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Sobre o conceito platônico de to metaxy: teoria da percepção e experiência cultual

On the platonic concept of to metaxy: theory of perception and cultual experience.

Resumo:

Pretendo neste artigo examinar a noção de intermediário (to metaxy) nos Diálogos de Platão, especialmente em Teeteto e O Banquete. Na primeira seção, examino previamente no Teeteto a noção de to metaxy como o resultado da mistura entre o percipiente e o percebido, de modo que o reino fenomênico pode ser explicado por um terceiro gênero, identificado como to metaxy, originado de certa espécie de dynamis. Na segunda seção, investigo a referida noção no Banquete, proferida por Diotima de Mantineia em seu encômio a Eros como nume. Meu propósito nessa última seção é demonstrar que a apreensão da Forma do Belo em si demanda uma nova abordagem hermenêutica, que denomino hermenêutica cultual, pela qual Platão concebe um liame inextricável entre as concepções mítica e racional das Ideias.

Palavras-chave:
Intermediário; Percepção; Epistemologia; Ontologia; Mito.

Abstract:

In this paper I intend to examine the notion of intermediate in Plato´s dialogues, especially Theaetetus and Symposium. In the first section, I investigate previously in Theaetetus the notion of to metaxy as the result of mixture between percipient and perceived, by which the realm of phenomenon can be explained by the third genre, identified as to metaxy, born from a certain kind of dynamis. In the second section, I examine the mentioned notion s Symposium, expressed by Diotima of Mantineia on her encomium of Eros as daimon. My purpose in this last section is to demonstrate that the apprehension of Form of Beauty itself requires a new hermeneutic approach, which I call cultual hermeneutic, by which Plato conceives an inherent link between mythical and rational conceptions of Ideas.

Keywords:
Intermediate; Perception; Epistemology; Ontology; Myth

Introdução

A contemporaneidade, centrada na crítica à filosofia do sujeito, nos legou a imagem de um Platão idealista, cujo racionalismo preceitua o âmbito fenomênico como insidioso e especioso, obstando a apreensão cognitiva da ideia, de modo que o filósofo ateniense se converteu, para nossos coetâneos, o arauto do que Michel Foucault convencionou chamar de a tradição logocêntrica da metafísica clássica, cindindo os domínios do logos e das paixões, da essência e dos fenômenos, da ideia e da aparência, pela qual defende a superveniência ontológica da essência ante o fenômeno. Porém, uma relevante e estratégica noção permeia o corpus platonico, permitindo-nos reavaliar o estatuto ontológico e epistemológico da imagem, relativa à noção de to metaxy, concebida como intermediário, instituindo o campo fenomenal como etapa necessária e imprescindível ao percurso de verificação epistêmica, à medida que realiza o liame entre as dimensões aparentemente antitéticas, para a mencionada tradição, do sensível ao inteligível. Não se trata de compreender a noção de intermediário como elemento reiterativo de um suposto dualismo espargido no corpus do filósofo ateniense, mas de entendê-la como conceito precípuo para o desvelamento da relevância ontológica da realidade fenomênica e sua possível relação ou não com a realidade suprassensível.1 1 . Olivier Renaut discrimina haver três acepções de to metaxy nos Diálogos, (i) um intervalo entre dois limites, evidenciado, por exemplo, no tempo intermediário entre o processo de Sócrates e sua morte (Phd. 58c) assim como no espaço intermediário entre o fogo e os homens acorrentados, descrito na imagem da caverna (R. 514 b), configurando um meio dinâmico onde se opera um duplo devir. Renaut (2014, p. 125): “Cette caractéristique de l’intermédiaire se retrouve dans beaucoup de réalités mouvantes qui permettent en particulier les sensations. Ainsi, est appelé ‘intermédiaire’ le milieu qui permet l’interaction entre le sentant et le senti dans l’Théétète (154 a, 156 d, 182 a)”. (ii) Metaxy é pensado como a posição mediadora entre dois extremos, cujos polos se definem pela relação de negação, oposição ou contraditoriedade, podendo ser atestado (a) na doxa entre o ser e o não ser (R. 477 a - 480 a), (b) nas potências matemáticas (Tht. 147 e - 148 b), (c) nos numes entre os deuses e os mortais (Smp. 202 d-e), (d) nos indiferentes entre o bem e o mal (Grg. 468 a), (e) o thymos entre os princípios opostos da razão e do desejo. (iii) O intermediário é a orientação da polarização ou dualidade que mediatiza, não sendo nem intervalo indiferenciado nem posição mediadora, revelando-se como etapa determinada para um bem, porquanto não há, nessa acepção, metaxy que não seja portador de julgamento de valor, prescrevendo como a realidade deve se distribuir entre os polos, exemplificado na reta opinião entre ignorância e conhecimento (orthe doxa metaxy phroneseos kai amathias) (Smp. 202a), assim como no filósofo, intermediário entre o sophos, cuja sabedoria é plena e fúlgida, e o ignorante (philosophon de onta metaxy einai sophou kai amathous) (Smp. 204 b).

Pretendo neste artigo deslindar dois momentos fundamentais em que to metaxy aparece, de um lado, (i) em Teeteto 151 d- 160e como o meio espacial assim como o fenômeno perceptivo resultante do nexo entre o percipiente e o percebido mediante os argumentos (i) da ciência como percepção, (ii) do homem medida preconizado por Protágoras e (iii) da identidade entre o todo e o movimento, e, de outro, no Banquete 201 d - 212c referente ao encômio de Eros, proferido pela Estrangeira de Mantineia, como o intermediário numinoso entre o divino e o humano, rejeitando as prédicas anteriores dos convivas que equivocadamente o identificavam a um deus. Em ambos os casos, o território do visível, onde se revela a vigência do reino doxástico, intermediário especioso entre o ser e o não ser, a ciência e a ignorância, atestado antes em República V 477b,2 2 . Por economia de exposição e para não exceder os limites do artigo remeto o leitor à definição de to metaxy em República V circunscrita à doxa. Cf. Rachid (2020, p. 7) “Se o conhecimento (gnosis) incide sobre o ser (to on) e a nescidade (agnoia) sobre o não ser (me on), há, precisamente, um intermediário entre o ser puro e o não ser absoluto, entre os horizontes ôntico e meôntico, entre a luz diurnal e a noite escura, entre a ciência (episteme) e a ignorância (agnoias) que é a opinião (R. 477b). A opinião é entendida como intermediário entre, de um lado, a plenitude do ser e de sua inteligibilidade, revelada pela posse da ciência e, de outro, o recôndito lugar do esquecimento, partilhado pela ignorância”. Renaut (2018, p. 76): “Socrates has to define doxa as a metaxy in a hierarchical way, as a median position between what is truly known and what is simply ignored. In giving its right place as a median position, Socrates makes doxa a class of judgement in regard to true knowledge, accounting for its inconsistency and nevertheless its psychological power”. Chama-se pensamento (dianoia) e não intelecção a faculdade do geômetra e congêneres, pois o pensamento é também considerado um intermediário entre a opinião e o intelecto (metaxy ti doxes te kai nou) (R. 511 d). se associa a um modo específico de conhecimento, próprio à dimensão humana e cujo escrutínio dar-se-á iniludivelmente pela remissão ao logos.

Nas duas referidas passagens, estratégicas para o entendimento do estatuto epistemológico e ontológico da realidade fenomênica, se circunscreve a prevalência conceitual de to metaxy como etapa determinante do processo gnosiológico, não havendo relação de contrariedade entre conhecimento e sensação, mas a avaliação dos limites epistêmicos próprios ao fenômeno perceptivo, cuja natureza é metabólica e transiente. Evidencia-se no excurso da doutrina secreta do Teeteto, espécie de proêmio exegético da gigantomaquia cosmogônica do Sofista, na medida em que se contrapõem teses divergentes acerca do problema da ousia, a incorporação de um léxico pertinente às questões ontológicas desenvolvidas no corpus platonico, como os conceitos de poder (dynamis), agente (poioun), paciente (paschon) e movimento (kinesis), indispensáveis à compreensão da relação precípua entre o sensível e o inteligível. Do mesmo modo, a prédica de Diotima de Mantineia no Banquete, prescrevendo a ascese anímica do visível gênito ao invisível incorrupto, elucida por meio de to metaxy a relevância da semântica da visibilidade para a apreensão das formas ingênitas, incorruptas e imutáveis.

A teoria da percepção: metaxy como meio espacial.

Procedendo à análise da posição do Teeteto no interior do corpus platônico, há de se ressaltar o método estilométrico formulado por Lewis Campbell, que o insere no fim do grupo formado por República, Fedro e Parmênides, diálogos prévios ao grupo constituído tanto por Sofista, Político, nos quais se deslindam o método de divisão por formas, quanto pelo Timeu, Crítias e Leis, ressaltando linhas de pensamento divergentes relativas à reavaliação da teoria platonica das ideias, já que, de um lado, uns defendem que a partir do Parmênides há o rompimento com a tese das ideias transcendentes enquanto outros propugnam haver a autocrítica dessa tese. Na Grécia clássica, locus longínquo à moderna fragmentação do saber, inexistem fronteiras demarcadas entre ética, epistemologia e ontologia, de modo que os argumentos gnosiológicos expostos no Teeteto provêm da necessidade deontológica de diferenciar a postura filosófica socrática do raciocínio erístico sofístico. Proponho um recorte analítico do diálogo circunscrito a 151 d a 160 e, em que se discriminam três premissas referentes ao âmbito fenomênico, (i) ciência não é senão percepção (estin episteme e aisthesis), (ii) o homem é a medida de todas as coisas (panton chrematon metron), (iii) o todo é movimento (to pan kinesis).

Se no Sofista o Estrangeiro de Eleia efetua a crítica aos partidários da corporeidade, representados pelos filhos da terra, assim como aos defensores do incorpóreo, referentes aos amantes das Formas, mediante o agon filosófico, evidenciado na lide dos gigantes, preceituando, pelo escrutínio dessas teses antitéticas, o poder da comunidade (dynamis koinonias) entre os gêneros supremos (megista gene), pelo qual se conhece a tecedura entre as formas inteligíveis (symploke ton eidon), condição de todo discurso, no Teeteto Platão mobiliza os vários argumentos relativos à compreensão da realidade fenomênica.3 3 . Tanto o Teeteto quanto o Sofista se inscrevem na fase de reavaliação e refinamento, conforme preconiza Sócrates ao personagem homônimo (Tht. 156a), da crítica aos mobilistas corpóreos e aos imobilistas incorpóreos, porquanto se deslindam em ambos os diálogos perspectivas teóricas antitéticas em relação ao processo de gênese e à natureza incorrupta da essência, especificamente no primeiro texto circunscrito ao excurso da doutrina secreta e no segundo adstrito à conspícua passagem da gigantomaquia cosmogônica. Assim como há no Sofista a lide dos gigantes, opondo os filhos da terra aos amantes das Formas, afere-se no Teeteto a contraposição entre dois tipos de mobilistas, implicando no raciocínio proposto por Sócrates a acurácia do processo perceptivo. V. Berman, 2014, p.56-57: “What is important to observe at the outset is that just as the Sophist presented two factions of giants, so, too, the Theaetetus presents two factions of fluxists (…) These paralells cannot but be deliberate on Plato’s part. The crude fluxists and the crude giants are presented as being one and the same, as are their positions”. Tratar-se-á de demonstrar, no excurso da doutrina secreta no Teeteto, como a compreensão arguta da teoria do fluxo, deslocando-se da mera empiria, circunscreve o estatuto epistemológico da aisthesis, conexo à noção reiterativa de dynamis, poder que interliga os termos de uma relação gnosiológica assim como fenomenal. O Teeteto prenuncia o escopo platonico de valoração do estatuto ontológico do sensível em torno da concepção génesis eis ousian, à medida que “essa expressão, que liga ser e devir, vistos como antagonistas nos diálogos das duas primeiras fases, aparece no Filebo, e é, sem dúvida, o que inspira a concepção sobre a natureza do cosmo no Timeu” (Iglésias; Rodrigues, 2020IGLÉSIAS, M.; RODRIGUES, F. (2020). Platão. Teeteto. Rio de Janeiro, Editora PUC-RIO; Loyola ., p. 21). Conformando a forma dialógica ao conteúdo proposto, correlato à apresentação dos argumentos em torno do conhecimento sensível, o Teeteto manifesta a estrutura de diálogo aporético análogo aos diálogos de juventude, fundamentados em busca da definição, não se reportando, devido a seu critério epistemológico de averiguação do conhecimento empírico, aos elementos constituintes da gênese da teoria das ideias, organizados nos diálogos de maturidade a partir do Mênon,4 4 . Mênon inquire a Sócrates se (i) a virtude é ensinável (areten didakton), se (ii) se obtém pelo exercício (asketon), se (iii) advém aos homens por natureza (physei) ou se (iv) é de algum outro modo (Men. 70 a). Porém, antes de se perguntar se a virtude pode ser aprendida, se é natural ou se se adquire pelo exercício, podendo ser reduzidas à estrutura proposicional ‘X é Y?’, se deve indagar o que é a virtude (o que é X?). As indagações de Mênon surgem de seu convívio com as diatribes sofísticas, respondendo tudo sobre o que se indaga. A postura socrática se difere da sofística, porque se não se sabe o que é algo (ti estin?), sua característica, não se consegue saber qual coisa algo é (hopoion ti) (Men. 71 b), i.e., sua qualidade, de modo que não se pode confundir o definiendum com o definiens. Robinson (1962, p. 50): “Socrates frequently asserts that the question ‘What is X?’ is prior to certain other questions about X, in the sense that we cannot find sure answers to those other questions until we have found sure answers to this one. You cannot, he says, know what sort of things X is until you know what X is. Thus you cannot really know whether virtue is teachable until you know what virtue is”. Dixsaut (2001, p. 32): “Comme dans l’Phédon, l’ousia est donc dans l’Euthyphron et dans l’Ménon ce qui centre sur elle la question de savoir ce que c’est, et l’eidos est ce par quoi les choses multiples acquièrent leur nom et leurs propriétés”. consoantes às teses da palingenesia e da imortalidade da alma.

