagógicas coabitadas por seus participantes enquanto se dedicam e se doam ao processo criativo.

Para além do interesse pela montagem de um espetáculo, o olhar para o que estes alunos-atores querem dizer da/na relação com seus corpos, desejos e identidades motiva diferentes arranjos e estados performáticos, traduzidos por entrelaces de partituras, textos e diferentes materialidades produtoras de sentido.

A noção de treinamento também interessa aos processos do grupo, já que é pela perspectiva de um training físico-expressivo que se torna possível o desenvolvimento de novos comportamentos, “novos modelos para se mover, agir, escutar, reagir que não devem ser simplesmente repetidos e copiados, mas que vão atingir o artista em seu ser mais íntimo” (PICON-VALLIN, 2008PICON-VALLIN, B. A cena em ensaios. Seleção e organização de Béatrice Picon-Vallin e Fátima Saadi. Trad. Fátima Saadi, Cláudia Fares e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008., p.69).

Aliar a aula de teatro às expectativas de um laboratório cênico é um dos aspectos que tem constituído minhas disciplinas na graduação em Produção Cênica da UFPR. Mais do que o peso axiológico da palavra laboratório, que tais disciplinas carregam em suas nomenclaturas, elas convergem, em seu escopo de infinitas possibilidades, para a investigação laboratorial das relações entre corpo, arte, movimento e encenação, ou seja, para além do interesse pela criação de um espetáculo, os alunos são instigados a se envolverem em diversas pesquisas de atuação, treinamento, estudos das subjetividades e outros elementos avizinhados das artes cênicas.

O espaço de sala de aula, quando assumido como laboratório é, portanto, reconfigurado, e ganha uma dimensão cronotópica, ao se situar na relação entre tempo e lugar. Em estudo anterior (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019.), quando discuti a sala de aula como sala de ensaios, tornou-se importante enfatizar que, mesmo concebida, de forma sinérgica, como laboratório, a aula de teatro carrega em si marcas dos processos de escolarização, tais como: autoridade docente, imaginários sociais nas relações entre professor e aluno e características físicas na distribuição de mobílias que alteram os modos de compartilhar e partilhar o espaço.

Mesmo que um laboratório teatral não possua carteiras e cadeiras distribuídas em fileiras ou em círculo, ele possui lugares de fala, que acabam se configurando também espacialmente. Mesmo que um professor-diretor faça todo o esforço para relacionar-se de forma participativa e integrada aos alunos-atores, ele não se livra tão facilmente do imaginário de professor e de sua voz (da qual se espera uma palavra de autoridade - autoritária ou interiormente persuasiva) (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. [1930-40] [1934-36]).

O trabalho para A serpente foi, desse modo, idealizado por mim, em acordo com os acadêmicos discentes, em uma perspectiva laboratorial. Como os alunos da graduação em questão não têm, ao menos academicamente, a pretensão de tornarem-se atores profissionais, não havia, inicialmente, nem mesmo a expectativa de apresentação de um espetáculo. A “missão” que assumimos no primeiro semestre de 2017 estava muito mais vinculada à realização de exercícios cênicos a partir do texto do que de tornar o experimento um produto/uma obra.

Foram realizados diferentes exercícios cênicos, dos quais uma descrição minuciosa não caberia nas páginas deste artigo. Ancorados teoricamente em diferentes correntes estéticas e perspectivas de pedagogia teatral, os jogos, situações e vivências iam, aos poucos, se tornando uma espécie de algo passível de apresentação. Mas todos nós, professor-diretor e alunos-atores, sabíamos que não tínhamos nas mãos o espetáculo A serpente, de Nelson Rodrigues e, sim, alguns estudos de personagem (ações, partituras e jogos textuais) esboçados de forma bastante rascunhada e opaca.

Mesmo assim, decidi desafiar o grupo a apresentar estes esboços, ao fim do semestre, em duas sessões para público fechado (uma para alunos calouros da graduação em Produção Cênica e outra para alunos de uma turma do Mestrado em Educação, também da UFPR). O trabalho intitulou-se Serpentes de laboratório. Investimos, nesse momento, em mostrar fragmentos laboratoriais que nos ajudaram a conhecer melhor duas personagens do texto: Lígia e Guida, irmãs que se veem envoltas em uma tragédia familiar. A escolha do nome Serpentes de laboratório fazia alusão ao texto - A serpente - ao mesmo tempo em que nos protegia de uma vinculação direta com a obra, por anunciar em seu título o caráter investigativo da apresentação.

