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Praecepta, decreta e a felicidade em Schopenhauer e Sêneca: um breve estudo comparativo

Praecepta, decreta and happiness in Schopenhauer and Seneca: a short comparative study

Resumo:

Há na bibliografia de Schopenhauer uma parte importante dedicada às discussões de boa vida. Entre os anos de 1826 e 1829 o filósofo alemão se pôs a pensar em uma eudemonologia, um projeto inacabado, que contava com o resgate do pensamento de filósofos antigos. Nas discussões há grande apreço pelo pensamento estoico a fim de produzir uma vida menos infeliz possível. Por isso parece relevante revisitar as ideias de Schopenhauer e compará-las com Sêneca, que se debruçou sobre os mesmos tópicos: as apropriações dos conceitos de praecepta e decreta e sua relação com a felicidade.

Palavras-chave:
Estoicismo; Sêneca; Schopenhauer; Virtude; Praecepta

Abstract:

There is an important part in Schopenhauer's bibliography dedicated to reflections on a good life. Between 1826 and 1829, the German philosopher started to think about a eudemonology, an unfinished project, which relied on the rescue of the thought of ancient philosophers. In his discussions there is a great appreciation for Stoic thinking in order to produce a life as little unhappy as possible. Therefore, it seems relevant to revisit Schopenhauer's ideas and compare them with Seneca, who focused on the same topics: the appropriation of the concepts of praecepta and decreta and their connection with happiness.

Keywords:
Stoicism; Seneca; Schopenhauer; Virtue; Praecepta

Poucas correntes filosóficas tiveram tanto impacto na Antiguidade quanto o estoicismo. Os séculos de existência ilustram o incalculável volume e profundidade de reflexões produzidas pelos filósofos da escola. Dentre as áreas de reflexão destaca-se a ética, para a qual física e lógica convergem. Dentro da ética, por sua vez, há um debate especial sobre a necessidade e da suficiência dos praecepta e dos decreta,1 1 O termo praecepta é uma tradução latina que Cícero (Gomes, 2000) fez em De Officis (1.7-8) do termo grego καθήκοντα. De modo simples, podemos conceituar os praecepta como regras particulares oferecidas como deveres ou conselhos para orientar o sujeito em uma determinada ocasião. Em uma linguagem kantiana, são como os “deveres perfeitos”: “faça isso”, “não faça aquilo”. Enquanto os decreta, outro termo traduzido do grego, κατορθώματα, por Cícero estão ligados aos princípios universais da filosofia moral. Sêneca ao discorrer sobre as diferenças entre os decreta e os praecepta observa que este é o único ponto de distinção (Ep. 94.31). formulado entre os estoicos do período antigo e médio e debatido sobretudo nas epístolas 94 e 95 pelo estoico imperial Sêneca. As reflexões que estão por vir nas próximas páginas repousam sobre o desenvolvimento desse debate nas duas epístolas, e nos ecos do debate em Arthur Schopenhauer, que em momentos chave2 2 Schopenhauer condensa sua interpretação do estoicismo no §16 do Tomo I de O mundo como Vontade e como Representação, assim como no capítulo 16 dos Suplementos, no §6 de Fragmentos para a história da filosofia, nos Aforismos para a Sabedoria de Vida, e, por fim, nos manuscritos organizados por Franco Volpi, A Arte de Ser feliz. de sua bibliografia voltou-se ao estoicismo. Procuraremos argumentar que suas considerações sobre os praecepta e os decreta alteraram profundamente o modo como pensamos o estoicismo atualmente, tendo Schopenhauer feito uma leitura muito original.

As epístolas 94 e 95 se tornam referência na discussão não só porque uma das principais obras sobre o tema, o Peri Kathekonta de Crisipo, foi perdida, mas por trabalharem com legítimas preocupações metodológicas e pedagógicas do ensino da filosofia moral estoica, sua aplicação, efetividade e exequibilidade prática. Além disso, Sêneca trava o debate com Ariston, um estoico não ortodoxo (D. L. VI 103 e VII 161), cuja adesão de algumas ideias cínicas despertava desconfiança. Ao resgatar e reproduzir algumas das principais ideias de Ariston para desconstruí-las, o debate sobre a necessidade e a suficiência dos praecepta e dos decreta também lança luz sobre a própria origem do estoicismo e a influência dos cínicos em seu modo de ensinar a filosofia (que, por questões práticas ficará em segundo plano). Schopenhauer, por sua vez, ao elaborar tanto sua eudemonologia quanto uma significativa parte de sua crítica à Kant, coloca o estoicismo e a noção de praeceptum, desempenhando um papel importante com fins muito parecidos com o que vemos no estoicismo.

