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Non casas, sed etiam domos fundatas: as origens da Arquitetura a partir de Vitrúvio

Non casas, sed etiam domos fundatas: the origins of architecture from Vitruvius

Resumo:

Este trabalho discute a origem do arquiteto e da Arquitetura apresentadas no tratado De Architectura de Vitrúvio e a sua associação com a imitação. Problematiza-se a noção vitruviana de progressão da humanidade e a sua vinculação com o arquiteto e o estabelecimento da Arquitetura como a ciência do arquiteto. Analisa-se a proposição de formação para os profissionais a partir de várias áreas, as quais garantiriam, segundo Vitrúvio, uma formação generalista e ao mesmo tempo especializada no seu campo. Discute-se, ainda, os atributos necessários, segundo o autor, para o bom profissional, que lhe permitiriam alcançar o reconhecimento pela sua autoridade.

Palavras-chave:
Vitrúvio; Arquitetura; Imitação

Abstract:

This work discusses the origin of the architect and the architecture presented in the treatise De Architectura by Vitruvius and its association with imitation. It is discussed the Vitruvian notion of the progression of humanity and its connections with the architect and the establishment of Architecture as the science of the architect. The proposal of training for professionals from various areas is analyzed, which would guarantee, according to Vitruvius, a generalist training and at the same time specialized in their field. It also discusses the attributes necessary, according to the author, for a good professional, which would allow him to achieve recognition for his authority.

Keywords:
Vitruvius; Architecture; Imitation

Neste artigo, procura-se apresentar e discutir a origem do arquiteto, e da própria Arquitetura, a partir do tratado De Architectura, escrito entre 35a.C. e 25 a.C. pelo arquiteto romano Vitrúvio. Recorrendo a diversas fontes gregas e romanas, assim como a sua própria vivência, Vitrúvio compila uma breve história das descobertas que levaram os homens da vida selvagem à humanidade, na qual inclui a Arquitetura como fruto da progressão das artes, constituindo-se pelo processo de imitação em um campo disciplinar específico, a partir do acumulado de conhecimento provado e melhorado constantemente.

Inicialmente, aborda-se a constituição do arquiteto como um artifex especializado na construção, a qual se constituiu a partir de muitas experiências prévias, iniciada na observação da natureza. Distinguindo do leigo e do artesão, o arquiteto constrói pautado pelas doutrinas da arte, provadas pela experiência de muitos predecessores, e domina múltiplos saberes, que o especializam no campo da construção e transcendem para outras áreas, como o domínio da Matemática.

Na sequência, retoma-se a proposição vitruviana que estabelece a Arquitetura como a ciência do arquiteto, a qual, em termos aristotélicos, significa um campo de conhecimento possível de ser transmitido. Analisa-se, então, a proposta de formação do profissional, pautada por diversas disciplinas que lhe conferem uma formação generalista em termos dos diferentes saberes e especialista em termos da construção.

Por fim, discute-se os atributos do bom arquiteto, que aliam estes conhecimentos específicos do seu campo aos saberes amplos de outras áreas, os quais podem ser mobilizados nos distintos temas arquitetônicos que se apresentem. São estes atributos que, se bem desenvolvidos pela formação, garantirão ao arquiteto o reconhecimento de sua autoridade sobre o tema.

Idiota et faber et artifex: as origens do arquiteto

O desenvolvimento da Arquitetura como campo de conhecimento tem sua origem, segundo Vitrúvio, a partir da experiência acumulada no progresso em direção à humanidade, e está descrita no Livro II do De Architectura (Vitr. 2. 1. 1-3). Nele, o autor aborda o modo de vida primitivo (homines uetere more), ligado à vida em florestas, aos abrigos em cavernas (in siluis et speluncis et nemoribus) e ao nomadismo extrativista (ciboque agresti vescendo). Foi a partir do domínio do fogo (ignem), segundo Vitrúvio, que as sociedades se sedentarizaram, desenvolvendo a linguagem por meio do convívio constante (hominum congressu) e, a partir dela, a troca de experiências (cotidiana consuetudine vocabula), levando às primeiras construções habitacionais (tecta), que imitavam (imitantes) formas da natureza, como os ninhos da andorinha (hirundinum nidos). Com base nestas primeiras choupanas, Vitrúvio observa que houve um ímpeto da melhora constante (meliora genera casarum), a partir da observação das demais (observantes aliena tecta) e das próprias cogitações (suis cogitationibus rei nouas). Com base nessas experiências na construção das choupanas, como pontuado pelo autor na sequência, os homens desenvolveram uma disposição natural para imitar e aprender (imitabili docilique natura), trocando experiências e ganhando convicção no que haviam acumulado de conhecimento construtivo a partir da prática, o que Vitrúvio chama de engenho (et ita experientes ingenia certationibus in dies melioribus efficienbantur), identificado a partir de diversos vestígios de antigos edifícios e técnicas construtivas elencados por ele.

A passagem acima repercute um tema abordado por, pelo menos, outros dois autores romanos, ambos elencados por Vitrúvio como referências para sua obra: Cícero e Lucrécio (Vitr. 9. Pref. 11). Cícero aborda a temática da vida agreste (agris homines) e sua passagem gradativa a um sistema de vida diferente (ad diversas rationes vitae traduceret), enfatizando o papel da reunião promovida pelas cidades (vero urbibus constitutis) e da eloquência da fala nessa progressão (sic et nata et progressa longius eloquentia videtur) (Cic. Inv. rhet. 1.2-3). Cícero, ainda, alude ao tema da diferenciação entre animais e homens no De Officiis, ao afirmar que a diferença entre ambos reside na razão humana (quod rationis est particeps), a qual permite aos homens perceberem as consequências (consequentia) e as causas (causas), estabelecerem semelhanças (similitudines), conectarem o presente e o futuro, possibilitando, assim, prepararem-se para a vida (ad eamque degendam praeparat res necessarias) (Cic. Off. 1. 11).

Lucrécio aborda temas semelhantes, como a existência de uma raça humana muito dura (genus humanum multo fuit illud in arvis durius) 1 1 Cf. Alfred Ernout (1924), este epíteto reprisa, entre outros autores, Virgílio (Verg. G. 1. 64) (Lucr. 5. 925) que vivia, inicialmente, de meios primitivos, para depois construir cabanas, dominar o fogo e constituir famílias (inde casas postquam ac pellis ignemque pararunt et mulier coniuncta viro concessit in unum) (Lucr. 5. 1011).2 2 Elisa Romano (1987, p. 111-112) assinala que à descoberta do fogo, que marca o nascimento da convivência, concorre outro fator decisivo para o processo civilizatório, a descoberta da linguagem, ou seja, a possibilidade de exprimir significados precisos. A estes, soma-se outro fator no processo de estabelecimento de uma sociedade civil: a construção da habitação, simbolizada pela cabana. O tema da progressão como melhora constante aparece adiante, ao narrar que a cada dia trocavam sua vida anterior por novas práticas (commutare novis) constituídas a partir do ingenio, chegando à construção das ubes (Lucr. 5. 1105). O tema do fogo reaparece em diversos pontos e, em especial, a hipótese da sua criação a partir dos ramos agitados das árvores é especialmente análoga à vitruviana (Lucr. 5. 1283).3 3 Joseph Rykwert (2003, p. 120) reforça a afiliação de Vitrúvio com Lucrécio, sobretudo a respeito da vinculação da invenção do fogo com a criação das primeiras construções. O autor lembra que o tema da invenção das artes a partir da observação da natureza está presente na cosmogenia de Demócrito, condensada por Hecateu de Abdera. Este apresenta o tema sugerindo três estágios: a consciência da necessidade, o exemplo dos animais - o qual leva à invenção das artes - e, por último, a elaboração das artes, fundamentada sobre o que resta quando as necessidades são atingidas.