Importa discutir, a partir de Volóchinov (2017 [1929])VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929], que a palavra só ganha significação quando posta em interação, o que corrobora para a diluição de qualquer projeto neutro de discurso, ou seja, as palavras serpente e laboratório, quando imersas no contexto do título da mostra de um processo cênico, ficam repletas de outro(s) sentido(s), distintos de seus pontos de partida (a obra de Nelson Rodrigues e a sala de aula de teatro, respectivamente).

Destaco, por exemplo, a informação sígnica abarcada pelo título escolhido, de que o trabalho está em seu formato processual e em construção - as serpentes ainda estão no laboratório. A discussão da noção de palavra está, portanto, para os estudos teatrais, mais do que apenas aliada ao sentido do texto, devendo mediar todos os aspectos a serem considerados quando se fala em discurso teatral em sua forma expandida, ou seja, o estudo da palavra, no teatro, não pode reduzir-se ao estudo do texto teatral, fato corriqueiro e histórico, especialmente nas pesquisas que se interessam pela relação entre discurso e teatro4 4 Sobre uma perspectiva dialógica de abordagem do discurso teatral, ver o artigo Circo Negro: o discurso teatral em perspectiva dialógica, que escrevi para o livro Dialogismo: Teoria e(m) prática, organizado por Beth Brait e Anderson Salvaterra Magalhães (GONÇALVES, 2014, 267-279). .

Entramos, eu e os alunos-atores, em um acordo de que a apresentação de Serpentes de laboratório não deveria mostrar fragmentos do trabalho desenvolvido sem antes informar ao público sobre o contexto da dramaturgia rodrigueana. A nosso ver (limitado e, em um primeiro momento, desavisado), não faria o menor sentido para a plateia convidada ter de lidar com a ausência da narrativa dramática do texto. Na tentativa de situar o espectador nestas sessões especiais, fizemos um flyer de divulgação5 5 Todas as imagens (arte e fotografias) que compõem este artigo são de autoria de Fernanda Caron Kogin, Produtora, Designer Visual e Performer do Carmen Group. contendo, no verso, uma sinopse que revelava aspectos e situações do desfecho da peça. Sinopse esta que, além de constituir o cartaz, era lida antes da entrada do público.

Figura 1
Flyer: Serpentes de laboratório - Frente

Figura 2
Flyer: Serpentes de laboratório - Verso6 6 Trecho transcrito do texto A serpente, de Nelson Rodrigues.

Hoje, retomando as particularidades do experimento, é possível afirmar que o espectador não precisava ter ciência da linearidade dos acontecimentos do texto. Ao tentar informá-lo a respeito dos acontecimentos e de sua linearidade, o grupo menosprezou a capacidade de compreensão do público, que inclui, segundo Bakhtin (2017a [1959])BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017a, p.57-80. [1959], seus próprios elementos valorativos e seus próprios graus de profundidade e universalidade (p.63).

No bate-papo de encerramento de uma das sessões, um espectador nos alertou sobre este fato, afirmando que teria se envolvido mais com o processo se não tivesse o acesso à sinopse em momento anterior. Cabe aqui retomar a noção de compreensão, amplamente discutida pelo círculo bakhtiniano, aliada aos elementos valorativos e à inserção em contextos dialógicos específicos - compreender implica entrar no jogo discursivo-enunciativo de forma ativa e lançar-se em uma arena de vozes que perguntam e respondem o tempo todo. Mesmo que o espectador não tivesse acesso à sinopse informativa da obra A serpente, de Nelson Rodrigues, ele teria condições de aderir ao projeto artístico comunicativo do grupo - estaria privado de alguns elementos de linearidade textual, mas aberto a relacionar-se com o exercício laboratorial com todas as possibilidades de significação e produção de sentido aí envolvidas.