A forma dialógica constitui um mecanismo astucioso a fim de Platão expor os impasses epistemológicos provocados pelos gêneros produtores de discursos na polis ateniense clássica, o rétor, o poeta, o sofista. Na primeira parte do Parmênides, a invectiva à teoria das ideias evidencia o raciocínio erístico antilógico proferido pelo Palamedes eleata, referente a Zenão de Eleia, não configurando o abandono dialético da teoria das Formas, de modo que no Teeteto habilmente se demonstra por meio do estilo inquisitório refutativo socrático dirigido ao personagem homônimo e a Teodoro os limites gnosiológicos da certeza sensível aplicados à compreensão da realidade fenomênica transiente, tendo sido resolvidos na démarche dialética pela exposição do poder da comunidade intereidética dos gêneros supremos no Sofista e, por conseguinte, pela reavaliação das relações entre os gêneros do sensível e do inteligível.

Maura Iglésias e Fernando Rodrigues anuem com a tese prolatada por Francis Macdonald Cornford em seu conspícuo livro Plato’s Theory of Knowledge, para quem “a ausência da teoria das ideias é uma estratégia deliberada de Platão para forçar a aporia da investigação, mostrando a impossibilidade de se chegar a uma conclusão sobre a questão do conhecimento quando não se faz apelo às ideias transcendentes” (Iglésias; Rodrigues, 2020, p. 22). A complexa estrutura dramática e narrativa do diálogo, articulando as múltiplas temporalidades e espaços cênicos, implicados na construção textual, evidencia tanto em seu aspecto formal quanto material o caráter zetético e não dogmático da discussão, uma vez que o conteúdo dialógico diz respeito às anotações feitas por Euclides de Mégara do relato socrático de seu encontro com o jovem Teeteto, iniciado na ciência matemática, e com seu mestre Teodoro de Cirene, do qual não há fontes históricas além do próprio Platão e Xenofonte e que serão lidas ao patrono da escola megárica e a Térpsion por um escravo, de modo que se conforma a homologia estrutural entre os estatutos ontológico e epistemológico da escrita e do escopo do diálogo correlato à percepção, porque ambos constituem imagens respectivas do discurso oral e do conhecimento inteligível. Embora o Teeteto seja inserido nos diálogos intermediários, nos quais existe a prevalência da Teoria das Formas, sua forma se liga aos diálogos socráticos aporéticos, enfatizado pelo emprego do verbo aporeo em 145d. Tendo introduzido a questão ao personagem homônimo se o aprender (to manthanein) não é o tornar-se mais sábio (to sophoteron gignesthai) a respeito daquilo que se aprende (peri ho manthanei) (Tht. 145d 5), Sócrates institui a refutação, elenchos, em torno das prováveis definições de ciência, evocando a célebre aporia do Mênon 80 e.

A primeira definição de ciência (episteme) dada por Teeteto colige quatro verbos referentes para a epistemologia platonica, dokeo, aisthanomai, epistanomai, phainomai, reiterando o jogo semântico entre os campos gnosiológicos da parecença, do verossímil, do conhecimento e da percepção e exprimindo a indistinção do interlocutor socrático entre eles, uma vez que, para Teeteto, aquele que tem a ciência de algo (ho epistamenos ti) parece-lhe perceber 5 5 . O texto emprega evidentemente o discurso direto (dokei moi aisthanestai), construção recorrente no corpus platônico justamente para evidenciar um tipo de conhecimento proveniente do que nos (a) parece. Sigo a tradução de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues (2020) que mantêm a relação entre a forma nominal episteme e suas formas verbais. O emprego recorrente de verbos e de substantivos que exprimem o âmbito da parecença e, deste modo, fenomênico, território fugidio da pólis ateniense, onde há a variabilidade das opiniões nos tribunais e nas assembleias, explicita a relevância tanto epistemológica quanto ética do diálogo. David Sedley retamente demonstra haver uma demarcação tênue entre essas áreas no Teeteto, rejeitando a ulterior divisão propugnada pela tradição platonista tardia (later Platonist tradition) em lógica (conhecimento formal), física e ética (conhecimentos materiais), uma vez que o télos platônico se concentra na distinção entre, de um lado, discursos que se pretendem verdadeiros e, de outro, logoi que visam ser verossímeis. Sedley (2010, p. 64): “At Timaeus 29 b3 - d3 he distinguishes just two kinds of discourse (lógos): inherently unstable discourse about the sensible world, in other words, physics; and inherently stable discourse about being. The latter kind of discourse acquires its stability from the fact that its proper objects are Forms, entities not subject to change”. aquilo de que tem a ciência (touto ho epistatai) e, ao menos como agora aparece (phainetai), ciência (episteme) não é outra coisa senão percepção (aisthesis) (Tht. 151e 2-3). Tendo associado a episteme ao âmbito do (a) parecer e, por conseguinte, do fenomênico transiente, o logos primeiro de Teeteto permite a Sócrates a referência explícita à afirmação de Protágoras de que o homem é “a medida de todas as coisas” (panton chrematon metron), por um lado, “das que são como são” (ton men onton hos esti), e por outro, “das que não são como não são” (ton de me onton hos ouk estin) (Tht. 152 a 2-4). Essa correlação protagoreana entre, de um lado, os entes como são e, de outro, os não entes como não são vincula de modo iniludível o raciocínio sofístico à ontologia eleata e prenuncia de certa forma a presumível contradição a ser superada no Sofista, porquanto dizer os não entes induz no citado diálogo à contradição.

Mas se no Sofista a démarche dialética se reveste do agon filosófico entre os partidários do corpóreo e do incorpóreo, no Teeteto o movimento dialógico se confina nos estritos limites da empiria, efetuando pelo elenchos socrático a sua crítica interna, porquanto do argumento sofístico do homem medida Sócrates aduz a correlação entre aparecer (phainetai) e perceber (aisthanestai) (Tht. 152b 11) e, por conseguinte, que aparência (phantasia) e percepção (aisthesis) são a mesma coisa (Tht. 152c 1), demonstrando, pelo conspícuo exemplo do vento que a uns parece ser frio enquanto a outros quentes, o relativismo do postulado de Protágoras de Abdera. Preconizado o caráter metabólico transiente da percepção, Sócrates infere que nada, em si e por si, é um (hen men auto kath’auto ouden esti) (Tht. 152 d 2-3), não podendo designar nada como algo (ti) tampouco como algo de qualquer qualidade que seja (hopoionoun ti) (Tht. 152 d 3-4), deduzindo que é da translação (ek phoras) e do movimento (kineseos) assim como da mistura umas com as outras (kraseos pros allela) que devêm todas as coisas (gignetai panta) (Tht. 152 d 7-8), associando, no raciocínio socrático, o argumento sofístico à formulação jônica do devir professada por Heráclito de Éfeso. O aspecto móvel da aisthesis, na qual algo parece ser ora grande a um percipiente, ora pequeno a outro, remete de modo iniludível à invectiva platônica à má retórica no Fedro, à medida que os litigantes (antidikoi) efetuam nos tribunais a arte antilógica, fazendo as mesmas coisas parecerem aos cidadãos, ora justas, ora injustas, ora boas ou o contrário (Phdr. 261d).

Tanto no plano epistemológico quanto no retórico se afere o escopo platônico de superar a natureza transiente e especiosa do logos, onde a doxa aparece como um intermediário entre a ignorância e a ciência; se no Fedro há a Aufhebung do lado sinistro da retórica pela dialética, no Teeteto se delimita a original teoria da percepção, depurada, porém, do relativismo sofístico, que preceitua o logos cambiante oriundo de percepções várias. Essa mencionada teoria, fundada no paradigma da visão, permite a reavaliação do estatuto ontológico da relação entre percipiente e percebido, retomando elementos fulcrais do campo perceptivo, exposto em República VI, relativos ao poder de ver e de ser visto (ten tou horan te kai horasthai dynamin) (R. 507c), de modo que há toda uma concepção de dynamis nos Diálogos que reúne os multifários campos de saber ontológico, epistemológico e político, lógico, retórico e poético, preceituando uma unidade conceitual que, sem constituir um sistema fechado ausente de antinomias e lacunas, demanda de seu intérprete a capacidade sinóptica exigida pela ciência dialética. Não obstante a estrutura formal do diálogo se assemelhe aos diálogos aporéticos socráticos, seu léxico e sua preocupação epistemológica prevalente remetem aos textos supérstites integrados em sua fase estilométrica, concernente à investigação gnosiológica dos fundamentos do conhecimento empírico como possível condição de inteligibilidade, escrutinados tanto no Fedro pela apreciação do belo visível quanto em República VI mediante a metáfora da luz, entendida como terceiro termo e liame entre o percipiente e o percebido,6 6 . Em República VI se configura uma semântica da visibilidade, pela qual o âmbito fenomênico, longe de ser um obstáculo à compreensão das ideias em si, enseja a relação analógica entre os gêneros visível e invisível, representados pela imagem do Sol e pela ideia sobre essencial do Bem, porquanto é correto reconhecer que a luz e a visão são semelhantes no lugar visível ao Sol, não sendo o Sol, e que a ciência e a verdade são semelhantes no lugar inteligível ao Bem (agathoeide), não sendo o Bem. O âmbito fenomênico é o território do que se apresenta à visão, tendo como fonte e princípio o Sol, filho do Bem, poder e ideia sobre essenciais, enquanto seu ocultamento, privação de luz, é concebido como o horizonte do esquecimento, êxodo da memória e da reminiscência, de modo que “o mundo que nos rodeia passa a nos aparecer com um véu de obscuridade, ao mesmo tempo em que nossa alma é levada a buscar aquilo que realmente é” (Iglésias; Rodrigues, 2020, p. 16). fonte das ulteriores determinações ontológicas do inteligível.

Tendo estabelecido o argumento de que nada é em si e por si (meden auto kath’auto hen on), deslindando o fluxo intermitente da pluralidade fenomênica, Sócrates aquiesce que as cores aparecerão como geradas a partir da projeção dos olhos (ek tes prosboles ton ommaton) em direção à translação adequada (pros ten prosekousan phoran) (Tht. 153e 6-7) e o que afirmamos ser cada cor não será nem o que projeta (to prosballon) nem tampouco aquilo sobre o que se projeta (to prosballomenon), mas algo intermediário (metaxy ti) surgido peculiar para cada um (hekastoi idion gegonos) (Tht. 153e 7 - 154a 1-2). Assim como a doxa em República V é definida como um intermediário (to metaxy) entre a sabedoria e a ignorância, entre o conhecimento e a nescidade, e Eros no Banquete é pensado como o metaxy iniciático entre o divino e o humano, no Teeteto o liame adveniente do percebido e do percipiente também é conceituado como um intermediário. O emprego de determinado léxico para exprimir processos cognitivos ou mesmo ontológicos não é aleatório e expõe o intento platônico de compor uma malha terminológica a fim de examinar os níveis de realidade tanto fenomênica quanto metafenomênica. A noção de intermediário, formulada por Platão em diálogos estratégicos para a compreensão de sua epistemologia, tem função de detalhar a condição ontológica do humano, inserido entre a dimensão política do sensível e a dimensão cultual do inteligível, entre a sabedoria e a ignorância, entre o conhecimento e a nescidade em República V, entre o impulso erótico desiderativo e a plena eudaimonia n’O Banquete, de modo que Platão recupera na démarche dialética do Teeteto teorias perceptivas precípuas para a mentalidade grega coetânea como a refinada doutrina das emanações de Empédocles,7 7 . Fernando Muniz assevera que o mecanismo sensório envolvido na noção de to metaxy se vincula às concepções ópticas do saber arcaico, tanto na poesia lírica quanto em Empédocles, tendo sido assimilado por Platão, não se reduzindo ao relativismo sofístico de Protágoras. Muniz (2008, p. 31): “Salvo algumas peculiaridades e as consequências ontológicas retiradas, o padrão ótico que a doutrina obedece está profundamente enraizado na poesia, na filosofia e nas teorias óticas de seu tempo. Para a surpresa de muitos que julgam estranha a doutrina da visão, exposta no Teeteto, ela está em completa consonância com o modo como a visão era representada na tradição grega”. incorporando-as ao processo do elenchos socrático.