Vitrúvio, na sequência do texto (Vitr. 2. 1. 6-7), aponta que embora o campo da construção esteja presente na Arquitetura, o desenvolvimento desta (ratiocinantes)4 4 Pierre Gros (2003, p. 74) aponta que o termo ratiocinantes aqui é empregado no sentido de técnica definido por Cícero (Cic. Inv. rhet. 1. 34; 57), a qual parte da observação de realidades acessíveis ao seu tempo para inferir as técnicas práticas de um tempo passado, permitindo, por meio da observação e do raciocínio, a projeção no tempo. somente se consolida quando ao exercício manual cotidiano (cotidie faciendo tritiores manus), ao engenho (ingenia) adquirido na prática continuada da arte construtiva (exercendo per consuetudinem ad artes pervenissent), alia-se à sagacidade (sollertia), ou competência constituída a partir do conhecimento amplo em diversas áreas e do raciocínio lógico, que permite transpor saberes de um campo ao outro. Assim, segundo ele, gradualmente progrediram (gradatim progressi) para outras artes e disciplinas (ad ceteras artes et disciplinas), passando de uma vida selvagem e agreste (fera agrestique vita) para a civilizada humanidade (mansuetam perduxerunt humanitatem). A partir de então, aliando diferentes conhecimentos (ex varietate artium natis), os homens já não construíam mais choupanas, mas passaram a construir casas (non casas sed etiam domos fundatas),5 5 Para Gros (2003, p. 64), a passagem vitruviana trata de apresentar um ponto de partida para o desenvolvimento da técnica humana, apresentando uma visão clara de progresso da técnica construtiva, que se aprimorou pari passu ao processo civilizatório. Gros aponta (2003, p. 67), também, que foi a partir da imitação dos animais construtores e da emulação entre os próprios homens, que se chegou à noção de casa (domus), primeira unidade arquitetônica autônoma, concebida em função de técnicas e necessidades específicas. suplantando os juízos vagos no caminho do estabelecimento de um pensamento racional claro (deinde observationibus studiorum e vagantibus iudiciis et incertiis ad certas symmetriarum perduxerunt rationes).

O tema da consolidação progressiva das artes encontra paralelo novamente em Lucrécio. Para o autor, os diferentes campos do conhecimento humano expressos pelas artis têm início na observação da natureza, aprendendo com seus princípios. A descoberta dos materiais e da possibilidade de transformá-los pelo fogo (Lucr. 5. 1241sq), o progresso da arte da guerra (Lucr. 5. 1296sq), a origem das vestimentas (Lucr. 5. 1250sq), o cultivo (Lucr. 5. 1361sq), a música (Lucr. 5. 1380sq), as estações do clima (Lucr. 5. 1436sq) e os prazeres da vida (delicias quoque vitae funditus omnis) como poemas, pinturas e estátuas, que pelo uso e experiência da mente (usus et impigrae simul experientia mentis) pouco a pouco ensinaram os homens a lenta marcha do progresso (paulatim docuit pedetemptim progredientis) (Lucr. 5. 1450-1453).

Pierre Gros (2003GROS, P. (2003). Vitruve. De L’Architecture: Livre II, Texte établi et traduit par Louis Callebat, introduit et commenté par Pierre Gros. Paris, Les Belles Lettres. , p. 76) aponta que, ao final do capítulo, Vitrúvio deixa explícito o complexo processo da passagem da experiência empírica à observação dos fenômenos, da sua observação à sua compreensão e, a partir daí, o estabelecimento de uma teoria que afasta a obra construída do arbitrário, inscrevendo-a em uma lógica matemática global que é a mesma do mundo. Aqui, aponta Gros, compreende-se a noção de inventio, que significa propriamente a descoberta desta ordem do universo e defende que não existe Arquitetura, para Vitrúvio, até o momento em que o "cálculo proporcional” autorize o estabelecimento de um sistema modular. Um edifício, segundo ele, não ascende ao status de invenção artística até que tenha um sistema de symmetria.6 6 Cabe aqui lembrar do conceito vitruviano: "symmetria est ex ipsius operis membris conveniens, consensus ex partibusque separatis ad universae figurae speciem ratae partis responsus” (Vitr. 1. 2. 4). O tema é desenvolvido, ainda, por Manenti (2019). Elisa Romano (1987ROMANO, E. (1987). La capanna e il tempio: Vitruvio o dell'architettura. Palermo, Palumbo., p.119), por sua vez, aponta a confluência do texto vitruviano com o ciceroniano (Cic. Inv. rhet. 1. 2) ao referir-se sobre a eloquentia,7 7 Os paralelos entre os textos de Vitrúvio e Cícero, enfocando o elocutio, são explorados por Santos (2020). pois ambos sinalizam a passagem de uma fase civilizatória para outra, na qual se alcança a elegância do supérfluo.

Esta mesma visão de melhora constante, que Vitrúvio apresenta da construção em direção à consolidação da Arquitetura como campo de conhecimento, reaparece nos parágrafos seguintes (Vitr. 6. 8. 9-10). Neles, após lidar com o tema das construções privadas, o autor passa a discutir a relação entre o proprietário, os artesãos e o arquiteto. Segundo ele, toda obra deve ser apreciada a partir de três aspectos (operum probationes tripertito considerantur): a magnificência (magnificentia), a qual depende das despesas do proprietário (a domini potestate); a qualidade da execução (fabrili subtilitate), a qual depende da precisão do artesão (officinatoris probabitur exactio); e a disposição da obra (dispositione),8 8 Aqui se retoma um dos seis componentes da Arquitetura, elencados em Vitr. 1. 2. 2, o qual é definido como: Dispositio autem est rerum apta conlocatio elegansque compositionibus effectus operis cum qualitate. A partir desta definição, pode-se entender este procedimento como análogo ao que se chama de composição a partir de elementos (membrus) ou, ainda, ideação de uma obra, a qual se expressa, como aponta Vitrúvio na sequência, através de desenhos: Species dispositionis, quae graece dicuntur ideae, sunt hae: ichnographia, orthographia, scaenographia. a qual depende da autoridade do arquiteto no estabelecimento das proporções e da relações entre as partes (cum vero venuste proportionibus et symmetriis habuerit auctoritatem, tunc fuerit gloria area architecti). A relação entre estes três personagens é retomada logo a frente, reforçando o papel primaz do arquiteto. Segundo Vitrúvio, o arquiteto deve se aconselhar (consilia) com os artesãos (fabris) e com os leigos (idiotis), pois todos podem contribuir para o juízo do que é adequado (homines non solum architecti, quod est bonum, possunt probare), porém somente o arquiteto pode prever com antecedência no seu próprio ânimo (quid sit futurum, architectus autem, simul animo constituerit) a beleza, o uso e a conveniência da obra futura (et venustate et usu et decore quale sit futurum). Arquitetura, então, se estabelece como uma progressão da construção, à qual se alia o conhecimento prático à racionalidade de preceitos que permite a prévia cogitação de uma obra na mente do arquiteto, estabelecendo, assim, a diferença entre o artesão (faber), que aplica as técnicas exercitadas (industria) com apreço pelo trabalho bem executado (studium) e o arquiteto/artista (artifex), que é capaz de inventar soluções na sua mente a partir de preceitos estabelecidos racionalmente (inventio).