Destaco, ainda, que não ousamos, ao mostrar fragmentos do laboratório, trabalhar com um flyer composto de imagens do processo. Nivelados, ainda, por uma densa camada de insegurança com relação ao que havíamos feito em sala de aula e, agora, decidíamos tornar público, a divulgação restringiu-se a um cartaz “quase” branco, no qual uma renda mais clara tornava-se visível e fazia, ao mesmo tempo, um nó remissivo com a ideia de casamento e vestido de noiva - o que dialogava diretamente com a obra de Nelson Rodrigues, para quem a personagem noiva foi sempre pano de fundo de uma tragédia anunciada.

Aqui, é possível um diálogo com a proposição de uma filosofia do signo ideológico, postulada por Volóchinov (2017 [1929])VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. [1929], em Marxismo e filosofia da linguagem. Ao falar de uma ciência das ideologias, o autor explicitou que o signo constitui a materialidade real da ideologia, o que alia o estudo da interação discursiva, necessariamente, às esferas de produção discursiva e aos fenômenos teórico-práticos aí envolvidos.

A realização das sessões de Serpentes de laboratório encorajou o grupo a continuar, no semestre seguinte (2017/II), com a investigação das personagens, do texto, das partituras corporais, dos treinamentos de atuação. Durante o segundo semestre foram realizadas algumas apresentações, já no formato de espetáculo, tendo como público-alvo professores e artistas em formação, sempre vinculados à universidade ou a outros contextos educacionais.

A serpente - O espetáculo

O convite para a apresentação do espetáculo no Festival de Teatro de Curitiba, no âmbito da Mostra de Teatro Universitário, em março de 2018, foi um divisor de águas do processo. O grupo foi levado ao necessário enfrentamento de uma experiência ainda não vivenciada com A serpente: apresentar o espetáculo em um teatro, no centro de Curitiba, para público externo (lembro que as sessões anteriores eram sempre fechadas para públicos vinculados a contextos específicos) e diversificado: não tínhamos como prever como seria a nossa relação com um espectador desconhecido.

A previsão de antecipação da resposta do público era, agora, um dado obscuro, sem acessos que pudessem antever, de alguma forma, quaisquer aspectos de uma comunicação que estava prestes a acontecer. Nas experiências anteriores esta antecipação era minimamente previsível, pois as esferas nas quais nos apresentávamos carregavam marcas identitárias significativas no que tange aos sujeitos que delas faziam parte.

A antecipação da resposta do outro é um tema de discussão da obra bakhtiniana, e se configura como noção que sempre remonta à noção de enunciado concreto. Enuncio para alguém, e na transposição deste ato enunciativo-discursivo ao outro é que reside o potencial de sentidos: quem está falando e para quem? (BAKHTIN, 2017bBAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b, p.21-56. [1970-71] [1970-71]). Na infinita possibilidade de sentidos é que se dá a atualização das perguntas e respostas (perguntas e perguntas / respostas e repostas) que constituem um evento interacional - no caso presente, o espetáculo.

A não previsibilidade do discurso do outro (do público) exige, agora, que o grupo delimite o quê, exatamente, quer comunicar enquanto obra (A serpente - revisitada, atualizada, repleta de outras autorias junto ao texto homônimo de Nelson Rodrigues), de modo que as palavras-álibi anteriormente utilizadas (procedimentos processuais/construção/laboratório) já não fariam sentido diante do compromisso ora firmado com o festival.

Uma das tarefas mais insistentemente difíceis do processo de encenação de A serpente foi a delimitação de seu acabamento enquanto obra artística que chega diante do público, agora, com outra assinatura - a nossa. A responsabilidade assumida é gratificante e, ao mesmo tempo, rodeada de riscos relacionados aos gostos particulares, à crítica especializada e ao que se espera de uma montagem rodrigueana por universitários em 2018.

A obra em sua mise-en-scène, sempre efêmera, embora geograficamente localizada é, já, um produto ideológico distinto de seu ponto de partida - o texto teatral. Se retomada a discussão sobre a ciência das ideologias, de Medviédev (2012 [1928])MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012. [1928], é possível afirmar que, enquanto espetáculo, diante do público, A serpente, do Carmen Group, é uma obra preenchida pelo conteúdo ideológico de todo um processo criativo, vivido por alunos-atores e professor-diretor, que contém e carrega os materiais sígnicos do próprio processo e de sua comunicação em uma determinada situação de coletividade. É por isso que nossa preocupação, enquanto grupo, com as ressonâncias desta experiência, aliava tanto o discurso amedrontador de encarar uma montagem de Nelson Rodrigues quanto a obsessão por uma resistência ainda possível nos modos de encenação contemporâneos - dar aos textos teatrais nossos tons, nossos olhares, nossa voz.

