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Editorial

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Em um dos textos reunidos em seu mais recente livro, Construindo Outra Educação (Editora Insular, 2011), Dilvo Ristoff apresenta um diagnóstico da batalha educacional que o Brasil precisa enfrentar sem tréguas. Alerta que

[...] nossos inimigos nesta guerra não são pessoas, mas um estado de coisas - um conjunto de comportamentos, atitudes, políticas e equívocos que nos levaram ao longo dos anos à situação difícil em que hoje nos encontramos, e que precisamos urgentemente reverter. Por isso mesmo, as nossas primeiras batalhas terão que ser contra inimigos já há algum tempo bem identificados: (1) a falta de docentes licenciados nas disciplinas específicas da educação básica; (2) a evasão profissional dos professores licenciados; (3) a formação deficiente; (4) os currículos incompatíveis com a docência na educação básica; (5) o

apartheid

que separa a universidade da escola e a pós-graduação da graduação e a graduação da educação básica; (6) o fraco desempenho de nossos estudantes nos exames nacionais e internacionais; e (7) os ambientes escolares incompatíveis com o processo ensino-aprendizagem. Isto significa dizer - continua Ristoff - que não caberá descanso enquanto tivermos: (1) disciplinas da educação básica sem professores licenciados para ministrá-las; (2) evasão profissional de licenciados que encontre justificativa na falta de valorização do magistério; (3) licenciados sem suficiente experiência prática em sala de aula; (4) licenciados formados em cursos de licenciatura cujos currículos não tenham sido construídos especificamente para a formação de docentes para a educação básica; (5) algum nível de ensino desintegrado e distante do esforço nacional comum pela conquista da qualidade; (6) uma única escola insegura, e sem atmosfera propícia para o estudo e o convívio social e (7) alunos com desempenhos incompatíveis com o seu nível de escolaridade em exames como a Prova Brasil, o Enem e o PISA.

Em outra passagem, Ristoff alerta para um equívoco bastante veiculado em vários setores da sociedade:

Não procede a afirmação secular, repetida cotidianamente na grande mídia e em textos acadêmicos, de que o campus é um espelho da sociedade e de que ele a reflete em todas as suas peculiaridades, privilégios, comoções e injustiças. Os dados mostram que o campus pode até ser um espelho da sociedade, mas é com certeza do tipo que distorce. Contas feitas, a conclusão a que se chega é uma só: sob muitos aspectos, os cursos de graduação hipertrofiam as desigualdades sociais existentes.A oportunidade de acesso para estudantes pobres é um bom exemplo. Estudantes com renda familiar de até 3 salários mínimos, que na população brasileira representam 50%, na Enfermagem e Educação Física - cursos com percentuais mais próximos da realidade - representam apenas cerca de 30%.

Cada um dos temas levantados com muita acuidade e pertinência por Ristoff tem sido tratado amplamente na literatura educacional, mas os problemas teimam em persistir nos nossos meios educacionais e não têm sido objeto de políticas públicas consistentes e abrangentes. Os temas elencados remetem a alguns dos principais componentes dos grandes desafios da agenda contemporânea da educação. Destaque para as questões da formação docente, do conhecimento e da democracia. Esses desafios não se resolvem sem um amplo entendimento de que educação é um bem público essencial e, portanto, de responsabilidade coletiva. Também não se resolvem sem que se compreenda a educação como sistema que integra níveis, tempos e espaços de formação. Ainda mais: educação e instituições escolares, de todos os níveis, formas e tempos são dimensões e instâncias essenciais da sociedade. Daí que os conhecimentos e a formação precisam ter pertinência e relevância social. A educação superior no mundo todo vem experimentando transformações em grande parte oriundas das mudanças que ocorrem na sociedade global e, de modo especial, nas esferas da economia, do trabalho e do conhecimento. O conhecimento de base tecnológica adquiriu centralidade na economia global e informacional. Entender e atuar sobre o mundo de hoje é possivelmente mais complexo que no passado não muito longínquo, tantas são as transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que nos assaltam com incomensurável rapidez e fluidez. A educação superior se coloca no epicentro das mudanças carregadas de novos desafios e oportunidades. Em meio às mudanças paradigmáticas da sociedade capitalista-global-informacional contemporânea, impõe-se à educação superior, particularmente à universidade, repensar seu papel essencial e público. Com relação a isso, duas das tarefas mais urgentes e necessárias consistem em tematizar os significados das transformações dos modos de produção e utilização do conhecimento e redefinir o conceito de público. O conhecimento, a ciência, a técnica, a formação são bens públicos e, portanto, devem fundar o bem comum. O grande desafio é construir uma compreensão interdisciplinar dos problemas e questões dos setores técnico-científicos e ético-políticos. Faz enorme diferença entender a educação superior pela ótica pública ou pela lógica privada. Numa e noutra são distintas as finalidades do conhecimento e da formação. Portanto, há diferenças essenciais na concepção da qualidade desde uma lógica dos valores públicos e dos interesses empresariais, e profundamente distintas serão as finalidades educacionais e as missões institucionais que em uma e na outra visão se atribuem. A questão da qualidade tem tamanha centralidade nos discursos, práticas e políticas dos diversos atores das comunidades acadêmicas e dos operadores do Estado que não poderia deixar de ser um tema recorrente na revista Avaliação. Impossível tratar da qualidade e de avaliação (da qualidade) fora da discussão do público e do privado e de suas mútuas relações. Desde um ponto de vista público, a formação e o conhecimento que a educação superior deve promover devem estar comprometidos com o desenvolvimento humano e social e ser pertinentes diante dos problemas que temos que enfrentar na construção das sociedades e no desenvolvimento global culturalmente mais elevado e socialmente mais justo do planeta. Nos grandes círculos de produção de conhecimentos se estabelecem redes complexas de pesquisas e dados, muitos deles se tornando amplamente disponíveis nos espaços cibernéticos, de modo que estão em mudança as velhas relações de estudantes e professores com os conteúdos disciplinares. Agora tem mais valor o conhecimento voltado à solução de problemas contextualizados. Estas reflexões esparsas e ligeiramente esboçadas sugerem a necessidade de a educação superior (re)assumir seu papel fundamental como instituição central do conhecimento com sentido público, de formação em valores democráticos de cidadãos e, ao mesmo tempo, de construção e consolidação de uma sociedade cada vez mais justa e igualitária. Se esses são os grandes compromissos da educação superior, eles deveriam ser o principal objeto dos processos de avaliação.