Antonio Corso e Elisa Romano (1997CORSO, A.; ROMANO, E. (1997). Vitruvio. De Architectura. A cura di Pierre Gros, traduzione e commento di Antonio Corso e Elisa Romano. Torino, Giulio Einaudi Editore . , p. 1007), apontam que nesta passagem o autor apresenta um breve e importante relato sobre as relações entre os agentes responsáveis pela construção e seus efeitos. A magnificência, associada à grandiosidade da obra e ao requinte dos materiais, aqui imputada ao proprietário, por se tratar de obra privada, pode também ser creditada ao arquiteto em situações em que a ele couberem decisões neste sentido ou que, ainda, concorreram para este resultado. Os comentaristas apontam (1997, p. 1008) que a subtilitas parece exprimir a sagacidade no edificar concretamente a obra (fabrilis) e no operar minucioso e preciso em relação a isso, e que o officinator é o dependente da oficina do arquiteto, trabalha para este, e sua virtude principal é a atenção para trabalhar com cuidado em cada detalhe. Para Corso e Romano (1997, p. 1008), o arquiteto é o “projetista" responsável pela configuração da obra, e afirmam, ainda, que a transformação desta figura profissional de mestre construtor a "homem de cultura”, que pensa a obra arquitetônica primeiramente em termos teóricos e nas relações modulares, é o resultado de um longo processo, que vem do século V a.C. ao médio-helenismo, tributado à afirmação reiterada do arquiteto como indivíduo, de Ictínio a Piteo e Hermógenes, assim como à revisão da disciplina arquitetônica no âmbito das investigações modulares e numéricas, sobretudo pitagóricas. Louis Callebat (2004CALLEBAT, L. (2004). Vitruve. De L’Architecture: Livre VI, Texte établi, traduit et commenté par Louis Callebat. Paris, Les Belles Lettres., p. 246), afirma que este architectus vitruviano é um homem do canteiro, que escuta os executores assim como os leigos, detentor portanto de valores morais e sociais, mas apto também a conceituar um projeto pela análise e reflexão, antecipando em sua mente como se darão as relações de harmonia e beleza em sua obra.

Neste ponto, a relação entre os textos de Vitrúvio e de Aristóteles encontra diversos paralelos, sendo o autor grego também listado como um dos filósofos cujas obras escritas serviram de referência (Vitr. 7. Pref. 2). No seu Livro I da Metafísica (Arist. Metaph. 981a; 981b), Aristóteles aborda o tema da construção do conhecimento, que passa pela experiência, a partir da qual se obtêm ciência e arte. A arte seria alcançada quando, a partir de muitas experiências, forma-se um juízo universal relativo a objetos semelhantes, constituindo uma noção próxima de teoria, indissociável da experiência, embora diferente, confluente com a discussão das noções de fabrica e ratiocinatio vitruvianas, as quais são discutidas na abertura do Livro I (Vitr. 1. 1. 2). Aristóteles apresenta, ainda, uma gradação em termos de sabedoria entre o artista e o homem de mera experiência. O primeiro, segundo o autor, é mais sábio que o segundo, pois conhece as causas e os porquês, enquanto o segundo apenas os fatos. Esta mesma gradação pode ser estabelecida, segundo Aristóteles, entre os mestres dos ofícios e os artesãos, pois os mestres conhecem as razões das coisas feitas, enquanto os artesãos apenas realizam sem saber o porquê. Esta gradação se expressa não pelo fato dos mestres fazerem melhor que os artesãos, mas porque eles possuem um conhecimento teórico e conhecem as causas. Ainda, por conhecerem as teorias, estes mestres, artistas, são capazes de ensinar, levando Aristóteles a defender que a arte passa a ser conhecimento científico quando existe o artista capaz de ensinar.

A respeito deste tema, Elisa Romano (1987ROMANO, E. (1987). La capanna e il tempio: Vitruvio o dell'architettura. Palermo, Palumbo., p. 185) aponta dois âmbitos da consolidação da Arquitetura em Vitrúvio: o nascimento desta, a partir de um processo abstrato de fundação teórica (Vitr. 1. 1), e a origem da Arquitetura, a partir de um processo concreto de indícios históricos (Vitr. 2. 1). A estes dois âmbitos, a autora relaciona as noções de templo, como exempla ideal dos preceitos, e de cabana, constituída a partir da melhora constante da construção. Estes refletem bem a proposta vitruviana de elevação da Arquitetura de uma arte mecânica, fundada pelo acumulado do conhecimento construtivo, em uma Ciência, transmissível, como define Aristóteles, e por isso mesmo pautada por preceitos racionais, reconhecíveis e verificáveis. Em última análise, sendo este o propósito primeiro do tratado, transmitir o conhecimento acumulado da arquitetura, organizando seus aspectos de maneira racional e ordenada (corpus ad perfectam ordinationem) (Vitr. 4. Pref. 1).

Architecti est scientia: a ciência do arquiteto

A elevação do arquiteto à condição de artifex autoriza o estabelecimento da um campo de conhecimento próprio, a Arquitetura, a qual se apresenta como tal na abertura do tratado (Vitr. 1. 1. 1). Nela, o saber do arquiteto é apresentado como um campo de conhecimento (scientia) ornado por muitas disciplinas (pluribus disciplinis) e variados saberes (variis eruditionibus) e ao juízo das quais são submetidas as contribuições das demais artes (cuius iudicio probantur omnia quae ab ceteris artibus perficiuntur). Ela nasce da prática, definida por Vitrúvio como o exercício contínuo e regular (continuata ac trita usus meditatio) de transformação manual da matéria em uma forma pré-fixada (quae manibus perficitur e materia cuiuscumque generis opus est ad propositum deformationis), e do raciocínio (ratiocinatio), a partir do qual se demonstra e se explica a sagacidade nos cálculo proporcionais (sollertiae ac rationis proportione demonstrare atque explicare potest). Aqui, novamente, ao exercício continuado do artesão (faber), o qual exerce a sua prática (fabrica), alia-se a racionalidade sintetizada em preceitos que permitem ao arquiteto conceber uma obra a partir do raciocínio (ratiocinatio) sagaz (sollertia), passando a assumir o papel de artifex da construção.

Para Vitrúvio, o arquiteto que exercer o ofício manual sem erudição (sine litteris contenderant) não alcançará a autoridade (pro laboribus auctoritatem), assim como aquele que se apoia apenas na formação erudita e no raciocínio (ratiocinationibus et litteris solis), afasta-se da realidade. Segundo ele, apenas o arquiteto que, como que munido de todas as armas (armis ornati), ou seja, em ambos os aspectos da profissão, alcançará a autoridade (auctoritate). Estes dois aspectos são reforçados no parágrafo seguinte a partir da dualidade significado (quod significatur) e significante (quod significant), o primeiro constituído do objeto propriamente, a obra, que demonstra os princípios racionais atribuídos pelo significante (demonstratio rationibus doctrinarum explicata). A dualidade entre exercitação prática, adquirida pela experiência manual, e raciocínio, adquirido a partir da formação teórica/literária, reafirma a ascensão do arquiteto como artifex, ou seja, aquele que associa a experiência prática do artesão com o papel de inventor pautado pelo preceituário que explica racionalmente as decisões.9 9 A respeito da dupla de conceitos quod significatur e quod significant, Corso e Romano apontam a sua formulação genérica e imprecisa (1997, p. 67-68), levando a distintas interpretações: forma e conteúdo, a partir de Carl Watzinger, forma e função, a partir de Francesco Pellati, objeto e projeto, conforme Curt Fensterbusch, construção e a sua explicação, a partir de Silvio Ferri, ou, ainda, uma interpretação incompleta dos conceitos gregos de ta semainonta e ta semainomena, levando à simplificação do entendimento em termos da relação entre construção e o opúsculo que a explica. Essa interpretação é seguida por Gros (1982, p. 659-695) e Fleury (2003, p.69), enquanto Callebat (1994, p. 35) vê uma transferência para a "teoria da Arquitetura” de uma relação propriamente linguística e retórica, propondo que o primeiro represente os recursos de um sistema de expressão e de comunicação e o segundo a seleção destes elementos para uma obra concreta. Elisa Romano (1987, p.55), propõe, ainda, a leitura a partir do binômio objeto e demonstração, conduzida no confronto do objeto com um método racional que implica conhecimento.