Diferentemente da divulgação de Serpentes de laboratório, tínhamos, para o festival, uma série de flyers com fotos do espetáculo, o que anunciava, de certo modo, uma relação um tanto mais ciente das escolhas estéticas, especialmente visuais, que passavam a tonalizar o espetáculo. Pavis (2015)PAVIS, P. A análise dos espetáculos. Trad. Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo: Perspectiva, 2015., em suas sugestões por uma perspectiva de análise dos espetáculos que dialoga, de várias formas, com pressupostos defendidos pelos estudos bakhtinianos, define a encenação como um conjunto de justaposição de sons, ruídos, imagens e corpos que, juntos, são percebidos pelo espectador como totalidades temporais manifestadas enquanto signos cênicos e abrigam, no ato da comunicação, a coerência que pode possibilitar o sentido.

Figura 3
Flyer: A serpente

Figura 4
Flyer: A serpente

As apresentações do espetáculo no Festival de Curitiba no âmbito de uma Mostra Universitária ofereceram, especialmente aos integrantes do projeto, uma vivência prática que permitiu, mais do que a oportunidade de apresentação do trabalho em sua forma finalizada a um público imprevisível, o contato com um tipo de produção teatral experienciada por companhias profissionais, nos mais variados aspectos que estão em jogo quando um projeto de montagem cênica chega ao palco.

Para Azevedo (2016)AZEVEDO, S. Campo feito de sonhos: os teatros do SESI. São Paulo: Perspectiva, 2016., um bom espetáculo precisa sair da caixa-preta, da ribalta, e ter seu ápice em uma espécie de comunhão. É como se os artistas pudessem levar o público, pela mão, ao seu ateliê, ao seu quintal, e juntos conseguissem partilhar das descobertas da criação cênica, dos caminhos, das tramas da criação. Nas duas sessões realizadas no Festival de Curitiba, fizemos a tentativa de propiciar ao público este lugar de comunhão, o de encontrar-se com a obra de Nelson Rodrigues a partir da nossa perspectiva de investigação.

Figura 5
Flyer: A serpente

Figura 6
Flyer: A serpente

Não saímos desta experiência com certezas a respeito da qualidade técnica do espetáculo. Não obtivemos uma resposta, apenas, e sim, impressões do público nas rodas de conversa realizadas ao fim das sessões: sugestões, elogios, inquietações e situações imprevistas, como, por exemplo, o questionamento de um espectador nos interrogando sobre qual seria o tema da peça. Nós nos deparamos, ainda, com perguntas sobre o porquê de montar uma obra rodrigueana em 2018, ou mesmo indagações a respeito da nossa escolha pela não fidelidade à linearidade da narrativa do autor.

Todas essas questões nos levam a pensar no conceito bakhtiniano de autoria, que implica mais do que identificar quem são os autores de uma obra, compreender como se dá o processo de constituição e diálogo com texto em meio a várias vozes que se entrecruzam nas tramas do discurso, nas quais a palavra (minha e do outro) situa-se fronteiriçamente no desenvolvimento de uma tensa luta dialógica (BAKHTIN, 2017bBAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b, p.21-56. [1970-71] [1970-71]).