Coexistem no argumento sobre a gênese da aisthesis dois planos considerados inextricáveis tanto para o pensamento arcaico quanto para o platônico, de um lado, a especulação da physis, entendida como pluralidade fenomênica em conformidade com a visada unidade primacial, e, de outro, a preocupação acerca dos limites gnosiológicos da percepção de uma suposta ordem verossímil do cosmos, conspicuamente atestada no poema de Parmênides. Nos parâmetros metodológicos definidos pelo elenchos no diálogo esse nexo epistemológico primevo se adstringe às cosmovisões dos pluralistas, chamados ulteriormente de filhos da terra pelo Estrangeiro, de modo que o inquérito sobre o fluxo perceptivo adveniente do duplo movimento das emanações ativa e passiva decorre da explicação de um cosmo constituído por partículas emanantes singulares e ínfimas, gerativas na esfera do sensível dos corpos naturais.

Para Empédocles, há quatro raízes, adstritas aos dois pares de opostos (fogo/ quente e ar/frio, água/úmido e terra/seco), relativos aos quatro elementos materiais animados, corpóreos e divinos, qualitativamente distintos e irredutíveis, aos quais se reúnem duas entidades nomeadas como dois motores fluidos, Amor e Ódio,8 8 . Empédocles propugna que dupla é a gênese das coisas mortais (doie de thneton genesin) e duplo é o perecer (doie d’apoleipsis), pois uma gera e destrói o liame de todas as coisas (panton synodos) e a outra, surgida, se dispersa, quando se separam, de modo que essas coisas jamais cessam de trocar de lugar, ora por intermédio do Amor (Philoteti) reunindo todas as coisas no um (synerchomen’ eis hen hapanta), ora cada uma arrastada (hekasta phoreumena) em direção diferente por meio do Ódio (Neikeos) (DK B 17). Kamtekar (2009, p. 233): “Thus we can not only reason to Love as a causal power from the evidence of a complex and well-functioning effects in the world; we can also directly experience ourselves as instantiating love’s causal power when we engage in creative activity. So as we have perceptual access to some instances of the four roots, we have direct - non-inferential - access to some instances of love”. As diferenças de elementos não se mostram como termos unilaterais e autossuficientes, mas como momentos, emergências complementares de única totalidade (hen), espécie de esfera circular e meticulosa mistura dos constituintes, que se manifesta através delas em sua rica diversidade e determinação efetiva. de modo que o crescimento de cada ser se explica pela combinação das qualidades agregadas e pela consequente atração do semelhante sobre o semelhante. A matéria é um contínuo permeado de poros, orifícios, cujo diâmetro varia segundo a natureza do corpo previsto, caracterizando-se como receptáculo de emanações em incessante movimento, em que o semelhante visa se unir ao semelhante (o doce ao doce, o amargo ao amargo, o quente ao quente). O processo de fluxo e refluxo engendra a natureza, cujas bases teóricas são uma generalização de concepções médicas em torno da isonomia das potências, tendo curso na escola pitagórica de Crotona, de forma que cada sensação particular resulta da perfeita concordância existente entre a emanação definida e os poros de um órgão de sentido correspondente. O primeiro processo, a emanação descontínua, se refere ao percebido, enquanto o segundo, entendido como processo ativo e contínuo poroso, ao percipiente, em que a percepção como constituinte corporal é prévia condição de conhecimento. A emanação, advinda do mundo exterior e penetrando no poro do elemento correspondente, entra em contato com sua alma, em que o semelhante conhece o semelhante. No sucedâneo destas questões, a sede de toda sensação é um órgão cujos poros afetam uma forma particular, simétrica à sua emanação ou eflúvio, em que cada sensação advém de um perfeito ajustamento entre a emanação e seu poro.

A fisiologia de Empédocles deduz uma teoria da sensação, pela qual as variações quantitativas de um limitado número de elementos qualitativamente diferentes podem ser responsáveis pela multiplicidade de fenômenos, manifesta em seu aspecto material mediante o movimento de atributos distintos, correlatos, de um lado, ao descontínuo/ percebido e, de outro, ao contínuo/percipiente. A partir do esquema de duas realidades distintas, os poros hão de possuir, nessa teoria, uma dimensão conveniente, permitindo-lhes o contato com as emanações, de onde a cor é entendida como uma emanação oriunda das formas, comensurável aos órgãos de visão e ao sensível, percebida pelo mecanismo de poros causticantes e aquosos nos olhos, uma combinação de fogo e água. A proposta de corpúsculos ínfimos emanantes, penetrados de divindades e alento vital, demonstra o caráter qualitativo da teoria de Empédocles em contraste com a condição puramente quantitativa de partículas atômicas, de sorte que os quatro princípios elementares (seco, úmido, quente e frio), correlatos às quatro raízes de todas as coisas (tessara panton rizomata), correspondem a quatro potências divinas, relativos a Edoneu, Nestis, que de lágrimas umedece fonte mortal (krounoma broteion), à Hera portadora de vida (pheresbios) e a Zeus fúlgido (arges) (DK B 6), definindo a pluralidade primígena.

Configura-se em Timeu 45 b a tese da teoria das emanações para a conformação do olho e da visão corpóreos. A física de elementos ou de raízes fundamentais, permeando o conceitual do Timeu, remonta à medicina siciliana e à noção de Alcméon de Crotona relativa à isonomia das potências (isonomia ton dynameon), determinando as potências compósitas do corpo do cosmos, de modo que as potestades (o par quente e úmido, frio e seco), para o organismo, são elementos congênitos, constitutivos da corporeidade e a composição equânime dessas quatro dynameis contribui para a isonomia e homologia do corpo. A disposição do rosto comporta os órgãos da percepção, possibilitando as previsões da alma: os jovens deuses, tendo conformado previamente os olhos, portadores de luminosidade, implantaram-nos no rosto, pois, tendo o deus os adequado pelo artefato em um corpo apropriado, são uma espécie de fogo, não possuindo a propriedade de queimar, mas de prover uma doce luz. Assim, os jovens deuses os engendraram, de modo que o fogo puro residente no organismo afluísse naturalmente através do olho. Porém, espessaram todo o olho, não deixando escapar nada do fogo remanescente mais rude, proporcionando filtrar apenas um fogo perfeitamente puro. O fogo interior, tendo jorrado da interioridade dos olhos, encontra-se com a emanação externa, constituindo um complexo de propriedades uniformes em todas as partes, em que o semelhante encontra o semelhante, ratificando a teoria da percepção de Empédocles de Agrigento, para quem deve haver um fluxo emanante recíproco entre os polos do percipiente e do percebido. Mas, tendo o fogo adveniente da luminosidade diurna esvanecido, o fogo interior encontra-se dele apartado, de sorte que os jovens deuses adequaram aparelhos protetores, pois, tendo cessado a percepção visual, as pálbebras cerradas aluem o poder do fogo interior, apaziguando os movimentos internos: o organismo, em repouso completo, desvanece, inexistindo imagens multifárias.

Sócrates descreve haver, em contraposição a homens refinados (kompsoteroi), homens avessos às Musas (amousoi) (Tht. 156 a 2), tidos como não iniciados, que, por serem rudes, não admitem ações e gerações (praxeis kai geneseis) e tudo o que é invisível (pan to aoraton) como parte na essência (en ousias merei) (Tht. 155e 5-6), evocando iniludivelmente os filhos da terra no Sofista, os quais visam arrastar do céu e do invisível para a terra todas as coisas, congregando pelas mãos rochas e carvalhos, definindo o corpo e a essência como idênticos (Sph. 246a). Segundo os refinados, o todo é movimento (to pan kinesis), não havendo nada além, existindo duas espécies de movimento (tes kineseos dyo eide), tendo um o poder de agir (dynamin de to men poiein echon) e o outro o de padecer (to de paschein) (Tht. 156 a 5-7), de modo que a partir da união e da fricção deles uns com os outros (ek de tes touton homilias te kai tripseos pros allela) surgem rebentos ilimitados em quantidade (ekgona plethei men apeira) (Tht.156 a 7-8) e gêmeos (didyma de), um o percebido (to men aistheton) e o outro a percepção (to de aisthesis) (Tht. 156 b 1), brotando e sendo sempre engendrada junto com o percebido (meta tou aisthetou) (Tht. 156 b 2). Por esse raciocínio refinado, apartado da amusia, a análise do mecanismo da aisthesis depende de dois conceitos estratégicos para a ontologia ulterior discriminada no Sofista, relacionados ao movimento (kinesis) e ao poder (dynamis).

No fluxo contínuo ocasionado pelo movimento dar-se-á o fenômeno perceptivo, cuja manifestação se constitui pelo poder de ação do percipiente e pelo poder de padecer do percebido. Se no Sofista o estatuto epistemológico da dynamis é adstrito ao processo gnosiológico, porquanto opera, pelo movimento da alma, a passagem do sensível para o inteligível, preocupando-se com o conhecimento da essência ingênita e incorrupta,9 9 . O poder do conhecer, no Sofista, movimenta o ser real, haja vista que o padecer, o sofrer a ação não podem ser originados do repouso (to eremoun) (Sph. 248 e). Se se aquiesce que o conhecer é agir, o ser conhecido é padecer, porque a ousia, sendo conhecida (ten ousian gignoskomenen), pelo conhecimento (hypo tes gnoseos) e, à medida que é conhecida, é movida pelo padecer (kineisthai dia to paschein) (Sph. 248 e). A dynamis, no diálogo, se manifesta como tensão ontológica entre o agir e o padecer, correlatos ao movimento e ao repouso, que participam do poder da comunidade (dynamin epikoinonias) (Sph. 252 d). Mié, 2004, p. 276: “La falta de reflexión sobre las condiciones lógicas de toda teoria sobre el ser, que caracteriza la formulación misma de esta teoria, es subsanada por el extranjero mediante la inclusión de la dýnamis, utilizada como vía para dar cuenta del factum del conocimiento”. Sócrates circunscreve as consequências dos três argumentos de 151 d a 160 e em torno do movimento, já que o espaço perceptivo é o lugar do devir, não implicando a estabilidade. Mattéi, 1996, p. 183: “Dès lors que l’âme se trouve seule à seule avec l’ousia, dans la plénitude commune de l’acte de connaître pour l’une et d’être connue pour l’autre, il faut bien reconnaître que l’être est la passion de l’âme et l’âme l’action de l’être, tous deux tombant sous le coup de la double puissance de l’être qui est la source de toute communauté”. no Teeteto o mesmo estatuto se conforma no plano fenomênico, entendido não como doxa esmaecida, mas como aprimoramento da compreensão do fluxo do devir, apreendido por uma aisthesis refinada. As percepções (aistheseis) têm, preconiza Sócrates, nomes (onomata) tais como visões (opseis), audições e olfações, friagens e calores, e ainda as chamadas prazeres e dores (hedonai kai lupai), desejos e temores (epithymiai kai phoboi) (Tht. 156 b 2-5), havendo as anônimas (anonymoi) sendo ilimitadas (aperantoi) assim como as nomeadas (onomasmenai) sendo numerosíssimas (Tht. 156 b 6-7). Tendo estabelecido o fenômeno perceptivo pelos poderes do agir e do padecer, o método socrático relaciona as afecções ao gênero do percebido, compreendendo as paixões ilimitadas anônimas e a pletora de sensações nomeantes na natureza transiente do devir metabólico, determinada pelo movimento. O gênero do percebido (to aistheton genos) é com cada uma dessas cogerado (homogonon) (Tht. 156 b 7 - 156 c 1), com as visões, as cores, audições, sons de toda sorte, assim como com as outras percepções (tais allais aisthesesi), os outros percebidos (ta alla aistheta) surgidos como congêneres (syngene) (Tht. 156 c 2-3).