A respeito da abertura do primeiro capítulo, Elisa Romano e Antonio Corso apontam que é reconhecível a exigência de autonomia intelectual da Arquitetura, a qual se pauta por um conhecimento enciclopédico situado no entrecruzamento de vários campos disciplinares (1997, p. 64). Esta versatilidade na formação do arquiteto é o que fornece a ele a capacidade de iudicium perante as demais artes, permitindo-lhe compreender e avaliar o trabalho das demais técnicas, dando à Arquitetura uma certa primazia. Porém, como pontuam os autores, não se trata de uma posição hierárquica que coloca a epistémē acima da téchnai, ou ainda como uma visão dual entre conhecimento puro e atividade produtiva, mas como a conciliação entre uma filosofia superior, uma ética a qual lida com o modo de vida, e um conhecimento especializado. Esta visão de opostos complementares pontua muitos seguimentos do primeiro capítulo, como as dualidades de fabrica/ratiocinatio, quod significatur/quod significat, techne/episteme e ingenium/disciplina, embora não sejam sinônimos, como apontam os autores (Romano; Corso, 1997, p. 65-66).

Os comentadores discutem, ainda, o papel da sollertia (Romano; Corso, 1997CORSO, A.; ROMANO, E. (1997). Vitruvio. De Architectura. A cura di Pierre Gros, traduzione e commento di Antonio Corso e Elisa Romano. Torino, Giulio Einaudi Editore . , p. 66-67), entendida por eles como uma habilidade eminentemente técnica, a qual se equilibra com a atividade especulativa do cálculo das proporções, dando a ver a sollertia como uma atividade intermediária entre a pura especulação e a aplicação prática. Pode ser entendida como uma inteligência ativa, teórica e prática ao mesmo tempo, mas com um acento na prática (cf. Vitr. 5. 4. 3), descendente distante da mētis grega, com a qual compartilha a versatilidade, a capacidade de se adaptar às situações, a habilidade e a experiência, desempenhando um papel decisivo no processo civilizatório, sendo a qualidade que caracteriza os melhores arquitetos como Hermógenes e Diogneto (cf. Vitr. 2. Pref. 1; 3. 3. 9; 5. 6. 7; 6. Pref. 15; 10. 16. 8; 10. 16. 12), os cientistas como Arquimedes (cf. Vitr. 1. 1. 16; 9. Pref. 9), os povos mais inteligentes (cf. Vitr. 6. 1. 10; 9. 6. 2), os heróis e os reis como Atlante e Mausolo (cf. Vitr. 2. 8. 11; 6. 6. 6 e ao próprio Vitrúvio cf. Vitr. 5. 8. 1) como parte de seu esforço de compor um tratado claro e completo.

No terceiro parágrafo do tratado vitruviano, esta ideia é reforçada por uma outra dualidade,10 10 Essa terceira dupla de conceitos, ingenium e disciplina, conforme os comentadores Corso e Romano (1997, p. 68), é requisito para todos que exercitam uma ars, ou seja, um artifex, entre os quais se encontra o architectus. Para eles, Vitrúvio retoma uma discussão desenvolvida por Cícero no De Oratore, na qual se opõem as visões de Antonio, o qual defende que o bom orador deve possuir dotes naturais e experiência forense, e de Crasso, que afirma a necessidade de uma vasta cultura (cf. Cic. De or. 1. 35; 39; 44; 80; 113). expressa na relação entre o engenho (etiam ingeniosum oportet esse) e a disciplina ou formação teórica (et ad disciplinam docilem), sendo ambos indispensáveis ao artífice perfeito (neque enim ingenium sine disciplina aut disciplina sine ingenio perfectum artificem potest efficere). Essa formação, segundo Vitrúvio, compõe um ciclo de estudos (encyclos) que inclui diversas áreas: Literatura (ut litteratus sit), Desenho (peritus graphidos), Geometria (eruditus geometria), História (historias complures noverit), Filosofia (philosophos diligenter audierit), Música (musicam scierit), Medicina (medicinae non sit ignarus), Direito (responsa iurisconsultorum noverit) e Astronomia (astrologiam caelique rationes cognitas habeat). Porém, em razão desta vasta erudição necessária, alguém não pode se proclamar arquiteto de uma hora para outra (non puto posse iuste repente profiteri architectos), sendo necessário galgar os degraus desta formação desde muito jovem (puerili his gradibus disciplinarum), calcado no conhecimento literário (litterarum) e técnico (artium), para alcançar o cume do templo da Arquitetura (summum templum architecturae).

O ciclo de formação do arquiteto é vasto, e Vitrúvio reconhece que pode parecer demais aos inexperientes (inperitis) que um homem possa aprender e recordar de tantas disciplinas (tantum numerum doctrinarum perdiscere et memoria continere). Entretanto, o autor salienta que os conhecimentos estão interligados e se relacionam (disciplinas inter se coniunctionem), formando um ciclo de estudos que se apresenta como um corpo único composto de seus distintos membros (encyclios enim disciplina uti corpus unum ex his membris est composita). Não cabe ao arquiteto alcançar um refinamento particular (elegantias singularis) em nenhuma das diversas áreas (tantis rerum varietatibus), mas sim conhecer e perceber seus raciocínios (ratiocinationes cognoscere et percipere). A obra (opere), segundo Vitrúvio, é própria do arquiteto na qualidade de produto do exercício da sua atividade (proprium esse eorum qui singulis rebus sunt exercitati, id est operis effectu), enquanto o raciocínio (ratiocinatione) é comum a todos os doutos (alterum commune cum omnibus doctis). As obras feitas de forma manual com elegância (elegantiam) são produto daqueles que se exercitam em uma arte específica (una arte ad faciendum sunt instituti), os quais alcançaram um conhecimento médio (rationes earum mediocriter) em cada campo (singulis doctrinis) daqueles necessários à Arquitetura, permitindo-lhes avaliar e aprovar (iudicare et probare) obras.

Porém, aqueles que a Natureza dotou de sagacidade (sollertiae), agudeza (acuminis) e memória (memoriae), que podem dominar a Geometria, a Astronomia, a Música e as demais disciplinas, vão além do ofício da Arquitetura e se aproximam dos matemáticos/sábios (praetereunt offica architectorum et efficiuntur mathematici), pois podem argumentar (disputare) já que estão munidos das armas destas várias disciplinas (pluribus telis disciplinarum sunt armati). Mas são raros (raro) os que alcançam tal sabedoria e são chamados de matemáticos, segundo Vitrúvio, pois o engenho (ingenia) e a sagacidade natural (naturali sollertia) são concedidos a poucos homens (paucis viris habere concedatur). Ao arquiteto, para exercer seu ofício (officium), embora seja necessária uma formação em muitas disciplinas (omnibus eruditionibus debeat esse exercitatum), em vista de sua amplitude (amplitudinem), não se faz necessário um conhecimento aprofundado de todas as ciências, mas mediano (summas sed etiam mediocris scientias habere disciplinarum).