A aproximação do pensamento bakhtinano com o funcionamento da autoria no campo do teatro pode ser verificada na proposição do “novo método”7 7 Ver o excelente artigo O “novo método” de Stanislávski segundo seu último texto: “Abordagem à criação do papel, descoberta de si mesmo no papel e o papel em si mesmo”, de Elena Vássina (2015). , de Stanislávski, por meio do qual o diretor russo rejeita, por exemplo, “a leitura prévia pelos atores do texto dramático, ou seja, aquilo que era a primeira condição sine qua non no processo da encenação do espetáculo” (VÁSSINA, 2015VÁSSINA, E. O “novo método” de Stanislávski segundo seu último texto: “Abordagem à criação do papel, descoberta de si mesmo no papel e o papel em si mesmo”. Revista Moringa - Artes do Espetáculo, v. 6 n. 2, p.121-130, 2015. Disponível em: http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/moringa/article/viewFile/27185/14490. Acesso em: 10 jun.2018.
http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index....
, p.125). Stanislávski denuncia, de certo modo, a violência do diretor e do autor do texto sobre a criação do ator, ou seja, coloca o trabalho de autoria do ator em primeiro plano, sugerindo que a linha de ação da peça seja experienciada de modo que sobre o ator repouse a responsabilidade da composição criativa do personagem (do papel).

Em A serpente, a noção de autoria, pelo viés da perspectiva bakhtiniana - que, em parte, dialoga com a abordagem stanislavskiana para a criação de um papel - , foi sempre mote de discussão e reflexão, fato que se evidenciou na apresentação do espetáculo em seu formato “final”. Neste momento do processo atores e diretor demonstravam mais ciência dos seus desejos de cena e potenciais expressivos, e conseguiam, consequentemente, delinear e/ou medir possibilidades de comunicação com o público (mesmo que fosse impossível calcular e/ou medir os efeitos da recepção, pelo desconhecimento total do perfil de espectadores).

A apresentação do espetáculo em sua forma acabada não sinalizava, porém, o fim do percurso de pesquisa cênica. Ávido por investigar os contornos das silhuetas e sombras que insistiam em marcar esta experiência, o grupo decidiu que continuaria no processo de A serpente, aceitando os limites de uma imersão universitária que, entre outras dificuldades, precisa lidar com despedidas, ausências e perdas. Certos de que os processos teatrais também trilham sua curva de Gauss, preparávamo-nos, aos poucos, para a realização da desmontagem cênica.

A serpente - Desmontagem

A desmontagem cênica é uma prática teatral que vem ganhando adesão de grupos latinoamericanos, especialmente aqueles voltados à pesquisa da cena e das pedagogias do ator.

A expressão desmontagem, fazendo referência à demonstração do processo prático por atores em sessões pós-espetáculo, é datada de 1993, quando em Havana - Cuba, na X Oficina da Escola Internacional de Teatro da América Latina e Caribe (EITALC), o ator Victor Varela, do grupo Teatro Obstáculo, assim denominou a apresentação de seu processo de trabalho. Quando a XVI edição desta mesma oficina aconteceu, em 1995, em Lima - Peru, o grupo anfitrião a divulgou com o título Desmontagem: Encontro com Yuyachkani (DIÉGUEZ, 2014DIÉGUEZ, I. Desmontagem cênica. Revista Rascunhos: Caminhos da pesquisa em Artes Cênicas, v. 1, n.1, p.5-12, 2014. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/rascunhos/article/view/27217. Acesso em: 15 jun. 2018.
http://www.seer.ufu.br/index.php/rascunh...
). Recorrências ao termo vêm sendo, a partir de então, utilizadas na América Latina e, mais recentemente, o conceito e a prática da desmontagem vêm sendo investigados por pesquisadores brasileiros, interessados em seu caráter artístico e pedagógico.

A desmontagem tem se instaurado como uma sessão, partilhada com o público, na qual os atores e atrizes compartilham elementos que compuseram seus processos criativos na construção de personagens e/ou narrativas e/ou imagens do espetáculo. Ao apresentar as imersões de um grupo em um projeto cênico, a desmontagem se caracteriza como uma lente pela qual os artistas da cena (atores, diretores, etc.) podem refletir sobre seu trabalho, apresentando ao espectador aspectos dos trajetos vivenciados que revelam suas pesquisas, recuperando a fartura de possibilidades que o ato de criação proporciona ao grupo. Ao colocar seus participantes em contato com memórias, recordações e até mesmo materiais que integraram as experiências vividas, a sessão de desmontagem contém, em si mesma, um caráter espetacular, tornando-se, de certa forma, um novo espetáculo, que oferece ao público novas relações com a obra, imprimindo e pulverizando outras estéticas, abordagens e narrativas.