Precedendo a contenda dos gigantes (gigantomachia) por causa da controvérsia (dia ten amphisbetesesin) sobre a essência (peri tes ousias) (Sph. 246 a), discriminada no Sofista, mas restringindo-a, no excurso da doutrina secreta, ao âmbito verossímil da pluralidade fenomênica, o Teeteto conforma o problema da ousia nos estritos limites da ontologia mobilista, definida pela compreensão do ser mediante as proposições de que (i) a ciência é percepção, (ii) o homem é a medida de todas as coisas e prevalentemente de que (iii) o todo é movimento. No quadro analítico proposto pela referida doutrina, não se deslinda ainda o aspecto parusíaco do movimento, entendido como participação na ousia, demonstrado no Sofista por meio do Estrangeiro e enunciada na pergunta se o movimento, a vida, a alma e a sabedoria (kinesin kai zoen kai psychen kai phronesin) não estariam realmente presentes no ser absoluto (to pantelos onti me pareinai) (Sph. 248 e).10 10 . Propondo o movimento e, por conseguinte, o poder como critérios fundamentais para a compreensão acurada do fluxo, Sócrates aduz da formulação relativista de Protágoras sobre o fenômeno perceptivo uma definição arguta de aisthesis como processo correlativo entre o agente e o paciente. Marques (2006, p. 125): “O que Sócrates visa, no Teeteto, assim como o Estrangeiro no Sofista, é questionar a natureza do conhecimento contraditório do sofista (a natureza da contradição enquanto conhecimento) e os objetivos que ele se propõe a alcançar, o que já podemos perceber na perspectiva predominantemente ético-política do Protágoras, onde o sofista aparece como aquele que torna alguém hábil em falar. (...) Num certo sentido, é ao fazer a crítica dos fundamentos epistemológicos da antilogia sofística que Sócrates, no Teeteto, prepara o terreno para que o Estrangeiro possa desenvolver uma análise de seus pressupostos ontológicos, no Sofista”. A argumentação socrática no Teeteto contempla, não obstante, a kinesis pelo processo de gênese das percepções, diferenciando-a em movimento lesto e lento, à medida que todas as coisas se movem, havendo no movimento delas (eni tei kinesei auton) rapidez e também lentidão (tachos de kai bradutes) (Tht. 156 c 8).

Tudo quanto é lento mantém, de um lado, o movimento em si mesmo, relativo ao percipiente, e, de outro, em relação àquelas próximas (pros ta plesiazonta) (Tht. 156 c 9), referente ao percebido, mas as coisas engendradas (ta gennomena) (Tht. 156 d 1), resultante do liame entre o percipiente e percebido, são rápidas, porque se deslocam e no deslocamento surge o movimento (he kinesis pephyken) (Tht. 156 d 2-3). O olho (omma) e alguma outra das coisas comensuráveis a ele (ton toutoi symmetron), tendo-se aproximado, geram a brancura (ten leukoteta) e a percepção conatural a ela (aisthesin autei symphyton) (Tht. 156 d 3-5), que jamais surgiriam se cada uma delas fosse em direção diferente. Portanto, deslocando-se no intermediário (metaxy) (Tht. 156 d 6), de um lado, a visão (tes men opseos), por parte dos olhos (pros ton ophthalmon) (Tht. 156 e 1), e, de outro, a brancura (tes de leukotetos), por parte daquilo que com eles engendra a cor (pros tou synapotiktontos to chroma) (Tht. 156 e 1-2), o olho (ophthalmos) se tornou repleto de visão (opseos empleos) e vê, tornando-se não visão (opsis), mas olho que vê (ophthalmos horon), e aquilo que com ele engendra a cor (to de syngennesan to chroma), preenchendo-se de brancura, se tornou não brancura (leukotes), porém branco (leukon) (Tht. 156 e 2-5).

O âmbito fenomênico é o território do intermediário, onde se realiza o devir, espaço fluido entre o ser puro imiscido e o não ser absoluto, entre a fulgência da luz e a noite escura, definido em República V. Por meio desse duplo movimento do vir a ser, de um lado, o percipiente e o percebido, e, de outro, a aisthesis oriunda de emanações entre esses polos do fenômeno perceptivo, Sócrates aduz que nada é em si e por si (auto men kath’auto meden einai) (Tht. 156 e 8 - Tht. 157 a 1), mas é no comércio de umas com as outras (en de tei pros allela homiliai) que todas as coisas vêm a ser (panta gignesthai), e múltiplas por causa do movimento (apo tes kineseos) (Tht. 157 a 1-3). Nesse intercurso fenomenal, algo nem é agente (to poioun) sem encontrar o paciente, nem paciente (paschon) sem encontrar o agente. Não há a superveniência de um poder sobre o outro, pedra angular da biologia aristotélica e evidenciada na diferenciação entre as potências ativas (poietikai dynameis) e potências passivas (pathetikai dynameis), mas se deslinda no processo das emanações descrito no texto do Teeteto uma isonomia dos poderes. A dynamis estabelece, tanto no plano fenomenológico quanto no inteligível, uma relação de dependência ontológica entre os termos, de modo que não há nem percipiente nem percebido sem a adveniência do fenômeno perceptivo, cuja manifestação se dá por intermédio do metaxy, essa espécie de meio espacial, território fenomenológico, onde se constituem os entes relacionais.11 11 . Essa relação de interdependência ontológica pode ser evidenciada na instituição dos gêneros supremos do Mesmo e do Outro, do Movimento e Repouso, no Sofista, em que cada forma inteligível é definida por sua referência à outra. O Movimento, enquanto megiston genos, mantendo identidade consigo mesmo, é o mesmo, mas, diferenciando-se do gênero do mesmo, é o outro. Porém, se na dimensão sensível a aisthesis se realiza mediante o metaxy, na dimensão metafenomênica stasis e kinesis, tauton e thateron existem por participarem no Ser (dia to metechein tou ontos). (Sph. 256 d). Cordero, 1993, p. 47: “Platon cherche la condition rendant possible ces rapports, et il offre une réponse inespérée et révolutionaire: tout ce qui est réel existe parce qu’il y a une puissance de communication réciproque. Cette puissance de communication (dýnamis koinonías) c’est l’être”. Mattéi, 1996, p. 183: “L’être, clairement posé pour la première fois comme puissance de communauté (dýnamin koinonías), va établir plusieurs formes de liaison entre les formes les plus élevées”.

Retomando um locus classicus de República V relativo ao estatuto ontológico da vida onírica em relação à vida desperta sábia e com as suas implicações epistemológicas determinadas pelos modos sensíveis de conhecimento correlatos em República VI, de um lado, à imaginação (eikasia) e à crença (pistis) e, de outro, ao pensamento (dianoia) e à intelecção (noesis), Sócrates enuncia no Teeteto como as percepções falsas surgem em sonhos, em doenças e no delírio (manias), porquanto em sono (onar) parecemos narrar (dokomen diegeisthai) (Tht. 158c 6-7) certas coisas àquelas percebidas em vigília. Propugnando uma teoria da percepção oriunda do liame entre o agente percipiente (to poioun/ to aisthainomenon) e o paciente percebido (to paschon/ to aistheton), Sócrates aduz da tese de Protágoras o intermediário (to metaxy) como o resultante da aisthesis, de modo que o território da fenomenalidade, onde se dá a ver as percepções, se inscreve no intermediário entre (i) o sono e a vigília, (ii) o conhecimento e a ignorância, (iii) o ser e o não ser, pares antitéticos atestados em República V. Ressalta-se no processo relacional de gênese das percepções a homologia estrutural com o ato de conhecimento, definido ulteriormente em Sofista 248e, pela resolução da gigantomaquia cosmogônica, na qual se confrontam as teses mobilistas e imobilistas, respectivamente associadas aos partidários da corporeidade e do incorpóreo, à medida que o conhecer advém de uma dynamis específica, que vincula o poder do agir cognoscente ao poder do padecer cognoscível, superando, no plano epistemológico, tanto os amantes das Formas, correlatos ao monismo eleata, quanto os filhos da terra, evocados nas Musas da Jônia e da Sicília, referentes a Heráclito e a Empédocles. 12 12 Rachid (2021, p. 65): “O equívoco tanto dos partidários da corporeidade quanto dos do incorpóreo foi não supor o poder de comunidade entre o conhecer e o ser conhecido, haja vista que quem possui o poder apropriado, seja para agir sobre não importa o quê, seja para padecer pelo agente, é considerado um ser real. O Estrangeiro de Eleia institui nenhuma outra coisa senão o poder (dýnamis) (Sph. 247e), porquanto, de um lado, pelo corpo, por meio da sensação (di’aisthéseos), estamos em comunidade com o devir (genései), e, de outro, pela alma, por meio do raciocínio (dià logismoû), estamos em comunidade com a essência real (tèn óntos ousían), sempre idêntica a si mesma (Sph. 248a)”. A noção de dynamis é detalhada acuradamente no livro V da República a fim de expressar a contraposição do filósofo aos muitos amantes de espetáculos, à filodoxia, no que tange ao conceito de doxa. Se o conhecimento (gnosis) incide sobre o ser (to on) e a nescidade sobre o não ser (to me on), há um intermediário entre o ser e o não-ser, entre os horizontes ôntico e meôntico, entre a luz diurnal e a noite escura, entre a ciência (epistemes) e a ignorância (agnoias) que é a opinião, concebida um poder diferente da ciência (allen dynamin epistemes) (R. 477b), de modo que o postulado de que a opinião é um poder diferente da ciência estabelece a questão de saber o que é o poder? Os poderes são, preceitua Sócrates, um gênero dos entes, permitindo-nos realizar o que nos é próprio, especificamente, a visão e a audição. A ciência é considerada de todos os poderes o mais ativo (pason dynameon erromenestaten) (R. 477b). Para Fabián Mié, o caráter aporético do Teeteto pode ser compreendido em exata consonância com os diálogos médios, concernente à relação entre doxa e episteme, porquanto não propõe a distinção entre dois modos de conhecimento correlatos a dois mundos separados, mundus sensibilis, mundus intelligibilis, mas entre duas modalidades de conhecimento relativas à mesma realidade. Mié (2004, p. 229): “Los distintos modos de conocer las entidades - el ‘pensamiento’ (diánoia), la ‘percepción sensible’ (aísthesis), la ‘imaginación’ (phantasía) y el ‘juicio’ (dóxa) - hacen accesible la estructura de lo conocido y, con ello, representan miembros del mismo proceso de ‘verificación’, en cuanto se integran en el rendimiento epistémico de la psykhé”.

Experiência cultual: metaxy como elemento iniciático.

No Teeteto se evidenciou o metaxy como espaço fenomênico, onde se realiza o intercurso entre o aisthanomenon e o aistheton, ressaltando o papel de meio específico do intermediário, no qual devém o processo de gênese perceptiva, ao mesmo tempo em que se acentua o aspecto metabólico e transiente desse lugar privilegiado. No Banquete a gnosiologia de metaxy, aduzida em seu sentido epistêmico como doxa em República V e como aisthesis no Teeteto, incorpora também elementos cultuais, entendendo-se por culto a veneranda interpelação do divino pelo humano.13 13 . Por Theos/Theoi os gregos expressavam os aspectos fundamentais do mundo, que correspondem aos “modos de mostrarem-se os fundamentos transcendentes de que a vida em geral e especialmente a existência humana dependem” (Torrano, 2019, p. 43). Trata-se de relevante paradigma hermenêutico o critério de nomeação de Deus(es), porque evidencia a relação recíproca entre a multiplicidade dos Deuses e a unidade subordinante de Zeus, sendo também interpretado nas relações cultuais entre Deuses imortais e homens mortais, entendido, do lado humano, mimesis, “imitação”, methexis, metalepsis, “participação”, e, do lado, divino, parousia, presença. Torrano demonstra haver, por esse modelo hermenêutico, uma dialética imagética, atestada tanto na épica homérica quanto na tragédia ática e explicitada na diversidade de graus de participação dos diversos homens e de suas funções sociais nos diversos Deuses e domínios ou regiões do ser, assim como nas complexas hierarquias divina e humana. De acordo com a tipologia do intermediário, preconizada por Renaut (2014RENAUT, O. (2014). Dualisme et Metaxu. Trois usages de l’intermédiaire chez Platon. Méthexis, v. 27-1, pp. 121-138., p. 133), a erótica filosófica, presente na récita de Diotima de Mantineia, compreende o metaxy não como elemento mediador, mas como lugar de orientação para o excelso, cuja imagem se manifesta exemplarmente no nume (daimon), intermediário entre o gênito mortal e o incorrupto imortal.