O próprio Vitrúvio aborda o papel dos sábios11 11 Sobre o papel dos sábios, Jean-Pierre Vernant (2018, p. 63), ao descrever o universo espiritual da polis grega, pautada pelo debate público das questões comuns e pela publicização das manifestações mais importantes da vida social, discute o papel dos sábios, os quais se dirigem à cidade por meio da palavra ou pela escrita, divulgando o conhecimento, que ao mesmo tempo que afasta o caráter de mistério, oculto, não deixa de ser estranho à vida ordinária. A Sabedoria e a Filosofia não requerem mais rituais de ingresso para serem reveladas, mas, por outro lado, exigem disciplina, pesquisa e conhecimentos como de matemática, os quais conservam certa relação com as práticas religiosas, mantendo a diferenciação entre os sábios e os demais cidadãos. através da figura de Aristipo (Vitr. 6. Pref. 1-4), narrando a história do filósofo socrático que, ao naufragar na costa de Rodes, lança mão de seus conhecimentos para sustentar a si e aos demais companheiros de viagem que perderam seus bens no naufrágio. A partir desta parábola, Vitrúvio discute o valor do conhecimento, que garante aos sábios uma vida sem os abalos da tempestade da fortuna (neque fortunae tempestas iniqua), além de lhes fornecer acolhimento junto a diferentes povos,12 12 Antonio Corso e Elisa Romano apontam aqui a vinculação com o conceito grego de autarkeia (1997, p. 860), ou seja, a auto-suficiência moral e intelectual. Esta autonomia do homem sábio, e sua posição de cidadão do mundo fazem parte do pensamento tipicamente helenístico, alinhado aos propósitos de César, o qual desejava construir uma monarquia semelhante à helenística, da qual faz parte a transformação da Arquitetura nesses moldes de exigências especulativas e preceituais do helenismo asiático (1997, p. 861-862). reforçando a ideia de que o conhecimento é um bem universal. Por fim, faz um agradecimento aos pais, que o proveram com uma educação para a arte (arte erudiendum) a partir de conhecimentos em Literatura e nas demais disciplinas (litteraturae encyclioque doctrinarum omnium disciplina).

Ingenium et sollertia et acumem: os atributos do arquiteto

O estabelecimento do campo do saber da Arquitetura como uma ars, justificada por Vitrúvio a partir de uma abordagem histórica de melhora constante, alia o architectus a um artifex, distinguindo-o do faber. Essa distinção se justifica em função de atributos que o fazem transcender o conhecimento prático, aliando ao ingenium a sollertia e o acumem, aproximando-o dos sábios, aqueles que dominam os conhecimentos primeiros, que transitam entre os diferentes campos disciplinares. Ao longo do tratado, Vitrúvio associa esses três atributos de distintas maneiras, elencando-os isoladamente, aos pares ou mesmo todos reunidos em uma mesma passagem.13 13 O atributo do ingenium comparece no tratado em dezenove passagens (Vitr. 1. 1. 3; 1. 1. 18; 2. 1. 3; 2. 1. 6; 3. Pref. 1-2; 5. Pref. 1; 5. 6. 7; 6. Pref. 5; 6. 2. 4; 6. 3. 11; 7. Pref. 9-10; 9. 8. 2; 10. 2. 11), a sollertia em vinte e oito pontos (Vitr. 1. 1. 1; 1. 1. 17-18; 2. Pref. 1; 2. 1. 6; 2. 8. 11; 3. Pref. 2; 3. 3. 9; 5. 4. 3; 5. 6. 7; 5. 8. 1; 6. 1. 10; 6. 7. 6; 7. Pref. 10; 7. Pref. 15; 8. 6. 12; 9. Pref. 9; 9. 6. 2; 10. 9. 1; 10. 16. 12) e acumem em nove (Vitr. 1. 1. 17; 2. 8. 11; 3. 5. 14; 6. 1. 10; 6. 2. 1; 6. 2. 4; 6. 3. 11; 8. 6. 12; 9. 6. 2).

No prefácio que abre o Livro III (Vitr. 3. Pref.), Vitrúvio discute esses atributos a partir de uma fala atribuída a Sócrates, o qual teria afirmado que seria bom que os homens tivessem nascido com janelas no peito (hominum pectora fenestrata), de maneira a dar à visão os seus juízos, permitindo seu exame de modo transparente (non occultos haberent sensus sed patentes ad considerandum). Dessa maneira, segundo Vitrúvio, não apenas os juízos poderiam ser escrutinados, mas os conhecimentos adquiridos, os quais não seriam, por isso, mal julgados (sed etiam disciplinarum scientiae sub oculorum consideratione subiectae non incertis iudiciis probarentur), estabelecendo-se uma autoridade incontestável aos doutos e aos sábios (sed et doctis et scientibus auctoritas egregia et stabilis adderetur). Não sendo assim, para o autor, resta impossível ao público julgar o conhecimento prático (ingeniis scientias) dos artífices (artificis), aos quais resta, se não tiverem recursos financeiros para tal, demonstrar seu prestígio por meio da tradição das oficinas (vetustate officinarum) em que trabalharam ou pelo reconhecimento popular e eloquência (gratia forensi et eloquentia), alcançando, assim, a autoridade intelectual que prova seus conhecimentos práticos (pro industria studiorum auctoritates).

Vitrúvio prossegue esta discussão trazendo exemplos de estatuários e pintores antigos (antiquis statuariis et pictoribus), os quais, segundo ele, merecem ser lembrados eternamente para a posteridade (aeterna memoria ad posteritatem) por serem dignos de mérito e reconhecimento por meio de comendas (dignitates notas et commendationis gratiam), como Míron, Policleto, Fídias e Lisipo. Porém, outros menos reconhecidos, segundo Vitrúvio, não tinham menor apreço pela arte (studio), engenho (ingenio) nem sagacidade (sollertiaque) ao produzir obras igualmente perfeitas (egregie perfecta fecerunt opera) para cidadãos menos abastados (humili fortuna civibu). Estes, entretanto, não alcançaram o reconhecimento (nullam memoriam), nem lhes faltou conhecimento prático - aqui num claro paralelo ao ingenium - nem a sagacidade na arte (non ab industria neque artis sollertia sed), mas foram traídos pelo destino (sed a Felicitate fuerunt decepti), como Hégeas de Atenas, Quíon de Corinto, Míagro da Foceia, Fárax de Éfeso e Beda de Bizâncio, entre tantos outros (alii plures), como aponta Vitrúvio. Segundo ele, pintores como Aristómenes de Taso, Pólicles e Androcides de Cízico, Teo de Magnésia, entre outros, não careciam de conhecimento prático (industria), nem de apreço pela arte (studium), nem de sagacidade (sollertia), sendo, no entanto, prejudicados pela escassez de recursos familiares (rei familiaris exiguitas), pouca fortuna (inbecillitas fortunae) ou derrota na concorrência com adversários (certationis contrariorum superatis), o que lhes diminuiu o prestígio (obstitit eorum dignitati).

Por fim, lamentando que os verdadeiros juízos convivem com falsas aprovações (conviviorum a veris iudiciis ad falsam probationem), por conta das virtudes permanecerem obscuras, Vitrúvio declara que a adulação e a ambição não teriam sentido (non gratia neque ambitio valeret) se os sentimentos, opiniões e conhecimentos aparecessem de forma clara e transparente (sensus et sententiae scientiaeque disciplinis auctae perspicuae et perlucidae), como queria Sócrates. Assim, seriam garantidos encargos àqueles que tivessem alcançado verdadeiramente o conhecimento das doutrinas no seu campo de trabalho (veris certisque laboribus doctrinarum pervenissent ad scientiam summam), sem que estes tivessem que pleitear por encomendas.