Embora a prática de demonstração técnica de processos criativos por atores8 8 O grupo Odin Teatret, fundado em 1964, e dirigido por Eugênio Barba, realiza, desde 1980, demonstrações técnicas nas quais os atores compartilham com o público o rigor técnico de seu treinamento cotidiano. Para maior aprofundamento no tema, sugiro a leitura do artigo Eugênio Barba: memória e resistência no teatro (COPELIOVITCH, 2016). não seja tão nova quanto a desmontagem, neste caso específico, a montagem de um espetáculo é a condição de existência da desmontagem. Não há justificativa plausível para a realização de uma sessão de desmontagem de um espetáculo que nunca tenha sido encenado. Eis aqui, então, a diferença que marca a linha tênue entre demonstração técnica (mostra de processos cênicos, que não coincide, necessariamente, com a criação de um espetáculo) e desmontagem cênica (procedimento narrativo em sessão de trabalho que tem como pressuposto a realização de uma montagem).

A sessão de desmontagem de A serpente foi realizada no final do terceiro semestre de trabalho do grupo (2018/II), no TEUNI - Teatro Experimental Universitário da UFPR, no âmbito do evento Outras palavras - Dramaturgias contemporâneas, promovido pelo Núcleo Criativo PalavrAção, que integra o Grupo de Extensão em Teatro PalavrAção, da Pró Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC-UFPR). Os integrantes do grupo foram convidados a ler o texto Desmontagem Cênica, de Ileana Diéguez (DIÉGUEZ, 2014DIÉGUEZ, I. Desmontagem cênica. Revista Rascunhos: Caminhos da pesquisa em Artes Cênicas, v. 1, n.1, p.5-12, 2014. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/rascunhos/article/view/27217. Acesso em: 15 jun. 2018.
http://www.seer.ufu.br/index.php/rascunh...
), para melhor compreenderem o conceito e para que pudéssemos, juntos, entrar em alguns acordos quanto ao formato da sessão a ser apresentada.

Figura 7
Flyer: A serpente: desmontagem

Eu, como diretor do grupo, sabia que o momento era de risco, de lançar-se, mais do que em outros momentos, à aventura do desconhecido. Concordando com a perspectiva bakhtiniana para o conceito de enunciado, este que sempre pressupõe enunciados que o antecedem e o sucedem (BAKHTIN, 2017bBAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b, p.21-56. [1970-71] [1970-71]), restava assumir, para este momento, a compreensão de que a sessão de desmontagem também se caracterizava, de alguma maneira, como um elo na cadeia de comunicação do projeto discursivo de A serpente, do Carmen Group.

Ao enfrentar a realização de uma sessão de desmontagem, precisávamos reconhecer nossa própria fragilidade, tanto na relação com o espetáculo que havíamos montado, quanto na certeza de certo desconhecimento de quais narrativas e elementos poderiam compor uma desmontagem cênica - já que esta prática ainda contém um conjunto de incógnitas no que tange aos seus procedimentos e formas.

Levei, neste dia, como material de trabalho, um skate, e pedi aos integrantes do grupo que o experimentassem, mesmo que não soubessem abordá-lo por técnicas precisas, buscando, primeiramente, a forma mais conhecida (equilibrar-se, em pé, sobre o skate e fazê-lo deslizar no chão) e em um segundo momento, explorando possibilidades de relação com o movimento, utilizando ações as mais distantes possíveis daquelas mais corriqueiras utilizadas por skatistas.

A vivência com o skate tinha um único objetivo: fazer com que os atores se lançassem a uma proposta desconhecida ou, ao menos, com a qual estivessem pouco familiarizados, recorrendo à metáfora do risco como um mote criativo para a sessão de desmontagem. O aquecimento proposto parece ter atingido seu objetivo. A desmontagem foi uma experiência repleta de diálogos sobre um processo que se mostrava tatuado nos corpos de cada um de nós.

Utilizamos, durante a sessão, gravações em áudio com fragmentos do texto rodrigueano, declamados por integrantes do processo, e referências à obra de Nelson Rodrigues como, por exemplo, o áudio de uma entrevista com a atriz Lucélia Santos, no qual ela fala de sua relação com o autor; e ainda, leituras de textos científicos sobre teatro que haviam composto a construção do espetáculo.