Podemos aferir tanto na chegada de Sócrates ao banquete ofertado por Agatão a fim de celebrar a vitória do anfitrião por sua primeira tragédia na Lenaia em 416 a. C. quanto na récita de Diotima, desvelando a real natureza de Eros, o uso recorrente de elementos dramatúrgicos que mostram o indissociável liame entre os preceitos ritualísticos e cultuais existentes na pólis ateniense e a experiência filosófica. Tanto a construção das dramatis personae d’O Banquete, visando ao elenco dos encômios sobre Eros e a consequente récita da Estrangeira de Mantineia, proferida por Sócrates, superando-os, quanto à conspícua crítica ao uso da escrita no Fedro configuram mecanismos retóricos para que o filósofo indague sobre os limites da sophia humana em face do caráter venerando do logos.14 14 . Franco (2021, p. 23): “Por que o teatro filosófico faz uso de todos os recursos do drama poético? Possivelmente esse fato paradoxal e enigmático tenha levado Aristóteles, na Poética (1447a 30 b-16), depois de citar o ‘Diálogo socrático’ como um gênero literário distinto dos demais, a afirmar que o gênero existe, mas ele não saberia classificá-lo”. Andrea Nightingale preconiza haver um nexo inextricável entre as práticas cívicas e ritualísticas presentes no mundo grego, culminando no nascimento da tragédia, e o advento do pensamento filosófico, entendido especialmente nos diálogos platônicos de maturidade como contemplação das Formas, escolhendo República, Banquete e Fedro como textos supérstites para aferição desse vínculo. Nightingale (2009, p. 73): “Plato’s introduces a new kind of philosopher, a sage who journeys away from the world in pursuit of a vision of a metaphysical reality. We see hints of this change in the behavior of the character of Socrates, such as he wanders off to a stranger’s porch to enjoy a period of silent contemplation on his way to the party in the Symposium, and when he stands up all night long ‘inspecting’ a philosophical problem during a military expedition”. O opróbrio platônico da escrita remonta ao escrutínio do estatuto da imagem e às implicações ontológicas surgidas de sua relação com o modelo, de modo que a prevalência da oralidade ante seu sucedâneo repousa em um critério epistemológico, porquanto o discurso oral permite tanto o exercício pleno da refutação, o elenchos, quanto à defesa de quem foi eventualmente interpelado.

A cena literária organizada n’O Banquete constitui um tableau vivant, no qual os logoi confrontados dos simposiastas visam não a real natureza de Eros, mas aos efeitos da afecção erótica, descurando de seu poder gnosiológico. O esquema cênico do diálogo se compõe de (i) um prólogo, (ii) de cinco encômios monológicos que anuem ser Eros um deus, relativos aos de Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão assim como da prédica dialógica socrática, rejeitando os discursos predecessores e evocando a iniciação de Diotima, a qual compreende o amor seja como intermediário (to metaxy) seja como um nume (daimon) e, por fim, (iii) do contraexemplo narrativo de Alcibíades, enfant gâté da política e democracia ateniense, lamentando o infortúnio de sua paixão amorosa por Sócrates, havendo no decurso das exposições citadas intervalos cômicos.

Principiando os discursos encomiásticos pelos mitos, Fedro expõe o caráter altamente formalizado do Eros pederástico na épica homérica, cujo propósito é reafirmar os laços de philia entre os guerreiros a fim de salvaguardar as poleis, atestados hipoteticamente no Batalhão Sagrado de Tebas. De acordo com a preceptiva, Eros é o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso dos Deuses (Erota teon presbytaton kai timiotaton kai kyriotaton) para a aquisição da virtude e da felicidade (eis aretes kai eudaimonias ktesin) dos homens, vivos e mortos (Smp. 180 b 5-7). Retomando epítetos tradicionais do pensamento mítico, o mencionado elogio funciona como contraponto ao ulterior mito do nascimento de Eros narrado por Sócrates, gerado do intercurso entre a falta e o recurso. A récita de Fedro contém, para Jeremy Reid, elementos timoeideticos, ligados à coragem, presentes na conformação da alma tripartite em República III (Reid, 2017, p. 30), atestados na disposição virtuosa do amado (eromenos) em relação ao amante (erastes), consoante aos preceitos da moral guerreira, tipificada em Ilíada XI 786-787 no louvado sacrifício de Aquiles, jovem e belo, por Pátroclo, considerado o mais velho.15 15 . Jeremy Reid salienta que o temperamento timocrático de Fedro advém das duas disposições próprias a Eros, concernentes, de um lado, à vergonha do vergonhoso (ten epi men ton aischrois aischynen) e, de outro, à ambição do belo (epi de tois kalois philotimian), sem as quais nem a cidade nem o indivíduo (oute polin oute idioter) podem realizar grandes e belas obras (megala kai kala erga) (Smp. 178 d 1-4), correlacionando-o à estima e à reputação, disposições naturais ao thymos. Reid (2017, p. 31): “Phaedrus’ speech is easy to pass over quickly, but it is striking how many times shame and honor feature in the speech; moreover, there is a strong emphasis on acts of courage and military prowess, especially in his use of the Theban Band (178e-179b) and Achilles (179e-180a). Phaedrus also highlights the motivational force that eros provides in the performance of great deeds for others (178 e-180a)”. Olivier Renaut ressalta a invectiva de Diotima no Banquete 208c ao encômio da philothimia, proferido por Fedro, uma vez que, para a Estrangeira de Mantineia, o philothymos valoriza a honra e a glória, representadas pelos sacrifícios de Aquiles e Alceste, em face do caráter venerando de eros. Renaut (2013, p. 101): “Philothimia is then dangerous for two reasons: first, it transforms love into an edifying affair, exalting dramatic emotions; second, it fails to understand what is really, in love, the object to be valued”. O encômio de Fedro dá a ver o modo como Platão constrói as suas figuras narrativas como contrapontos expressivos às suas proposituras filosóficas, não sendo elementos extrínsecos à gênese do conceito almejado, no caso, a definição da natureza do amor, uma vez que expõem diversos pontos de vista e, consequentemente, diferentes formas discursivas, tanto míticas quanto racionais, sobre o tema proposto.

Ressalta-se a correspondência epistemológica entre a conspícua passagem da Linha Dividida em República VI, adstrita à ascese anímica rumo ao ser imiscido, e a récita de Diotima, concernente à contemplação do belo em si em face da pluralidade fenomênica, uma vez que Platão emprega nesses textos o advérbio exaiphnes a fim de designar o ato de intelecção pura, ausente de toda miscibilidade com o sensível. Tanto a anábase da alma para a ideia e poder sobre essenciais do Bem, princípio não hipotético, quanto à iluminação (epopteia) provocada pela ascendência ao belo em si, conformando a unidade na multiplicidade aparente, constituem manifestações do percurso dialético, próprio ao filósofo iniciado. Não obstante a dialética se revele plurívoca ao longo dos Diálogos, evidenciada no método por hipóteses em Mênon, Fédon e República VI, VII, assim como no método de divisões por formas em Fedro, Sofista, Político e Filebo, configura-se no corpus platônico a dialética stricto sensu, pautada no reconhecimento gnosiológico de uma dimensão cultual, entendendo-se por culto a interpelação do divino pelo humano. O Banquete aparece como o locus cênico por excelência da dialética mediada pela divindade, representada por Eros, cuja geração, filhos de Poros e Penia, explicita os limites do saber humano ante o saber divino. Para Irley Franco, a figuração de Eros proporciona ao filósofo iniciado expressar o caráter de incompletude do desejo perpetrado por ele, já que “sendo filho de Poro e Penúria, ele é o resultado de uma mistura de qualidades opostas, as quais devem ser tomadas, como observou Léon Robin, não em sua determinação estática, mas em sua determinação dinâmica” (Franco, 2021, p. 14). No mito genealógico referido, segundo a classificação proposta por Jean François Mattéi (1996MATTÉI, J.F. (1996). Platon et le miroir du mythe, de l’âge d’or à l’Atlantide. Paris, PUF.) entre mitos genealógicos e mitos escatológicos, se afere a natureza ambivalente de Eros, porquanto, do lado pátrio, ela sobreleva o recurso adveniente da sabedoria (sophia) enquanto, do lado mátrio, irrompe a carência oriunda da ignorância (amathia), ressaltando a lógica de oposição complementar, em que não há exclusão de um dos termos antitéticos, mas a mútua interdependência entre os contraditórios.

Da dupla condição de Eros se aduz seu aspecto desiderativo, prenunciando uma das teses conspícuas do Filebo, diálogo sobre a gênese efetiva dos prazeres e sobre a vida feliz, concernente ao fim último do desejo que é o bem autárquico, cujo fim é em si mesmo. Retendo loci classici de diálogos de períodos distintos, como República e Filebo, relativos ao refúgio da ideia sobre essencial do Bem na natureza do belo assim como à concepção da eudaimonia como bem autárquico, O Banquete os incorpora na prédica de Diotima de Mantineia, associando-os à revelação mistérica, ressaltando os vínculos entre a epistemologia e a prática cultual, haja vista que o reconhecimento dos inteligíveis decorre do acurado rito de iniciação. Configura-se um atinado processo de theoria,16 16 . Não obstante, o festival dos Mistérios de Elêusis mantenha similaridades com outros eventos cívicos e ritualísticos existentes nas poleis e descritos nos Diálogos como o festival à Deusa Bêndis no proêmio de República, porquanto receba, de toda Grécia, os theoroi, peregrinos e estrangeiros, a fim de participarem das solenidades, ele se caracteriza, para Nightingale (2009, p. 85), como o ritual específico de iniciação, as chamadas teletai. Tendo viajado como theoros para o referido festival, o estrangeiro se submete a ritos purificatórios, culminando na contemplação dos hiera ou objetos sagrados, revelados pelo hierofanta. No começo do rito, o iniciado permanece no escuro em uma estrutura chamada telesterion, em cujo centro há uma câmara pétrea denominada anaktoron, por onde emana um raio fúlgido. Para receber a revelação, os mystai, provavelmente vedados durante a cerimônia, devem entrar no recinto luzidio, onde se encontram os epoptai, os quais têm possivelmente visões adicionais dos hiera. As práticas mistéricas de Elêusis, centradas na conversão do obscuro para a fulgência, forneceriam a Platão um modelo percuciente de exposição do ato contemplativo da realidade sacra, própria no discurso filosófico às formas imiscidas. Nightingale (2009, p. 85): “It is easy to see why Plato was attracted to this religious festival, since it featured a vision that transformed the initiate and granted him or her salvation in the afterlife. The personal nature of the initiation ceremony offers a model of private theoria that has salvific as well as epistemic associations. Just as initiation at Eleusis transformed the individual so that he would achieve salvation in the afterworld, the initiation of the philosophic theoros, Plato claims, purifies and transforms the soul and guarantees it a blessed destiny”. circunscrito à iniciação dos Mistérios e à contemplação das formas imiscidas depuradas do elemento sensível. Tendo iniciado seu discurso refutativo aos encômios de seus predecessores, adornados no estilo retórico, Sócrates inquire se Eros é eros de algo ou de nada (einai tinos ho Eros eros e oudenos) (Smp. 199d 1-2), visando averiguar se Eros é uma autarquia, ou seja, se sustém o princípio em si mesmo, nada lhe excedendo ou faltando, ou se é princípio de algo, prenunciando um dos tópicos precípuos da ontologia, relativo à determinação da vida eudemonista, ulteriormente deslindada no Filebo, porquanto Eros identificar-se-á não à divindade, como nos encômios dos predecessores, porém na prédica socrática ao nume, intermediando o divino e o humano, o imortal e o mortal, a sabedoria e a ignorância.