A eudemonologia de Schopenhauer

Schopenhauer ficou marcado, entre outras grandes contribuições, pela famosa analogia da vida como um pêndulo, que oscila entre dor e tédio (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 402). Mas curiosamente, entre 1826 e 1829, ele se dedicou a postular uma eudemonologia. Apesar de não ter concluído o projeto,3 3 Embora não concluído, podemos dizer que o esforço de Schopenhauer foi frutífero. As máximas reunidas nos manuscritos entre 1826 e 1829 serviram de ensejo para ele escrevesse um dos capítulos mais notórios do Parerga e Paralipomena, o capítulo 5, intitulado Aforismos para a sabedoria de vida (tr. Barboza, 2005b, p. IX). ao longo de três anos Schopenhauer listou 50 máximas de pensadores influentes como Aristóteles, Sêneca, Lucrécio, Horácio entre outros, que tem o propósito de nos conduzir a uma vida sábia e feliz. Os esboços foram reunidos, organizados e publicados por Franco Volpi no volume chamado A arte de ser feliz. A fonte de inspiração de Schopenhauer parece ter sido o texto Oráculo manual 4 4 Gracián não propõe uma ética ou moral para embasar seus conselhos (tr. Benedetti, 2009). Suas máximas visam tão somente o aprimoramento do comportamento das pessoas em relação a determinadas situações. Isso não é necessariamente uma novidade. Na filosofia antiga Plutarco fez algo parecido em alguns de seus tratados, embora haja algo nesses livros que nos permite vislumbrar um pano de fundo moral. de Baltasar Gracián, um escritor e jesuíta espanhol do século XVII, cuja estrutura é bastante similar: um livro com 300 máximas para uma observação e correção contínua do comportamento. 5 5 Schopenhauer traduziu o texto de Gracián para alemão entre 1831 e 1832, publicado apenas em 1862, dois anos após a morte de Schopenhauer (Safranski, 2011, p. 510). Em carta enviada a Johann Georg Keil, Schopenhauer revela que seu escritor preferido é Gracián (tr. Debona, 2013, p. 151).

O objetivo de Schopenhauer, anunciado pelo próprio nome do tratado, Eudemonologia, era reunir as máximas para auxiliar os leitores a buscarem a felicidade. Entretanto, a felicidade descrita por ele não é aquela tal como conhecemos, de satisfação de desejos, posses de bens, conquistas relevantes na vida profissional e pessoal - não é incorporar de valores e marcas significativas, mas, antes, apenas a negação de uma carência (Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 411) -, nem mesmo aquela felicidade à moda grega, de uma vida virtuosa, onde o sujeito trabalha sobre si a fim de buscar e viver conforme a razão, a natureza e a virtude - porque ao elaborar sua “caracterologia” Schopenhauer descarta a possibilidade de progressão6 6 No Apêndice de O mundo... Tomo I ele afirma: “A questão, já antes tratada por Platão e Sêneca, se a virtude pode ser ensinada, deve ser respondida negativamente.” (p. 654). Em Aforismos, Schopenhauer dedica muito a discussão do caráter do sujeito a fim de deixar claro os limites da felicidade. “Sua individualidade determina de antemão o grau de sua felicidade possível” (tr. Barboza, 2009, p. 7). Já no § 20 de Fundamento da Moral Schopenhauer é enfático: “Pode uma ética, já que descobre a motivação moral, fazê-la atuar? Pode ela transformar um homem de coração duro num compassivo e, daí, num justo e caridoso? Por certo não; a diferença de caracteres é inata e indelével” (tr. Cacciola, 2001, p. 190). presente nas concepções éticas da antiguidade.

A proposta eudemonológica de Schopenhauer é única. Ela se encontra em um limbo, não só por causa da impossibilidade de progressão do sujeito, mas também devido à sua própria concepção de felicidade. A felicidade caracterizada por Schopenhauer é de outro tipo - é negativa, ou em suas próprias palavras, uma felicidade relativa: “[...] a felicidade completa e positiva é impossível; em vez dela, pode-se esperar apenas um estado relativamente menos doloroso” (tr. Flexcher, 2005FLEXCHER, M. (2005b). Schopenhauer. A arte de ser feliz. São Paulo, Martins Fontes .b, p. 46). Ou seja, a dor continua sendo positiva, e a felicidade seria apenas a supressão momentânea desse tormento. Portanto, ser feliz não consistirá em buscar prazer, pelo contrário, ser feliz é evitar a dor.