O público também teve, na sessão de desmontagem, papel fundamental, pois ao ser instigado a participar de forma efetiva do experimento, reagiu com interferências durante a sessão: os espectadores faziam perguntas e também respondiam imediatamente aos nossos convites. Dois momentos merecem destaque. O primeiro quando o público, em coro, proferiu fragmentos do texto rodrigueano; o segundo, quando um dos espectadores aceitou participar de uma cena, em substituição a um ator ausente. Tais vivências só puderam ser partilhadas porque havíamos assumido o formato de desmontagem cênica, o que dava à sessão de trabalho, outras especificidades, que a diferenciavam dos dois experimentos anteriores: o laboratório e o espetáculo.

Ao pensar o conceito e a prática da desmontagem por uma ótica bakhtiniana, é possível afirmar que, dos três experimentos, este é o que mais possibilita o efervescente diálogo entre a obra e o público, entremeado por vozes dos atores, dos diretores, dos espectadores e do autor do texto. A desmontagem pode se configurar, assim, como uma forma eficientemente particular de dar visibilidade às camadas íntimas de um processo de construção cênica, abarcando desde os aspectos técnicos que implicam a transposição de um texto para sua forma encenada até a investigação dos distintos pontos de vista que atravessam o percurso investigativo de um grupo que assume a tarefa da encenação.

Desmontar a arquitetônica de um trabalho cênico é aceitar a opção de partilhar vivências, mais do que mostrar técnicas e procedimentos, aceitando a pesquisa como componente inevitável da constituição do artista. Ao empreender itinerários nunca certeiros e sempre adeptos da não previsibilidade, desmontam-se, também, estéticas adeptas a prescrições precisas. Para que se chegue à etapa de desmontagem, no entanto, o espetáculo não pode ser evitado, e sua realização só se efetiva por meio de um laboratório no qual seja possível vislumbrar a criação de um processo de pesquisa cênica.

Conclusão

Um processo cênico não precisa, necessariamente, passar pelas fases discutidas neste artigo para que encontre sua provisória finitude. Os experimentos teatro[dia]lógicos que foram alvo de reflexão no presente texto nem sempre são possíveis, embora eu os defenda como fundamentais, especialmente em contextos universitários, nos quais não é somente o fator artístico que está em jogo.

A realização de processos educacionais em teatro deve acontecer de forma minimamente saudável, integrando-se aos corpos de seus integrantes a partir de sensações que, ao serem recordadas, possam mudar as práticas dos futuros profissionais da cena, quando estes se defrontarem com as exigências, competições e egos do mercado da produção cênica.

Meu maior objetivo, enquanto diretor teatral de alunos-atores, é deixar em suas lembranças marcas de experiências que possam ser reproduzidas (jamais repetidas) em outros espaços e tempos, e com outros sujeitos. Refletir sobre a criação cênica no contexto universitário é, portanto, uma justificativa bastante admissível para que eu e meus alunos-atores entremos em um diálogo teórico-prático com nossas vivências. O ato científico de escrever me leva não somente a relatar processos criativos e, sim, a analisá-los na tentativa de compreender suas lacunas e limites; e acaba se firmando também como retomada dos acertos e falhas que, em trabalhos futuros (meus e de outros artistas e docentes), possam estabelecer outros modos de orquestração.

Os experimentos teatro[dia]lógicos aqui relatados e analisados encontram-se, certamente, ofuscados pela inviabilidade do acesso total aos acontecimentos por parte do leitor. Há, no entanto, a possibilidade da compreensão, esta que, segundo Bakhtin (2017b [1970-71])BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b, p.21-56. [1970-71] é um ato que refugia a luta dialógica, condição primeira para a alteridade que pode mudar os sujeitos mutuamente e enriquecê-los. Como vivo em um mundo de palavras do outro, minha vida se completa em um universo de cultura e atividade no qual complexas relações de reciprocidade com a palavra do outro se estabelecem. Construir, por este viés, um texto que possa funcionar como relato de um processo e, ao mesmo tempo, analisá-lo, torna-se um desafio que, mesmo não excluindo movimentos exotópicos, ostenta, sem recalques, sua incapacidade de busca por qualquer tipo de neutralidade por parte de seu autor (eu).