No primeiro texto desta 58ª edição, Ivam Ricardo Peleias, Janete de Fátima Mendonça, Vilma Geni Slomski e Ivani Catarina Arantes Fazenda discutem o tema da interdisciplinaridade no ensino superior, pondo em foco uma disciplina de um curso de ciências contábeis. Concluem que, "embora os professores sejam sensíveis à importância da interdisciplinaridade na formação dos futuros contadores, persiste uma distância entre o falado, o pensado e o efetivamente praticado no contexto universitário". O texto seguinte, de Marcos Francisco Martins, aborda referências avaliativas das ações educacionais desenvolvidas por ONGs, sindicatos e partidos políticos, compreendendo a educação como um processo práxico e catártico. Chega a uma dupla asserção conclusiva: "primeiro, que todo processo educativo resulta em alguma transformação e, segundo, que nem toda transformação resultante da educação é capaz de alterar as estruturas e superestruturas que caracterizam a totalidade da vida social". O terceiro artigo, de Maria Isabel da Cunha, analisa criticamente o tema da aprendizagem ao longo da vida e avaliação do desempenho profissional. Contra a ideia de aprendizagem ao longo da vida tomada no sentido da acumulação de informações e de competências generalizadoras, defende a "concepção de experiência na sua condição subjetiva como fundante da formação e do desempenho profissional". Assis Leão da Silva e Alfredo Macedo Gomes apresentam um estudo sobre a política de avaliação superior, com ênfase na atuação das CPAs. Com base em dados levantados, concluem os autores que "o SINAES, por meio da auto-avaliação, não tem conseguido instituir a prática da avaliação sistêmica baseada no paradigma subjetivista". Mara Regina Lemes De Sordi também trata do tema das CPAs, mas agregando uma abordagem original: compara a implementação dessas comissões em escolas de uma rede de ensino fundamental com o modelo utilizado no âmbito do SINAES. Para a autora, "os resultados confirmam a importância da CPA como instância que promove o encontro dos atores sociais nos espaços coletivos para buscarem o aprimoramento da qualidade de ensino de forma organizada e plural". Finalmente, confirma "as vantagens do uso das CPAs no ensino fundamental pela proximidade dos processos de avaliação dos atores internos e externos à escola". Oscar Álamo e Lisha Dávila apresenta relações entre "ciência e tecnologia, educação e cidadania" e sua incidência na percepção dos avanços científicos e de inovação tecnológica por parte de cidadãos considerados como sujeitos políticos. Em sua abordagem crítica, considera principalmente a convergência de questões relacionadas à democratização do conhecimento, incerteza, risco e a participação da universidade, enquanto principal instituição de geração de conhecimentos na América Latina, em sua dimensão social. Adriana Chiroleu traça um panorama das principais tendências da educação superior na América Latina, focalizando especialmente três processos: a expansão da cobertura sem redução das desigualdades sociais nem inclusão plena, o desenvolvimento de processos de avaliação institucional sem melhoramento efetivo da qualidade das aprendizagens e a ênfase na formação de profissionais que subalterniza o compromisso e a responsabilidade social dos universitários. A produção científica da Revista Brasileira de Educação e da Revista Brasileira de História da Educação veiculada entre 2001 e 2007 é o objeto do estudo apresentado por Marisa Bittar, Márcia Regina da Silva e Maria Cristina P. I. Hayashi. As autoras encontraram particularidades na produção científica educacional e destacaram algumas características próprias da pesquisa em Ciências Humanas em geral, como: "índices elevados de publicação individual, predileção para utilizar como referências livros e capítulos de livros, frequência elevada de comunicação científica em fontes nacionais, entre outras características". Maria Cristina Guimarães da Costa, Cleber José Mazzoni, Luzmarina Aparecida Doretto Braccialli e Magali Aparecida Alves de Moraes abordam a avaliação da prática profissional como estratégia de ensino e aprendizagem em uma Faculdade Pública de Medicina e Enfermagem. Concluíram que o "Exercício de Avaliação da Prática profissional mostrou-se potente instrumento de ensino e aprendizagem para formação de profissionais de saúde, porém o investimento permanente na capacitação docente se faz necessário". Waldemar Marques, em seu artigo, discute as relações entre o trabalho docente e o trabalho de pesquisa, procurando explicitar em que aspectos eles se distinguem e em que aspectos estão fortemente interrelacionados. Destaca a ênfase comumente dada à pesquisa, em detrimento do ensino. Destaca ainda a fragilidade das condições de realização da gestão acadêmica como um importante obstáculo à "emergência de espaços de reflexão sobre os processos de construção e transmissão de conhecimentos que apontem para práticas pedagógicas inovadoras que explicitem e fortaleçam a interação necessária entre pesquisa e ensino". Humberto Marcondes Estevam e Selva Guimarães estudaram a trajetória dos egressos do curso de mestrado em Educação da UFU. Dentre outros achados, observaram os seguintes: a maioria atua em instituições públicas, escolheria a mesma profissão, cursaria o Mestrado, optaria pela mesma área e escolheria o mesmo orientador, o medo da exclusão e da marginalização obriga o aperfeiçoamento acadêmico, o Mestrado em Educ ação da UFU é um ensino plural de qualidade para a formação de docentes e de pesquisadores. Francisco Gonçalves e Ágata Aranha apresentam resultados de um estudo sobre as bases de avaliação em cursos de educação física em Portugal. Dentre as principais conclusões, o estudo salientou a importância da formação na área de avaliação, especialmente no que se refere a saber como avaliar corretamente e a fazer com que os estudantes conheçam as estratégias e instrumentos de avaliação. Afrânio Mendes Catani e Ana Paula Hey trazem ao leitor brasileiro uma interessante apreciação crítica do livro Evaluador, do reconhecido intelectual, professor e novelista argentino, Noé Jitrik. Segundo Catani e Hey, nessa obra ficcional Jitrik "costura uma trama a respeito da criação de situações delirantes envolvendo o juízo sobre ações e valores intelectuais acerca daquilo que se impôs à sociedade com o nome de 'avaliação'. O tom sarcástico adotado pelo autor/narrador, aparentemente desapaixonado, perpassa todo o livro, apresentando uma realidade com dupla face em que quase tudo possui e, ao mesmo tempo, não possui sentido pleno". Um convite à leitura e à reflexão. Na sequência, encerrando com chave de ouro esta edição, um precioso documento. Trata-se de uma conferência intitulada "Relato Especulativo sobre dichas y desdichas de la Universidad" que Noé Jitrik pronunciou em 2007 na Universidade de Tandil, Argentina, abrindo o II Encuentro Latinoamericano "Universidad como objeto de investigación". Esse evento foi organizado pelo saudoso Pedro Krotsch, com quem esta revista tem uma enorme dívida de gratidão e respeito, pela sua importante contribuição como membro do Conselho Editorial e autor de vários trabalhos. Essa belíssima e inteligentíssima conferência de Jitrik nos provoca a refletir. Boa leitura!