Tendo introduzido a récita de Diotima para os simposiastas, Sócrates propugna o caráter purificatório do elenchos da sacerdotisa de Mantineia que lhe é aplicado, tendo antes empregado esse mesmo estilo inquisitório a fim de refutar o encômio de Agatão. Porque o amor é carência, desejoso do belo e do bom, não é nem belo tampouco feio, sendo intermediário (metaxy) entre esses termos antitéticos. Na démarche dialética proposta, o não belo não é, necessariamente, o contrário de belo, o feio, assim como ulteriormente no Sofista o não ser não é, de fato, o contrário de ser, mas certo outro (heteron toiouton) (Sph. 240a), de modo que Eros se assemelha ao belo, não o sendo realmente, expressando uma atinada correlação entre o pensamento mítico e o raciocínio lógico. Diotima de Mantineia profere que Eros é um intermediário entre o mortal e o imortal (metaxy thnetou kai athanatou) (Smp. 202 d 11), definindo-o como um grande nume (daimon megas), porquanto todo numinoso (pan to daimonion) (Smp. 202d 13) é um intermediário entre o deus e o mortal (metaxy theou te kai thnetou) (Smp. 202e 1). Para a sacerdotisa, o poder numinoso, sua dynamis, interpreta e transmite aos Deuses o que vem dos homens (hermeneuon kai diaporthmeuon theois ta par’anthropon) e aos homens o que vem dos Deuses (kai anthropois ta para theon) (Smp. 202e 3-4), de uns as preces e sacrifícios (ton men tas deeseis kai thysias), de outros as ordens e as retribuições dos sacrifícios (ton de tas epitaxeis te kai amoibas ton thysion) (Smp. 202e 4-5), e estando no meio de ambos ele os completa (en mesoi de on amphoteron sympleroi), de modo a ligar o todo a si mesmo (hoste to pan auto autoi syndedesthai) (Smp. 202e 6-7). É através dele que toda a arte divinatória flui (mantike pasa chorei) (Smp. 202e7) e também dos sacerdotes que se ocupam dos sacrifícios (kai he ton hieréon techne ton te peri tas thysias) e dos mistérios (teletas), encantamentos (tas epodas) e de toda adivinhação (kai tes mageian pasan) e magia (kai goeteian) (Smp. 202e8- 203a1). De acordo com a Estrangeira de Mantineia, um Deus não se mistura com os homens (theos de anthropoi ou meignytai), mas é através do nume que se dá toda convivência (pasa estin he omilia) e diálogo (he dialektos) dos Deuses com os homens (Smp. 203a 1-3).

Assim como n’O Banquete, adstrito ao fenômeno cultual e mistérico, to metaxy na República V adquire função prevalente para a epistemologia, concernente à descrição do âmbito doxástico, intermediário entre as regiões ôntica e meôntica, porque a opinião é considerada um intermediário entre a ciência (episteme) e a ignorância (agnoias) (R. 478b), entre o mais elevado poder e a parcela ínfima do conhecimento, entre o ser puro imiscido (tou eilikrinos ontos) e o não ser absoluto (tou pantos me ontos) (R. 478d). Na referida passagem, Sócrates preconiza que os múltiplos usos costumeiros dos muitos sobre o belo e acerca de outras espécies percorrem o intermediário entre o não ser e o ser imiscido (metaxy tou me ontos kai tou ontos eilikrinos) (R. 479a), de forma que a definição de nume como metaxy na récita de Diotima denota uma preclara associação com a teoria do conhecimento, evidenciando uma homologia estrutural entre a noção mítica de Deus(es) e a noção filosófica de ideia(s), entre a falta conformada na condição mortal e o não ser, entre o âmbito doxástico e o sinal numinoso e costumeiro, pelo qual interpela Sócrates, compelindo-o à via ascensional do saber. Compõe-se no texto platônico uma rede ontoteológica, na qual a mitopoese não é um mero pendant da consciência reflexiva, mas seu elemento constitutivo, requerendo de seu leitor a posse de uma hermenêutica cultual, relativa ao modelo de interpretação das formas sagradas do mundo grego em uma linguagem que se pretende uma episteme. A sacerdotisa de Mantineia aparece como uma espécie de máscara socrática, duplo e persona pela qual o filósofo expressa na linguagem cultual preceitos filosóficos, confrontados, no processo epistêmico referente à anábase anímica, com os limites da sophia humana.

Privilegiando o axioma da ética eudemonista, “pela posse do bem que os felizes são felizes (ktesei agathon hoi eudaimones eudaimones)” (Smp. 205a 1), Diotima defende o poder gnosiológico de Eros, estatuindo em sua récita a démarche dialética de ascensão anímica ao súpero, realizado na contemplação súbita do belo em si. Todavia inexista menção ao termo dialektike e a seus cognatos nesse encômio, seus procedimentos perfazem toda a prédica, correlatos (i) à apreensão intuitiva da natureza ingênita e incorrupta da ideia em face da multiplicidade sensível, (ii) ao caráter venerando do filósofo, identificado a Eros no diálogo, intermediário entre a ignorância e a sabedoria, (iii) à concepção de que o esquecimento é o êxodo da memória, formulada na expressão lethe epistemes exodos, traduzida por “o esquecimento é a evasão de conhecimento” (Smp.208 a 3-4), (iv) à unificação (synagoge) anímica, desvelando a unidade na pluralidade fenomênica, pois contemplar o belo (theasasthai to kalon) seja nas ocupações (en tois epitedeumasi) seja nas leis (tois nomois) revela que todo ele é congênere de si mesmo (pan auto autoi syngenes estin) (Smp. 210c 3-5). Assim como o Estrangeiro demonstrará o poder de comunidade (dynamis koinonias) dos gêneros supremos no Sofista, Diotima, nomeada Estrangeira de Mantineia (Mantinike xene) (Smp. 211d 1-2), prescrevendo uma ontologia iniciática consoante os ritos e mistérios (telea kai epoptika), deslinda a participação dos belos aparentes no belo incorpóreo, conformando a unidade na complexidade fenomenal, por meio de epítetos ontológicos, correlatos à sempiternidade, à identidade e à forma única, de modo que o belo, sendo ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, eternamente unímodo (auto kath’auto meth’autou monoeides aei on) e todas as outras coisas belas participando dele (ta de álla panta kala ekeinou metechonta) de algum modo (Smp. 211b 1-2), permanece ingênito e incorrupto. 17 17 O louvor de Diotima de Mantineia às poesias homérica e hesiódica evidencia que a invectiva platônica à tradição mitopoética em República II não se baseia numa crítica estética, mas ética e ontológica mediante uma fenomenologia das paixões, porquanto n’O Banquete o poeta engendra na alma do ser a ideia do belo em si, ausente da corporeidade miscível. Homero e Hesíodo são, para Diotima, poetas, cuja descendência, vinculada à fecundação do belo na alma, lhes propicia glória e memória imortais (athanaton kleos kai mnemen) (Smp. 209d). Assim como os poetas, os legisladores são louvados por engendrarem o belo incorpóreo nas leis, dentre os conspícuos são Licurgo, pela legislação espartana, paradigma para as Leis III, e Sólon, pela ateniense. Em seu estudo sobre O Banquete, Andrea Nightingale delimita duas espécies de fecundação psíquica, presentes na citada passagem. Nightingale (2017, p. 143): “In the first model, great poets and lawgivers gain immortal happiness by way of posthumous fame. They have given birth to poems and lawcodes that confer immortality on them by their lasting glory. In the second model, a philosophic lover gives birth to ideas and discourses on virtue in the presence of his beloved. In the ideal scenario, this lover engages in philosophic dialogues that enable him to ascend the ladder of love and contemplate the Form of Beauty”.

A possibilidade de contemplação do belo divino e unímodo ele mesmo (auto to theion kalon monoeides) (Smp. 211e 3-4) advém necessariamente por uma scala amoris, espécie de reunião sinóptica (synagoga) (Franco, 2021FRANCO, I.F.; TORRANO, J. (2021). Platão. O Banquete. Rio de Janeiro, Editora PUC-RIO; Loyola., p. 11), cujos graus, iniciando pelos belos corpos, não são negados, mas superados. A ascese erótica preceituada pela Estrangeira efetua o minudente percurso (i) dos belos corpos (apo ton kalon somaton), (ii) para as belas ocupações (epi ta kala epitedeumata), delas (iii) para as belas ciências (ta kala mathemata), dessas (iv) àquela ciência (ep’ekeino to mathema) que não é outra coisa senão a ciência daquele belo (ekeinou tou kalou mathema) (Smp. 211c 4-8), até se conhecer, por fim, (v) o belo em si (auto kalon) (Smp. 211c 8 - 211d1), perfilhando diversas modalidades do conhecimento, correlacionadas aos aspectos gnosiológicos do visível e do invisível, de modo que remonta à análoga gradação ontológica e epistemológica de República VI. Em um texto prenhe de significados e referências como O Banquete, conjugando em sua escritura o saber constituído na pólis, médico, político, mítico e teatral, à especulação filosófica, não se pode interpretá-lo descurando das prováveis vaguezas textuais, pois se a dialética não é objetivamente enunciada, se mostra como possibilidade de realização da paideia erótica, conforme aduz Irley Franco, relacionando-a à Carta VII 342a, que institui a prevalência da episteme em face tanto da palavra, onoma e logos, quanto da imagem, eidolon, assim como a anuência da contemplação súbita do Bem, reiterado pelo emprego do advérbio exaiphnes. O encômio de Diotima sobre Eros e sua relação com os discursos precedentes propiciam hipóteses hermenêuticas para se entender o logos que permeia os Diálogos, não sendo plausível confiná-lo na linguagem apodítica ausente de antinomias e lacunas, uma vez que o logos se dá a conhecer pela mútua imbricação com as diferentes esferas de ação e saber humanos, frequentemente associados a práticas formalizadas de conduta como os ritos e mistérios iniciáticos.

Considerações finais

Procurei demonstrar como a noção de to metaxy percorre os diferentes âmbitos do corpus platônico, visando à rejeição de uma pretensa metafísica dos dois mundos, que cinde ontológica e epistemologicamente o locus sensibilis do locus intelligibilis. Meu intento se inscreve em um horizonte que denomino de semântica da visibilidade, pela qual o campo fenomênico se apresenta como via de acesso à intelecção e ao reto conhecimento dos inteligíveis e não como obstáculo à compreensão das ideias. A noção precisa de to metaxy, fixando um liame inextricável entre lugares (visível e invisível) e estados (mortal e divino, não saber e saber) aparentemente antitéticos remonta, no plano fenomenológico, à teoria das emanações, atestada nos fragmentos de Empédocles, na qual se aduz a aisthesis como resultante da relação entre o percipiente e o percebido. Conforma-se na fisiologia do olho e da visão preceituada por Empédocles uma analogia estrutural com esses mecanismos ópticos referidos no Timeu e aludidos na definição da ciência como percepção, adstrita à tese do homem medida preconizada por Protágoras, no Teeteto, tema da primeira seção desse artigo. Não podemos inferir na presumível identificação entre episteme e aisthesis, própria à démarche aporética do diálogo, uma invectiva à percepção como fonte de conhecimento, mas seus limites específicos.

Se no plano epistemológico to metaxy, correlato à doxa em República V é considerado um intermediário entre a episteme e a agnoía, evocando a reta opinião em Mênon, responsável pelo raciocínio da causa, aitias logismos, apreendendo a verdade dos entes; se no plano fenomenológico to metaxy, relativo à aisthesis no Teeteto, é, por sua vez, o resultado da mescla entre o percipiente e o percebido, asseverando o caráter transiente e metabólico dessa espécie de conhecimento, no Banquete to metaxy se expõe no plano cultual, entendendo-se por culto a interpelação do divino pelo humano, como o intermediário entre o imortal imiscido e o mortal variegado. Preceitua-se na récita da Estrangeira de Mantineia, pendant do sinal costumeiro e numinoso socrático prolatado no Fedro, uma atinada concepção de to metaxy vinculada à anábase e à ascese ao belo em si, enfatizando a relevância da dimensão cultual a fim de se compreender as ideias. Nos procedimentos ritualísticos e cultuais implicados na prédica de Diotima, pertinentes à apreensão da forma idêntica em si mesma, explicitam-se os mecanismos intelectivos próprios à ontologia de diálogos como Fédon República V, VI, VII e Fedro, nos quais o âmbito fenomênico se revela como via de acesso à apreensão do conhecimento súpero.

Busquei evidenciar como os componentes conceituais presentes no mencionado encômio se ligam a práticas sagradas historicamente determinadas como o rito iniciático concernente ao epopta, elucidando o caráter ritual próprio à ontologia e epistemologia platonica, de modo que o culto, longe de ser um elemento extrínseco e extralógico à démarche dialética, se constitui in fieri como parte integrante do pensamento filosófico, esmaecendo as anacrônicas fronteiras entre mito e racionalidade, cultual e epistêmico. Tanto a corporeidade, exprimindo os constituintes transientes da realidade fenomênica no Banquete, quanto o campo perceptivo, ancila da tese sofística do homem medida no Teeteto, supõem a pertinência de to metaxy a fim de proceder à mediação do sensível ao inteligível, necessária ao reto conhecimento das formas ingênitas e incorruptas e da qual inferimos a relevância de uma semântica da visibilidade a colimar o corpus platônico.