Por isso, ao considerar o processo de A serpente como um movimento essencialmente bakhtiniano, os experimentos teatro[dia]lógicos que compõem este artigo, em sua versão pelo Carmen Group, refletem o atestado fiel da aplicação prática da epígrafe que abre o presente texto: enfrentar a encenação de uma obra dramática é lançar-se a um mundo de descobertas não sabendo ao certo os pontos de partida e chegada. Cabe ao professor-encenador e aos alunos-atores deixarem que o próprio caminhar os conduza, entre os riscos da aventura cênica e a certeza de uma comunicação textual viva, pulsante e em estado de presença que somente o teatro pode oferecer!

  • 1
    COPEAU (2013, p.153)COPEAU, J. Apelos. Apresentação e tradução de José Ronaldo Faleiro. São Paulo: Perspectiva, 2013.
  • 2
    Ver Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo], publicado na Coleção Teatro, série Pedagogia do Teatro, da Editora Hucitec. (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019.).
  • 3
    Para maior aprofundamento nas questões referentes aos termos experimento e experiência na educação, ver o artigo “Currículo, experimento e experiência: contribuições da Educação em Ciências”, de Ferraro (2017)FERRARO, J. Currículo, experimento e experiência: contribuições da Educação em Ciências. Revista Educação, v. 40, n.1. p.106-114, 2017. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/22751/15652 . Acesso em: 10 jun. 2018.
    http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/...
    .
  • 4
    Sobre uma perspectiva dialógica de abordagem do discurso teatral, ver o artigo Circo Negro: o discurso teatral em perspectiva dialógica, que escrevi para o livro Dialogismo: Teoria e(m) prática, organizado por Beth Brait e Anderson Salvaterra Magalhães (GONÇALVES, 2014GONÇALVES, J. Circo negro: o discurso teatral em perspectiva dialógica. In: BRAIT, B; MAGALHÃES, A. (ed.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014, p.267-279., 267-279).
  • 5
    Todas as imagens (arte e fotografias) que compõem este artigo são de autoria de Fernanda Caron Kogin, Produtora, Designer Visual e Performer do Carmen Group.
  • 6
    Trecho transcrito do texto A serpente, de Nelson Rodrigues.
  • 7
    Ver o excelente artigo O “novo método” de Stanislávski segundo seu último texto: “Abordagem à criação do papel, descoberta de si mesmo no papel e o papel em si mesmo”, de Elena Vássina (2015).
  • 8
    O grupo Odin Teatret, fundado em 1964, e dirigido por Eugênio Barba, realiza, desde 1980, demonstrações técnicas nas quais os atores compartilham com o público o rigor técnico de seu treinamento cotidiano. Para maior aprofundamento no tema, sugiro a leitura do artigo Eugênio Barba: memória e resistência no teatro (COPELIOVITCH, 2016COPELIOVITCH, A. Eugênio Barba: memória e resistência no teatro. Revista Poiésis, n. 28, p.71-84, 2016. Disponível em: http://www.poiesis.uff.br/p28/p28-6-dossie-5-andrea-copeliovitch.pdf. Acesso em: 15 jun. 2018.
    http://www.poiesis.uff.br/p28/p28-6-doss...
    ).

REFERÊNCIAS

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  • BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017a, p.57-80. [1959]
  • BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017b, p.21-56. [1970-71]
  • COPEAU, J. Apelos Apresentação e tradução de José Ronaldo Faleiro. São Paulo: Perspectiva, 2013.
  • COPELIOVITCH, A. Eugênio Barba: memória e resistência no teatro. Revista Poiésis, n. 28, p.71-84, 2016. Disponível em: http://www.poiesis.uff.br/p28/p28-6-dossie-5-andrea-copeliovitch.pdf Acesso em: 15 jun. 2018.
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  • DIÉGUEZ, I. Desmontagem cênica. Revista Rascunhos: Caminhos da pesquisa em Artes Cênicas, v. 1, n.1, p.5-12, 2014. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/rascunhos/article/view/27217 Acesso em: 15 jun. 2018.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2018
  • Aceito
    08 Maio 2019
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