Antonio Corso e Elisa Romano (1997CORSO, A.; ROMANO, E. (1997). Vitruvio. De Architectura. A cura di Pierre Gros, traduzione e commento di Antonio Corso e Elisa Romano. Torino, Giulio Einaudi Editore . , p. 265), apontam, a respeito deste prefácio, a insistência de Vitrúvio no fato das artes figurativas serem baseadas na ciência (scientiae), ou seja, em uma relativa bagagem de conhecimento, que se encontra no interior (penitus) do artista. Tal concepção, segundo eles, aponta para o papel do artifex doctus, computado entre os docti et scientes, cujas obras são expressão de sua sapientia. Esta visão do artista "rico de cultura”, que embute em sua arte a sua sabedoria, conforme os autores, formou-se no período clássico, a partir da reflexão de artistas excepcionais, como Polignoto, Policleto, Fídias, Zêuxis e Parrasio, Pausia, Praxíteles, Lisipo e Apeles, que deram ao fazer artístico um caráter subjetivo, que mesmo com redimensionamentos helenísticos e romanos, perdurou até a primeira Idade Imperial. Ainda sobre esta temática, sublinham que a necessidade apontada por Vitrúvio do artista ter uma boa capacidade retórica, remete à figura do artista como "crítico de arte”, uma vez que quem inventa obras significativas deve saber ilustrá-las verbalmente. Esta figura do artista crítico se firmou, segundo os autores, na primeira Idade Helenística, com Xenócrates e Antígono de Caristo. Nos tempos próximos de Vitrúvio, tal figura era característica de Pasíteles, o qual acompanhava a sua prática artística de exposições críticas de seus próprios ideais (Corso; Romano, 1997, p. 266). O confronto entre a eficácia da imagem e a da palavra é, segundo eles, um topos tardo-republicano e augustano, lembrando o Imagines de Varrão, no qual se propunham imagens jônicas acompanhadas de descrições escritas.

Concepção análoga de ars e do papel do artifex pode ser encontrada em Plínio, o velho. Segundo o tradutor e comentarista Antonio Corso (1988CORSO, A. (1988). Libri XXXIV, XXXV, XXXVI, Introduzioni, note e glossario degli artisti. In CORSO, A.; MUGELLESI, R.; ROSATI, G. Gaio Plinio Secondo. Storia Naturale, vol. V. Torino, Giulio Einaudi Editore., p. 104-105), para Plínio o ponto de partida da atividade artística não se encontra na criatividade do artifex, mas na própria Natureza, a partir da materia, não sendo possível, por conseguinte, extrair uma obra de excelência de um material ruim, sendo função da arte dar plena expressão às qualidades dos materiais. Corso propõe, ainda, a vinculação desta premissa com noção de prepon, ou decoro, a qual deve guiar a relação de harmonia entre as atividades humanas e as condições naturais, criticando o uso da arte para fins da luxuria, indicando, ainda, a adesão de Plínio à premissa da condição mimética da arte, a qual assume o papel fundamental da Natureza como fonte de toda preceptística.

No entanto, Corso aponta que a excelência da materia, embora fundamental, não é suficiente para garantir a qualidade da arte. Para bem realizá-la, se faz necessário exercê-la com perícia e maestria excelentes, amparadas no acumulado de conhecimento de uma ars. Porém, Plínio reconhece um terceiro elemento na atividade artística, o artifex, que embora em menor importância, completa o trinômio da arte: materia, ars e artifex. A partir de biografias de artistas excepcionais, Plínio descreve este momento no qual a contribuição pessoal do artifex se soma à natura e à ars como o terceiro componente da realização artística, como exemplifica a trajetória de Lisipo (Plin. HN. 34. 63-67). Este terceiro elemento descende da trajetória da ars, como acumulado anônimo das capacidades elaborativas humanas, sobressaindo uma sequência de artificis aos quais se atribuem qualidades excepcionais, alinhando Plínio com o pensamento tardo-clássico e helenístico de apreciação social do artista de exceção, garantindo a ele um status de pessoa de cultura, um artifex culto.

Retornando a Vitrúvio, a associação dos dois atributos, ingenium e sollertia, aparece novamente no Livro V (Vitr. 5. 6. 7) quando o autor descreve a necessidade de adaptação das prescrições da symmetria na construção dos teatros. Segundo ele, é preciso que o arquiteto saiba distinguir em quais proporções ele deve seguir as regras da symmetria e quais ele deve adaptar (temperari) por efeito de exigências naturais do local (loci naturam). Para ele, há partes que, em razão do uso (usus), não podem sofrer alterações, como os degraus e as passagens, mas, por outro lado, a escassez de materiais, por exemplo, pode ensejar diminuições (demere) ou ampliações (adicere) feitas com bom senso (sed cum sensu). Ele finaliza afirmando que isso se dará se o arquiteto tiver experiência prática (usu peritus) e se mantiver o engenho ativo (ingenio mobili) e a sagacidade (sollertiaque).

O tema dos ajustes das prescrições e as qualidades do bom arquiteto ao proceder estas adaptações reaparece no Livro VI (Vitr. 6. 2. 1- 4), dedicado às residências. Nele, Vitrúvio reafirma que o maior cuidado (maior cura) do arquiteto deve ser no estabelecimento das razões proporcionais a partir das partes (proportionibus ratae partis). Porém, após o estabelecimento deste sistema de cálculos de symmetria, com agudeza (acuminis) é apropriado prover as adaptações (adiectionibus temperaturas efficere) à natureza do local (naturam loci), aos usos (usum) e à aparência (speciem), através de diminuições e ampliações (detractum aut adiectum) no sistema de symmetria de maneira que tudo seja visualizado corretamente (uti id videatur recte) e nada falte na aparência desejada (in aspectuque nihil desideretur). Na sequência, o autor explica sobre a necessidade dos ajustes em razão da altura das obras e da visualização de determinadas partes, que podem parecer incorretas, segundo o sistema de symmetria, pela sua distância do observador, e reforça, ao final, que estes são realizados não apenas com a agudeza do engenho (ingeniorum acuminibus), mas com as doutrinas (doctrinis), aludindo à sagacidade (sollertia) que o conhecimento teórico em diferentes artes proporciona.14 14 O tema dos ajustes e sua vinculação com os preceitos de symmetria e eurythmia vitruvianos é tratado por Manenti (2020). Segundo Corso e Romano (1997, p. 882-883), os ajustes constituem um momento fundamental da preceptística e apontam que a valoração da agudeza (acumem) do arquiteto nestes ajustes se assemelha, longinquamente, com os conceitos de kairós e cháris, próprios do fazer artístico do primeiro Helenismo, ligados ao estado de graça do artista, repensada através da dialética entre a natura - condição prévia natural e regras da symmetria - e a ars - referindo-se às qualidades do artifex - típica do ecletismo Tardo-Republicano.

Igual proposição, a respeito dos ajustes, aparece mais a frente no Livro VI (Vitr. 6. 3. 11), quando o tema das salas é tratado. Ao se referir às salas de tradição não itálica, chamadas cizicenas, Vitrúvio recomenda novamente que as razões proporcionais devem ser mantidas. Porém, caso aconteça o obscurecimento das aberturas pelos muros, então se deve promover a diminuição (detractiones) e o aumento (adiectiones) no sistema de symmetria com engenho e agudeza (ingenio et acumine) de modo a não divergir da beleza perfeita (perficiantur venustates) da symmetria verdadeira (veris).

O atributo da sagacidade (sollertia), ou a falta dele, é invocada adiante, no Livro VI (Vitr. 6. 1. 10), para distinguir os povos. As nações do sul (meridianae nationes), segundo Vitrúvio, têm agudeza da mente (animis acutissimis) e uma infinita sagacidade em suas deliberações (infinitaque sollertia consiliorum). Por outro lado, aqueles que nascem nas regiões frias (efrigeratis nascuntur regionibus), têm as armas sempre prontas (armorum vehementiam paratiores) e não sentem medo (sine timore), mas têm mentes lentas (tarditate animi), são precipitados (sine considerantia inruentes) e desprovidos de sagacidade (sine sollertia), o que frustra seus planos (suis consiliis refragantur).