Errata: Na edição anterior, duas citações do artigo "Avaliação docente em relação às novas tecnologias para a didática e atenção no ensino superior", de Luciana Marchiori, Juliana Melo e Wilma Melo saíram sem as aspas e os respectivos créditos de autoria. Os trechos corretos são os seguintes: 1."É necessária uma reflexão sistemática sobre o melhor processo de concretizar uma visão integrada dos conteúdos e sobre qual é o papel das ferramentas computacionais nesta visão" (VEIT et al. 2002). 2. "A rápida evolução tecnológica que estamos presenciando, notadamente a partir da segunda metade do século passado, tem nos colocado frente a novos problemas que exigem também soluções inovadoras. Vivemos, hoje, uma evidente metamorfose do funcionamento da sociedade como um todo, das atividades cognitivas, das representações de mundo que é refletida na forma de aprendizagem e na maneira com a qual os professores avaliam esta aprendizagem". (LÉVY, 1996). As autoras solicitam ainda que seja acrescentada a correspondente referência bibliográfica: LEVY, P. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. 160 páginas.

José Dias Sobrinho, editor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2012
  • Data do Fascículo
    Nov 2011
Publicação da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Rodovia Raposo Tavares, km. 92,5, CEP 18023-000 Sorocaba - São Paulo, Fone: (55 15) 2101-7016 , Fax : (55 15) 2101-7112 - Sorocaba - SP - Brazil
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