Ao dividir sua Eudemonologia em duas partes, máximas em relação a nós mesmos e máximas para o nosso comportamento em relação aos outros, insere o estoicismo como pedra fundamental por duas razões (tr. Flexcher, 2005FLEXCHER, M. (2005b). Schopenhauer. A arte de ser feliz. São Paulo, Martins Fontes .b, p. 5): 1) porque o estoicismo se torna um “termômetro” para uma postura de meio termo, juntamente ao agir maquiavélico; 2) mas principalmente, porque, como veremos, a escola estoica, para Schopenhauer, consiste tão somente em um conjunto de máximas, conselhos, ou, caso prefira nos termos empregados pelos antigos gregos e latinos, em καθήκοντα e praecepta, que visam instrução prática para a vida cotidiana, tal como projetado por ele neste pequeno tratado.

Além disso, a eudemonologia de Schopenhauer guarda uma relação com outro projeto ético do pensador: a soteriologia. Head (2016HEAD, J. (2016). Schopenhauer and the Stoics. Pli, The Warwick Journal of Philosophy, pp. 90-105.) observa a centralidade do resgate do estoicismo para a salvação do sujeito através da negação da Vontade. O sábio estoico seria, para Schopenhauer, o perfeito exemplo da exequibilidade da teoria de salvação, uma vez que o sábio possui um grau elevado de desenvolvimento da razão (Head, 2016, p. 94-95).7 7 Head arrisca seu argumento (quase recorrendo ao ex silentio) em tratar como uma simples nuance o fato de a razão ser instrumental em Schopenhauer e um fim supremo para os estoicos. É um aspecto relevante para ser posto como um detalhe secundário. Assim, embora possamos dizer que há uma aproximação entre a soteriologia de Schopenhauer e dos estoicos a partir da relação do sujeito com o mundo, a fundamentação é distinta. Ademais, o estoico admite a pré-paixão e a eupatheia, mesmo para o sábio, enquanto, Schopenhauer busca a completa aniquilação da Vontade (Vandenabeel, 2015, p. 19-20). Os praecepta parecem exercer a função associação entre a soteriologia e a eudemonologia, uma vez que através dos praecepta o sujeito pode adquirir conhecimento sobre si e sobre o mundo de modo a se ajustar diante de seus conflitos internos - daí a noção de caráter adquirido. Ou seja, embora descarte a progressão moral, Schopenhauer enfatiza uma possibilidade de “adestramento de si” (Viesenteiner, 2012VIESENTEINER, J. L. (2012). ‘Prudentia’ e o uso prático da razão em Schopenhauer. Revistas Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, vol. 3, n. 1 e n. 2, pp. 1-17., p. 6).

O estoicismo por Schopenhauer

O estoicismo é um dos pilares do pensamento eudemonológico de Schopenhauer, embora seja possível identificar um deslocamento para Aristóteles em Aforismos.8 8 Viesenteiner (2012) fala mais sobre esse deslocamento dos estoicos para Aristóteles. Mas sob qual concepção de estoicismo ele constrói sua eudemonologia?