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    . Olivier Renaut discrimina haver três acepções de to metaxy nos Diálogos, (i) um intervalo entre dois limites, evidenciado, por exemplo, no tempo intermediário entre o processo de Sócrates e sua morte (Phd. 58c) assim como no espaço intermediário entre o fogo e os homens acorrentados, descrito na imagem da caverna (R. 514 b), configurando um meio dinâmico onde se opera um duplo devir. Renaut (2014, p. 125): “Cette caractéristique de l’intermédiaire se retrouve dans beaucoup de réalités mouvantes qui permettent en particulier les sensations. Ainsi, est appelé ‘intermédiaire’ le milieu qui permet l’interaction entre le sentant et le senti dans l’Théétète (154 a, 156 d, 182 a)”. (ii) Metaxy é pensado como a posição mediadora entre dois extremos, cujos polos se definem pela relação de negação, oposição ou contraditoriedade, podendo ser atestado (a) na doxa entre o ser e o não ser (R. 477 a - 480 a), (b) nas potências matemáticas (Tht. 147 e - 148 b), (c) nos numes entre os deuses e os mortais (Smp. 202 d-e), (d) nos indiferentes entre o bem e o mal (Grg. 468 a), (e) o thymos entre os princípios opostos da razão e do desejo. (iii) O intermediário é a orientação da polarização ou dualidade que mediatiza, não sendo nem intervalo indiferenciado nem posição mediadora, revelando-se como etapa determinada para um bem, porquanto não há, nessa acepção, metaxy que não seja portador de julgamento de valor, prescrevendo como a realidade deve se distribuir entre os polos, exemplificado na reta opinião entre ignorância e conhecimento (orthe doxa metaxy phroneseos kai amathias) (Smp. 202a), assim como no filósofo, intermediário entre o sophos, cuja sabedoria é plena e fúlgida, e o ignorante (philosophon de onta metaxy einai sophou kai amathous) (Smp. 204 b).
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    . Por economia de exposição e para não exceder os limites do artigo remeto o leitor à definição de to metaxy em República V circunscrita à doxa. Cf. Rachid (2020RACHID, R.J.R. (2020). O reverso da dialética, logos e episteme na pólis clássica. Códex, Revista de Estudos Clássicos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 1-25., p. 7) “Se o conhecimento (gnosis) incide sobre o ser (to on) e a nescidade (agnoia) sobre o não ser (me on), há, precisamente, um intermediário entre o ser puro e o não ser absoluto, entre os horizontes ôntico e meôntico, entre a luz diurnal e a noite escura, entre a ciência (episteme) e a ignorância (agnoias) que é a opinião (R. 477b). A opinião é entendida como intermediário entre, de um lado, a plenitude do ser e de sua inteligibilidade, revelada pela posse da ciência e, de outro, o recôndito lugar do esquecimento, partilhado pela ignorância”. Renaut (2018RENAUT, O. (2018). Thumos and Doxa as intermediates in the Republic. The Internet journal of the International Plato Society . v. 18, pp. 71-82., p. 76): “Socrates has to define doxa as a metaxy in a hierarchical way, as a median position between what is truly known and what is simply ignored. In giving its right place as a median position, Socrates makes doxa a class of judgement in regard to true knowledge, accounting for its inconsistency and nevertheless its psychological power”. Chama-se pensamento (dianoia) e não intelecção a faculdade do geômetra e congêneres, pois o pensamento é também considerado um intermediário entre a opinião e o intelecto (metaxy ti doxes te kai nou) (R. 511 d).
  • 3
    . Tanto o Teeteto quanto o Sofista se inscrevem na fase de reavaliação e refinamento, conforme preconiza Sócrates ao personagem homônimo (Tht. 156a), da crítica aos mobilistas corpóreos e aos imobilistas incorpóreos, porquanto se deslindam em ambos os diálogos perspectivas teóricas antitéticas em relação ao processo de gênese e à natureza incorrupta da essência, especificamente no primeiro texto circunscrito ao excurso da doutrina secreta e no segundo adstrito à conspícua passagem da gigantomaquia cosmogônica. Assim como há no Sofista a lide dos gigantes, opondo os filhos da terra aos amantes das Formas, afere-se no Teeteto a contraposição entre dois tipos de mobilistas, implicando no raciocínio proposto por Sócrates a acurácia do processo perceptivo. V. Berman, 2014BERMAN, B. (2014). The Secret Doctrine and the Gigantomachia: Interpreting Plato’s Theaetetus-Sophist. The Internet journal of the International Plato Society. v. 14, pp. 53-62., p.56-57: “What is important to observe at the outset is that just as the Sophist presented two factions of giants, so, too, the Theaetetus presents two factions of fluxists (…) These paralells cannot but be deliberate on Plato’s part. The crude fluxists and the crude giants are presented as being one and the same, as are their positions”. Tratar-se-á de demonstrar, no excurso da doutrina secreta no Teeteto, como a compreensão arguta da teoria do fluxo, deslocando-se da mera empiria, circunscreve o estatuto epistemológico da aisthesis, conexo à noção reiterativa de dynamis, poder que interliga os termos de uma relação gnosiológica assim como fenomenal.
  • 4
    . Mênon inquire a Sócrates se (i) a virtude é ensinável (areten didakton), se (ii) se obtém pelo exercício (asketon), se (iii) advém aos homens por natureza (physei) ou se (iv) é de algum outro modo (Men. 70 a). Porém, antes de se perguntar se a virtude pode ser aprendida, se é natural ou se se adquire pelo exercício, podendo ser reduzidas à estrutura proposicional ‘X é Y?’, se deve indagar o que é a virtude (o que é X?). As indagações de Mênon surgem de seu convívio com as diatribes sofísticas, respondendo tudo sobre o que se indaga. A postura socrática se difere da sofística, porque se não se sabe o que é algo (ti estin?), sua característica, não se consegue saber qual coisa algo é (hopoion ti) (Men. 71 b), i.e., sua qualidade, de modo que não se pode confundir o definiendum com o definiens. Robinson (1962ROBINSON, R. (1962). Plato’s earlier dialectic. Oxford, Oxford University Press ., p. 50): “Socrates frequently asserts that the question ‘What is X?’ is prior to certain other questions about X, in the sense that we cannot find sure answers to those other questions until we have found sure answers to this one. You cannot, he says, know what sort of things X is until you know what X is. Thus you cannot really know whether virtue is teachable until you know what virtue is”. Dixsaut (2001DIXSAUT, M. (2001). Métamorphoses de la dialectique dans les Dialogues de Platon. Paris, Jean Vrin., p. 32): “Comme dans l’Phédon, l’ousia est donc dans l’Euthyphron et dans l’Ménon ce qui centre sur elle la question de savoir ce que c’est, et l’eidos est ce par quoi les choses multiples acquièrent leur nom et leurs propriétés”.
  • 5
    . O texto emprega evidentemente o discurso direto (dokei moi aisthanestai), construção recorrente no corpus platônico justamente para evidenciar um tipo de conhecimento proveniente do que nos (a) parece. Sigo a tradução de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues (2020IGLÉSIAS, M.; RODRIGUES, F. (2020). Platão. Teeteto. Rio de Janeiro, Editora PUC-RIO; Loyola .) que mantêm a relação entre a forma nominal episteme e suas formas verbais. O emprego recorrente de verbos e de substantivos que exprimem o âmbito da parecença e, deste modo, fenomênico, território fugidio da pólis ateniense, onde há a variabilidade das opiniões nos tribunais e nas assembleias, explicita a relevância tanto epistemológica quanto ética do diálogo. David Sedley retamente demonstra haver uma demarcação tênue entre essas áreas no Teeteto, rejeitando a ulterior divisão propugnada pela tradição platonista tardia (later Platonist tradition) em lógica (conhecimento formal), física e ética (conhecimentos materiais), uma vez que o télos platônico se concentra na distinção entre, de um lado, discursos que se pretendem verdadeiros e, de outro, logoi que visam ser verossímeis. Sedley (2010, p. 64): “At Timaeus 29 b3 - d3 he distinguishes just two kinds of discourse (lógos): inherently unstable discourse about the sensible world, in other words, physics; and inherently stable discourse about being. The latter kind of discourse acquires its stability from the fact that its proper objects are Forms, entities not subject to change”.
  • 6
    . Em República VI se configura uma semântica da visibilidade, pela qual o âmbito fenomênico, longe de ser um obstáculo à compreensão das ideias em si, enseja a relação analógica entre os gêneros visível e invisível, representados pela imagem do Sol e pela ideia sobre essencial do Bem, porquanto é correto reconhecer que a luz e a visão são semelhantes no lugar visível ao Sol, não sendo o Sol, e que a ciência e a verdade são semelhantes no lugar inteligível ao Bem (agathoeide), não sendo o Bem. O âmbito fenomênico é o território do que se apresenta à visão, tendo como fonte e princípio o Sol, filho do Bem, poder e ideia sobre essenciais, enquanto seu ocultamento, privação de luz, é concebido como o horizonte do esquecimento, êxodo da memória e da reminiscência, de modo que “o mundo que nos rodeia passa a nos aparecer com um véu de obscuridade, ao mesmo tempo em que nossa alma é levada a buscar aquilo que realmente é” (Iglésias; Rodrigues, 2020IGLÉSIAS, M.; RODRIGUES, F. (2020). Platão. Teeteto. Rio de Janeiro, Editora PUC-RIO; Loyola ., p. 16).
  • 7
    . Fernando Muniz assevera que o mecanismo sensório envolvido na noção de to metaxy se vincula às concepções ópticas do saber arcaico, tanto na poesia lírica quanto em Empédocles, tendo sido assimilado por Platão, não se reduzindo ao relativismo sofístico de Protágoras. Muniz (2008, p. 31): “Salvo algumas peculiaridades e as consequências ontológicas retiradas, o padrão ótico que a doutrina obedece está profundamente enraizado na poesia, na filosofia e nas teorias óticas de seu tempo. Para a surpresa de muitos que julgam estranha a doutrina da visão, exposta no Teeteto, ela está em completa consonância com o modo como a visão era representada na tradição grega”.
  • 8
    . Empédocles propugna que dupla é a gênese das coisas mortais (doie de thneton genesin) e duplo é o perecer (doie d’apoleipsis), pois uma gera e destrói o liame de todas as coisas (panton synodos) e a outra, surgida, se dispersa, quando se separam, de modo que essas coisas jamais cessam de trocar de lugar, ora por intermédio do Amor (Philoteti) reunindo todas as coisas no um (synerchomen’ eis hen hapanta), ora cada uma arrastada (hekasta phoreumena) em direção diferente por meio do Ódio (Neikeos) (DK B 17). Kamtekar (2009KAMTEKAR, R. (2009). Knowing by Likeness in Empedocles. Phronesis, v. 54, pp. 215-238., p. 233): “Thus we can not only reason to Love as a causal power from the evidence of a complex and well-functioning effects in the world; we can also directly experience ourselves as instantiating love’s causal power when we engage in creative activity. So as we have perceptual access to some instances of the four roots, we have direct - non-inferential - access to some instances of love”. As diferenças de elementos não se mostram como termos unilaterais e autossuficientes, mas como momentos, emergências complementares de única totalidade (hen), espécie de esfera circular e meticulosa mistura dos constituintes, que se manifesta através delas em sua rica diversidade e determinação efetiva.
  • 9
    . O poder do conhecer, no Sofista, movimenta o ser real, haja vista que o padecer, o sofrer a ação não podem ser originados do repouso (to eremoun) (Sph. 248 e). Se se aquiesce que o conhecer é agir, o ser conhecido é padecer, porque a ousia, sendo conhecida (ten ousian gignoskomenen), pelo conhecimento (hypo tes gnoseos) e, à medida que é conhecida, é movida pelo padecer (kineisthai dia to paschein) (Sph. 248 e). A dynamis, no diálogo, se manifesta como tensão ontológica entre o agir e o padecer, correlatos ao movimento e ao repouso, que participam do poder da comunidade (dynamin epikoinonias) (Sph. 252 d). Mié, 2004MIÉ, F. (2004). Dialéctica, Predicación y Metafísica en Platón, Investigaciones sobre el Sofista y los diálogos tardios. Córdoba, Ediciones del Copista., p. 276: “La falta de reflexión sobre las condiciones lógicas de toda teoria sobre el ser, que caracteriza la formulación misma de esta teoria, es subsanada por el extranjero mediante la inclusión de la dýnamis, utilizada como vía para dar cuenta del factum del conocimiento”. Sócrates circunscreve as consequências dos três argumentos de 151 d a 160 e em torno do movimento, já que o espaço perceptivo é o lugar do devir, não implicando a estabilidade. Mattéi, 1996MATTÉI, J.F. (1996). Platon et le miroir du mythe, de l’âge d’or à l’Atlantide. Paris, PUF., p. 183: “Dès lors que l’âme se trouve seule à seule avec l’ousia, dans la plénitude commune de l’acte de connaître pour l’une et d’être connue pour l’autre, il faut bien reconnaître que l’être est la passion de l’âme et l’âme l’action de l’être, tous deux tombant sous le coup de la double puissance de l’être qui est la source de toute communauté”.