Esta mesma sagacidade (sollertia) é abordada, ainda, em outras três passagens, reforçando o aspecto do conhecimento em diversas áreas como diferencial na resolução de distintos problemas. No Livro IX (Vitr. 9. 6. 2), Vitrúvio aborda o método de cálculo (ratiocinationibus) astronômico desenvolvido pelos Caldeus para explicar os fatos e o futuro, o qual, para ele, foi desenvolvido por homens com máxima sagacidade e agudeza (sollertia acuminibusque). No Livro X (Vitr. 10. 9. 1), dedicado às máquinas de guerra, Vitrúvio explica um sistema muito útil que permite medir a distância percorrida pelas carroças ou pelos barcos, o qual, segundo ele, foi desenvolvido com suma sagacidade (summa sollertia), empregando conhecimentos de diferentes áreas. Nele, as rodas possuem um diâmetro específico e um ponto de marcação que, por meio de engrenagens, permite medir a distância percorrida. Da mesma maneira, uma roda externa nos barcos permite, ao entrar em contato com água, aferir as distâncias navegadas.

Adiante, ao final do Livro X (Vitr. 10. 16. 12), outro exemplo desta "inteligência multidisciplinar” é relatado por meio das estratégias de Trífon, um arquiteto alexandrino em meio ao cidadãos sitiados de Apolônia. Segundo Vitrúvio, os cidadãos se encontravam desanimados pela falta de uma estratégia para enfrentar a informação de que os inimigos estavam escavando túneis, impossíveis, aparentemente, de se prever por onde tentariam furar as muralhas. O arquiteto propôs, então, a construção de diversos outros túneis no entorno, os quais receberam vasos que soavam quando a escavação dos inimigos se aproximava, dando a informação de sua localização e permitindo a retaliação. De modo semelhante, no cerco à Massília (Marselha), cidade à beira mar, o rebaixamento do fosso e a construção de valas permitiu que os cidadãos inundassem os túneis inimigos. Além disso, criaram uma barreira de fogo à frente da muralha em terra e, ao se aproximarem os inimigos com um aríete, laçaram-no e suspenderam-no com um cabrestante naval, impedindo que atingisse a muralha. Para Vitrúvio, a vitória e a libertação dos cidadãos se deu não pelas máquinas (victoriae civitatum non machinis), mas pela sagacidade no raciocínio do arquiteto contra as máquinas inimigas (sed contra machinarum rationem architectorum sollertia), o qual empregou seus conhecimentos amplos, envolvendo diversas áreas do saber, dando resposta às diferentes demandas que se apresentavam.15 15 Sobre o tema, Antonio Corso e Elisa Romano destacam o fato de Vitrúvio sublinhar a indispensável superioridade do homem sobre as suas próprias invenções, sendo que a sollertia marca contemporaneamente os limites de um pensamento técnico que não é autônomo em relação de uma visão antropocêntrica (1997, p. 1406).

Assim, a partir destas proposições vitruvianas, verifica-se que o estatuto do arquiteto ideado pelo autor romano, repercutindo a conjuntura tardo-republicana, a qual reflete posturas anteriores tardo clássicas e helenísticas, é de um artifex que conserva o conhecimento acumulado de sua ars, um arché-tekton por excelência, dentro de um sistema mimético, que imita a natureza, desvenda seus preceitos e aprende com a experiência dos demais e com a sua própria, num processo de melhora constante caracterizando a noção de ingenium. Porém, para Vitrúvio este artifex especializado necessita ter um conhecimento amplo, que transcende a especificidade de sua ars, cumulando conhecimentos diversos sobre outras áreas, um homem de cultura, um artifex doctus, capaz de mobilizar diferentes conhecimentos e capacidades na resolução de situações particulares e inesperadas, ajustando a base de conhecimento acumulado às circunstâncias, a partir da noção de sollertia.