  • 10
    . Propondo o movimento e, por conseguinte, o poder como critérios fundamentais para a compreensão acurada do fluxo, Sócrates aduz da formulação relativista de Protágoras sobre o fenômeno perceptivo uma definição arguta de aisthesis como processo correlativo entre o agente e o paciente. Marques (2006MARQUES, M.P. (2006). Platão, pensador da diferença, uma leitura do Sofista. Belo Horizonte, Editora da UFMG., p. 125): “O que Sócrates visa, no Teeteto, assim como o Estrangeiro no Sofista, é questionar a natureza do conhecimento contraditório do sofista (a natureza da contradição enquanto conhecimento) e os objetivos que ele se propõe a alcançar, o que já podemos perceber na perspectiva predominantemente ético-política do Protágoras, onde o sofista aparece como aquele que torna alguém hábil em falar. (...) Num certo sentido, é ao fazer a crítica dos fundamentos epistemológicos da antilogia sofística que Sócrates, no Teeteto, prepara o terreno para que o Estrangeiro possa desenvolver uma análise de seus pressupostos ontológicos, no Sofista”.
  • 11
    . Essa relação de interdependência ontológica pode ser evidenciada na instituição dos gêneros supremos do Mesmo e do Outro, do Movimento e Repouso, no Sofista, em que cada forma inteligível é definida por sua referência à outra. O Movimento, enquanto megiston genos, mantendo identidade consigo mesmo, é o mesmo, mas, diferenciando-se do gênero do mesmo, é o outro. Porém, se na dimensão sensível a aisthesis se realiza mediante o metaxy, na dimensão metafenomênica stasis e kinesis, tauton e thateron existem por participarem no Ser (dia to metechein tou ontos). (Sph. 256 d). Cordero, 1993CORDERO, N.L. (1993). Platon. Le Sophiste. Paris, GF Flammarion., p. 47: “Platon cherche la condition rendant possible ces rapports, et il offre une réponse inespérée et révolutionaire: tout ce qui est réel existe parce qu’il y a une puissance de communication réciproque. Cette puissance de communication (dýnamis koinonías) c’est l’être”. Mattéi, 1996MATTÉI, J.F. (1996). Platon et le miroir du mythe, de l’âge d’or à l’Atlantide. Paris, PUF., p. 183: “L’être, clairement posé pour la première fois comme puissance de communauté (dýnamin koinonías), va établir plusieurs formes de liaison entre les formes les plus élevées”.
  • 12
    Rachid (2021RACHID, R.J.R. (2021). Dýnamis koinonías: mito e dialética no Sofista de Platão. RÓNAI, Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios, V. 9, n. 1, p. 58-81., p. 65): “O equívoco tanto dos partidários da corporeidade quanto dos do incorpóreo foi não supor o poder de comunidade entre o conhecer e o ser conhecido, haja vista que quem possui o poder apropriado, seja para agir sobre não importa o quê, seja para padecer pelo agente, é considerado um ser real. O Estrangeiro de Eleia institui nenhuma outra coisa senão o poder (dýnamis) (Sph. 247e), porquanto, de um lado, pelo corpo, por meio da sensação (di’aisthéseos), estamos em comunidade com o devir (genései), e, de outro, pela alma, por meio do raciocínio (dià logismoû), estamos em comunidade com a essência real (tèn óntos ousían), sempre idêntica a si mesma (Sph. 248a)”. A noção de dynamis é detalhada acuradamente no livro V da República a fim de expressar a contraposição do filósofo aos muitos amantes de espetáculos, à filodoxia, no que tange ao conceito de doxa. Se o conhecimento (gnosis) incide sobre o ser (to on) e a nescidade sobre o não ser (to me on), há um intermediário entre o ser e o não-ser, entre os horizontes ôntico e meôntico, entre a luz diurnal e a noite escura, entre a ciência (epistemes) e a ignorância (agnoias) que é a opinião, concebida um poder diferente da ciência (allen dynamin epistemes) (R. 477b), de modo que o postulado de que a opinião é um poder diferente da ciência estabelece a questão de saber o que é o poder? Os poderes são, preceitua Sócrates, um gênero dos entes, permitindo-nos realizar o que nos é próprio, especificamente, a visão e a audição. A ciência é considerada de todos os poderes o mais ativo (pason dynameon erromenestaten) (R. 477b). Para Fabián Mié, o caráter aporético do Teeteto pode ser compreendido em exata consonância com os diálogos médios, concernente à relação entre doxa e episteme, porquanto não propõe a distinção entre dois modos de conhecimento correlatos a dois mundos separados, mundus sensibilis, mundus intelligibilis, mas entre duas modalidades de conhecimento relativas à mesma realidade. Mié (2004, p. 229): “Los distintos modos de conocer las entidades - el ‘pensamiento’ (diánoia), la ‘percepción sensible’ (aísthesis), la ‘imaginación’ (phantasía) y el ‘juicio’ (dóxa) - hacen accesible la estructura de lo conocido y, con ello, representan miembros del mismo proceso de ‘verificación’, en cuanto se integran en el rendimiento epistémico de la psykhé”.
  • 13
    . Por Theos/Theoi os gregos expressavam os aspectos fundamentais do mundo, que correspondem aos “modos de mostrarem-se os fundamentos transcendentes de que a vida em geral e especialmente a existência humana dependem” (Torrano, 2019TORRANO, J. (2019). Mito e imagens míticas. São Paulo, Editora Córrego., p. 43). Trata-se de relevante paradigma hermenêutico o critério de nomeação de Deus(es), porque evidencia a relação recíproca entre a multiplicidade dos Deuses e a unidade subordinante de Zeus, sendo também interpretado nas relações cultuais entre Deuses imortais e homens mortais, entendido, do lado humano, mimesis, “imitação”, methexis, metalepsis, “participação”, e, do lado, divino, parousia, presença. Torrano demonstra haver, por esse modelo hermenêutico, uma dialética imagética, atestada tanto na épica homérica quanto na tragédia ática e explicitada na diversidade de graus de participação dos diversos homens e de suas funções sociais nos diversos Deuses e domínios ou regiões do ser, assim como nas complexas hierarquias divina e humana.
  • 14
    . Franco (2021FRANCO, I.F.; TORRANO, J. (2021). Platão. O Banquete. Rio de Janeiro, Editora PUC-RIO; Loyola., p. 23): “Por que o teatro filosófico faz uso de todos os recursos do drama poético? Possivelmente esse fato paradoxal e enigmático tenha levado Aristóteles, na Poética (1447a 30 b-16), depois de citar o ‘Diálogo socrático’ como um gênero literário distinto dos demais, a afirmar que o gênero existe, mas ele não saberia classificá-lo”. Andrea Nightingale preconiza haver um nexo inextricável entre as práticas cívicas e ritualísticas presentes no mundo grego, culminando no nascimento da tragédia, e o advento do pensamento filosófico, entendido especialmente nos diálogos platônicos de maturidade como contemplação das Formas, escolhendo República, Banquete e Fedro como textos supérstites para aferição desse vínculo. Nightingale (2009, p. 73): “Plato’s introduces a new kind of philosopher, a sage who journeys away from the world in pursuit of a vision of a metaphysical reality. We see hints of this change in the behavior of the character of Socrates, such as he wanders off to a stranger’s porch to enjoy a period of silent contemplation on his way to the party in the Symposium, and when he stands up all night long ‘inspecting’ a philosophical problem during a military expedition”.
  • 15
    . Jeremy Reid salienta que o temperamento timocrático de Fedro advém das duas disposições próprias a Eros, concernentes, de um lado, à vergonha do vergonhoso (ten epi men ton aischrois aischynen) e, de outro, à ambição do belo (epi de tois kalois philotimian), sem as quais nem a cidade nem o indivíduo (oute polin oute idioter) podem realizar grandes e belas obras (megala kai kala erga) (Smp. 178 d 1-4), correlacionando-o à estima e à reputação, disposições naturais ao thymos. Reid (2017, p. 31): “Phaedrus’ speech is easy to pass over quickly, but it is striking how many times shame and honor feature in the speech; moreover, there is a strong emphasis on acts of courage and military prowess, especially in his use of the Theban Band (178e-179b) and Achilles (179e-180a). Phaedrus also highlights the motivational force that eros provides in the performance of great deeds for others (178 e-180a)”. Olivier Renaut ressalta a invectiva de Diotima no Banquete 208c ao encômio da philothimia, proferido por Fedro, uma vez que, para a Estrangeira de Mantineia, o philothymos valoriza a honra e a glória, representadas pelos sacrifícios de Aquiles e Alceste, em face do caráter venerando de eros. Renaut (2013, p. 101): “Philothimia is then dangerous for two reasons: first, it transforms love into an edifying affair, exalting dramatic emotions; second, it fails to understand what is really, in love, the object to be valued”.
  • 16
    . Não obstante, o festival dos Mistérios de Elêusis mantenha similaridades com outros eventos cívicos e ritualísticos existentes nas poleis e descritos nos Diálogos como o festival à Deusa Bêndis no proêmio de República, porquanto receba, de toda Grécia, os theoroi, peregrinos e estrangeiros, a fim de participarem das solenidades, ele se caracteriza, para Nightingale (2009NIGHTINGALE, A. W. (2009). Spectacles of truth in classical greek philosophy, theoria in its cultural contexts. Cambridge, Cambridge University Press., p. 85), como o ritual específico de iniciação, as chamadas teletai. Tendo viajado como theoros para o referido festival, o estrangeiro se submete a ritos purificatórios, culminando na contemplação dos hiera ou objetos sagrados, revelados pelo hierofanta. No começo do rito, o iniciado permanece no escuro em uma estrutura chamada telesterion, em cujo centro há uma câmara pétrea denominada anaktoron, por onde emana um raio fúlgido. Para receber a revelação, os mystai, provavelmente vedados durante a cerimônia, devem entrar no recinto luzidio, onde se encontram os epoptai, os quais têm possivelmente visões adicionais dos hiera. As práticas mistéricas de Elêusis, centradas na conversão do obscuro para a fulgência, forneceriam a Platão um modelo percuciente de exposição do ato contemplativo da realidade sacra, própria no discurso filosófico às formas imiscidas. Nightingale (2009, p. 85): “It is easy to see why Plato was attracted to this religious festival, since it featured a vision that transformed the initiate and granted him or her salvation in the afterlife. The personal nature of the initiation ceremony offers a model of private theoria that has salvific as well as epistemic associations. Just as initiation at Eleusis transformed the individual so that he would achieve salvation in the afterworld, the initiation of the philosophic theoros, Plato claims, purifies and transforms the soul and guarantees it a blessed destiny”.
  • 17
    O louvor de Diotima de Mantineia às poesias homérica e hesiódica evidencia que a invectiva platônica à tradição mitopoética em República II não se baseia numa crítica estética, mas ética e ontológica mediante uma fenomenologia das paixões, porquanto n’O Banquete o poeta engendra na alma do ser a ideia do belo em si, ausente da corporeidade miscível. Homero e Hesíodo são, para Diotima, poetas, cuja descendência, vinculada à fecundação do belo na alma, lhes propicia glória e memória imortais (athanaton kleos kai mnemen) (Smp. 209d). Assim como os poetas, os legisladores são louvados por engendrarem o belo incorpóreo nas leis, dentre os conspícuos são Licurgo, pela legislação espartana, paradigma para as Leis III, e Sólon, pela ateniense. Em seu estudo sobre O Banquete, Andrea Nightingale delimita duas espécies de fecundação psíquica, presentes na citada passagem. Nightingale (2017, p. 143): “In the first model, great poets and lawgivers gain immortal happiness by way of posthumous fame. They have given birth to poems and lawcodes that confer immortality on them by their lasting glory. In the second model, a philosophic lover gives birth to ideas and discourses on virtue in the presence of his beloved. In the ideal scenario, this lover engages in philosophic dialogues that enable him to ascend the ladder of love and contemplate the Form of Beauty”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2022
  • Aceito
    06 Mar 2023
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