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  • VERNANT, J. (2018). As origens do pensamento grego Rio de Janeiro, Difel.
  • 1
    Cf. Alfred Ernout (1924ERNOUT, A. (1924). Lucrèce. De la Nature. Paris, Les Belles Lettres. ), este epíteto reprisa, entre outros autores, Virgílio (Verg. G. 1. 64)
  • 2
    Elisa Romano (1987ROMANO, E. (1987). La capanna e il tempio: Vitruvio o dell'architettura. Palermo, Palumbo., p. 111-112) assinala que à descoberta do fogo, que marca o nascimento da convivência, concorre outro fator decisivo para o processo civilizatório, a descoberta da linguagem, ou seja, a possibilidade de exprimir significados precisos. A estes, soma-se outro fator no processo de estabelecimento de uma sociedade civil: a construção da habitação, simbolizada pela cabana.
  • 3
    Joseph Rykwert (2003RYKWERT, J. (2003). A casa de Adão no paraíso: a idéia da cabana primitiva na história da Arquitetura. São Paulo, Perspectiva., p. 120) reforça a afiliação de Vitrúvio com Lucrécio, sobretudo a respeito da vinculação da invenção do fogo com a criação das primeiras construções. O autor lembra que o tema da invenção das artes a partir da observação da natureza está presente na cosmogenia de Demócrito, condensada por Hecateu de Abdera. Este apresenta o tema sugerindo três estágios: a consciência da necessidade, o exemplo dos animais - o qual leva à invenção das artes - e, por último, a elaboração das artes, fundamentada sobre o que resta quando as necessidades são atingidas.
  • 4
    Pierre Gros (2003GROS, P. (2003). Vitruve. De L’Architecture: Livre II, Texte établi et traduit par Louis Callebat, introduit et commenté par Pierre Gros. Paris, Les Belles Lettres. , p. 74) aponta que o termo ratiocinantes aqui é empregado no sentido de técnica definido por Cícero (Cic. Inv. rhet. 1. 34; 57), a qual parte da observação de realidades acessíveis ao seu tempo para inferir as técnicas práticas de um tempo passado, permitindo, por meio da observação e do raciocínio, a projeção no tempo.
  • 5
    Para Gros (2003GROS, P. (2003). Vitruve. De L’Architecture: Livre II, Texte établi et traduit par Louis Callebat, introduit et commenté par Pierre Gros. Paris, Les Belles Lettres. , p. 64), a passagem vitruviana trata de apresentar um ponto de partida para o desenvolvimento da técnica humana, apresentando uma visão clara de progresso da técnica construtiva, que se aprimorou pari passu ao processo civilizatório. Gros aponta (2003, p. 67), também, que foi a partir da imitação dos animais construtores e da emulação entre os próprios homens, que se chegou à noção de casa (domus), primeira unidade arquitetônica autônoma, concebida em função de técnicas e necessidades específicas.
  • 6
    Cabe aqui lembrar do conceito vitruviano: "symmetria est ex ipsius operis membris conveniens, consensus ex partibusque separatis ad universae figurae speciem ratae partis responsus” (Vitr. 1. 2. 4). O tema é desenvolvido, ainda, por Manenti (2019MANENTI, L. (2019). The operational concepts in the Vitruvian system of design. Revista Archai 26, e02605. https://doi.org/10.14195/1984-249X_26_5).
  • 7
    Os paralelos entre os textos de Vitrúvio e Cícero, enfocando o elocutio, são explorados por Santos (2020SANTOS, S. G. C. dos. (2020). Vitruvian architecture and ancient rhetoric. Revista Archai , (28), e02804. https://doi.org/10.14195/1984-249X_28_4 ).
  • 8
    Aqui se retoma um dos seis componentes da Arquitetura, elencados em Vitr. 1. 2. 2, o qual é definido como: Dispositio autem est rerum apta conlocatio elegansque compositionibus effectus operis cum qualitate. A partir desta definição, pode-se entender este procedimento como análogo ao que se chama de composição a partir de elementos (membrus) ou, ainda, ideação de uma obra, a qual se expressa, como aponta Vitrúvio na sequência, através de desenhos: Species dispositionis, quae graece dicuntur ideae, sunt hae: ichnographia, orthographia, scaenographia.
  • 9
    A respeito da dupla de conceitos quod significatur e quod significant, Corso e Romano apontam a sua formulação genérica e imprecisa (1997CORSO, A.; ROMANO, E. (1997). Vitruvio. De Architectura. A cura di Pierre Gros, traduzione e commento di Antonio Corso e Elisa Romano. Torino, Giulio Einaudi Editore . , p. 67-68), levando a distintas interpretações: forma e conteúdo, a partir de Carl Watzinger, forma e função, a partir de Francesco Pellati, objeto e projeto, conforme Curt Fensterbusch, construção e a sua explicação, a partir de Silvio Ferri, ou, ainda, uma interpretação incompleta dos conceitos gregos de ta semainonta e ta semainomena, levando à simplificação do entendimento em termos da relação entre construção e o opúsculo que a explica. Essa interpretação é seguida por Gros (1982GROS, P. (1982). Vitruve: l’architecture et sa théorie, à la lumière des études récentes: Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, II, 36, 1, Berlin, New York, p. 659-695., p. 659-695) e Fleury (2003FLEURY, P. (2003). Vitruve. De L’Architecture: Livre I, Texte établi, traduit et commenté par Philippe Fleury. Paris, Les Belles Lettres. , p.69), enquanto Callebat (1994CALLEBAT, L. (1994). Rhétorique et Architecture dans le “De Architectura” de Vitruve. In: Le projet de Vitruve. Objet, destinataires et réception du De architectura. Actes du colloque international organisé par l'École française de Rome, l'Institut de recherche sur l'architecture antique du CNRS et la Scuola normale de Pise (Rome, 26-27 mars 1993), Rome, 1994, p. 31-46 , p. 35) vê uma transferência para a "teoria da Arquitetura” de uma relação propriamente linguística e retórica, propondo que o primeiro represente os recursos de um sistema de expressão e de comunicação e o segundo a seleção destes elementos para uma obra concreta. Elisa Romano (1987, p.55), propõe, ainda, a leitura a partir do binômio objeto e demonstração, conduzida no confronto do objeto com um método racional que implica conhecimento.
  • 10
    Essa terceira dupla de conceitos, ingenium e disciplina, conforme os comentadores Corso e Romano (1997CORSO, A.; ROMANO, E. (1997). Vitruvio. De Architectura. A cura di Pierre Gros, traduzione e commento di Antonio Corso e Elisa Romano. Torino, Giulio Einaudi Editore . , p. 68), é requisito para todos que exercitam uma ars, ou seja, um artifex, entre os quais se encontra o architectus. Para eles, Vitrúvio retoma uma discussão desenvolvida por Cícero no De Oratore, na qual se opõem as visões de Antonio, o qual defende que o bom orador deve possuir dotes naturais e experiência forense, e de Crasso, que afirma a necessidade de uma vasta cultura (cf. Cic. De or. 1. 35; 39; 44; 80; 113).
  • 11
    Sobre o papel dos sábios, Jean-Pierre Vernant (2018VERNANT, J. (2018). As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro, Difel., p. 63), ao descrever o universo espiritual da polis grega, pautada pelo debate público das questões comuns e pela publicização das manifestações mais importantes da vida social, discute o papel dos sábios, os quais se dirigem à cidade por meio da palavra ou pela escrita, divulgando o conhecimento, que ao mesmo tempo que afasta o caráter de mistério, oculto, não deixa de ser estranho à vida ordinária. A Sabedoria e a Filosofia não requerem mais rituais de ingresso para serem reveladas, mas, por outro lado, exigem disciplina, pesquisa e conhecimentos como de matemática, os quais conservam certa relação com as práticas religiosas, mantendo a diferenciação entre os sábios e os demais cidadãos.
  • 12
    Antonio Corso e Elisa Romano apontam aqui a vinculação com o conceito grego de autarkeia (1997CORSO, A.; ROMANO, E. (1997). Vitruvio. De Architectura. A cura di Pierre Gros, traduzione e commento di Antonio Corso e Elisa Romano. Torino, Giulio Einaudi Editore . , p. 860), ou seja, a auto-suficiência moral e intelectual. Esta autonomia do homem sábio, e sua posição de cidadão do mundo fazem parte do pensamento tipicamente helenístico, alinhado aos propósitos de César, o qual desejava construir uma monarquia semelhante à helenística, da qual faz parte a transformação da Arquitetura nesses moldes de exigências especulativas e preceituais do helenismo asiático (1997, p. 861-862).
  • 13
    O atributo do ingenium comparece no tratado em dezenove passagens (Vitr. 1. 1. 3; 1. 1. 18; 2. 1. 3; 2. 1. 6; 3. Pref. 1-2; 5. Pref. 1; 5. 6. 7; 6. Pref. 5; 6. 2. 4; 6. 3. 11; 7. Pref. 9-10; 9. 8. 2; 10. 2. 11), a sollertia em vinte e oito pontos (Vitr. 1. 1. 1; 1. 1. 17-18; 2. Pref. 1; 2. 1. 6; 2. 8. 11; 3. Pref. 2; 3. 3. 9; 5. 4. 3; 5. 6. 7; 5. 8. 1; 6. 1. 10; 6. 7. 6; 7. Pref. 10; 7. Pref. 15; 8. 6. 12; 9. Pref. 9; 9. 6. 2; 10. 9. 1; 10. 16. 12) e acumem em nove (Vitr. 1. 1. 17; 2. 8. 11; 3. 5. 14; 6. 1. 10; 6. 2. 1; 6. 2. 4; 6. 3. 11; 8. 6. 12; 9. 6. 2).
  • 14
    O tema dos ajustes e sua vinculação com os preceitos de symmetria e eurythmia vitruvianos é tratado por Manenti (2020MANENTI, L. (2020). Integridade e Harmonia: princípios de beleza em Vitrúvio e Alberti. In: Mário Henrique Simão D'Agostino; Francesco Furlan; Andrea Loewen; Ana PaulaG. Pedro . (Org.). Leon Battista Alberti: Humanismo e racionalidades modernas. 1ed.São Paulo: Annablume, p. 141-170.). Segundo Corso e Romano (1997CORSO, A.; ROMANO, E. (1997). Vitruvio. De Architectura. A cura di Pierre Gros, traduzione e commento di Antonio Corso e Elisa Romano. Torino, Giulio Einaudi Editore . , p. 882-883), os ajustes constituem um momento fundamental da preceptística e apontam que a valoração da agudeza (acumem) do arquiteto nestes ajustes se assemelha, longinquamente, com os conceitos de kairós e cháris, próprios do fazer artístico do primeiro Helenismo, ligados ao estado de graça do artista, repensada através da dialética entre a natura - condição prévia natural e regras da symmetria - e a ars - referindo-se às qualidades do artifex - típica do ecletismo Tardo-Republicano.
  • 15
    Sobre o tema, Antonio Corso e Elisa Romano destacam o fato de Vitrúvio sublinhar a indispensável superioridade do homem sobre as suas próprias invenções, sendo que a sollertia marca contemporaneamente os limites de um pensamento técnico que não é autônomo em relação de uma visão antropocêntrica (1997, p. 1406).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2022
  • Aceito
    27 Out 2022
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