Em primeiro lugar Schopenhauer parece dividir a filosofia estoica em dois segmentos. No § 6 de Fragmentos para a História de Filosofia 9 9 Tal texto foi publicado no Brasil como livro, porém é um capítulo parte de sua grande obra Parerga e Paralipomena. é observado por Schopenhauer que há a Stoá de Zenão, que seria a “genuína e primitiva” (tr. Jannini, 2007JANNINI, K. (trad.); (2007). Schopenhauer. Fragmentos sobre a história da filosofia. São Paulo, Martins Fontes ., p. 80) e há a Stoá de Arriano, contaminada por fundamentos judaico-cristãos (tr. Jannini, 2007, p. 79). Schopenhauer tece críticas duríssimas as Diatribes de Arriano,10 10 Schopenhauer afirma que as Diatribes e o Manual são de autores diferentes, sendo o segundo verdadeiramente ditado por Epicteto enquanto as Diatribes seriam reflexões de Arriano sobre as lições de Epicteto (tr. Jannini, 2007, p. 82). No entanto, examinando as fontes antigas verifica-se uma posição diferente da de Schopenhauer. Na carta prefácio das Diatribes que Arriano envia à Lúcio Gélio ele confirma: “Nem compus os discursos de Epicteto (como se alguém pudesse escrever tais coisas!), nem eu mesmo, que digo não os ter escrito, os trouxe a público” (tr. Dinucci, 2020, p. 43). Para uma posição contrária à de Schopenhauer cf. Dinucci (2020) e Dobbin (2008). Ambos afirmam que as Diatribes são uma “[...] transcrição das palavras de Epicteto sem nenhum tratamento literário” (Dinucci, 2020, p. 35). afirmando que um dos pilares de argumentação do livro - a doutrina do εφ᾽ ἡμιν - é vazia e que a obra como um todo não tem nenhuma relação com o “[...] verdadeiro espírito e os autênticos princípios da moral estoica” (tr. Jannini, 2007, p. 78). Schopenhauer faz esse movimento agressivo em relação a Arriano para marcar claramente a diferença entre o discípulo de Epicteto, que estaria corrompendo a escola, com a doutrina que ele considera como verdadeira - a de Zenão. A principal diferença que Schopenhauer observa é que na Stoá original há um panteísmo: Deus é o mundo, e enquanto no estoicismo de Arriano, Deus parece assumir uma persona dando uma missão aos sábios cínicos e estoicos. Assim, a moral estoica apresentada nessa obra, que segundo Schopenhauer há uma clara influência de princípios cristãos, não tem nenhum fundamento. Mas por que essa distinção é tão importante para Schopenhauer?

Schopenhauer inicia essa seção de sua obra magna dizendo que tratará da razão aplicada a ação das pessoas, e a denomina como “razão prática”. No entanto enfatiza que sua concepção de razão prática é diferente daquela exposta por Kant,11 11 No início do §16 Schopenhauer indica onde ele se estenderá na crítica à ética kantiana, a saber no apêndice de O mundo como vontade... Tomo I, e na obra Dois problemas fundamentais da ética. que teria cometido um erro ao pensar uma ética que preza por máximas universais, que são abstratas, como as únicas que tem cunho moral válido. Kant, segundo Schopenhauer, não teria entendido que o sujeito se relaciona com o mundo de forma empírica e imediata e que uma ética assim seria incapaz de reger as relações entre os sujeitos (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 139). É no contexto dessa crítica a Kant que Schopenhauer convida os estoicos ao debate, projetando seu conceito de razão prática na ética estoica.

O desenvolvimento perfeito da RAZÃO PRÁTICA, no verdadeiro e autêntico sentido do termo, o ápice a que o homem pode chegar mediante o simples uso da razão, com o que a sua diferença do animal se mostra da maneira mais nítida, foi exposto, enquanto ideal, na SABEDORIA ESTÓICA. (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 142).

Uma pergunta justa a se fazer agora é: em que consiste o “verdadeiro e autêntico sentido” da razão prática que ele imputa aos estoicos? Um dos motivos do rompimento de Schopenhauer para com Kant é que o primeiro acredita que o agir racional não garante a boa ação moral. Melhor dizendo, podemos usar nossa razão para uma conduta moral reprovável. Da mesma forma é possível agir moralmente bem sem o engenho da razão, conforme estipula a ética da compaixão schopenhaueriana, quando o sujeito age de forma desinteressada e irrefletida. Dessa forma a razão prática para Schopenhauer não teria cunho moral. Seria, antes,

[...] uma razão capaz de estabelecer máximas para a sabedoria de vida, de indicar ao homem uma ‘acomodação’ frente aos sofrimentos e a sua existência dolorosa e entediante [...] (Debona, 2013DEBONA, V (2013). A outra face do pessimismo: entre a radicalidade ascética e sabedoria de vida. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 160).

Portanto, ao projetar essa concepção de razão prática no estoicismo, Schopenhauer também está atribuindo a separação da esfera da racionalidade e da moralidade. E, de fato, isso não é apenas uma conclusão lógica que estamos fazendo, é algo que o próprio afirma:

Pois a ética estoica não é originária e essencialmente uma doutrina da virtude, mas mera instrução para uma vida racional, cujo fim e objetivo é a felicidade mediante a tranquilidade de ânimo (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 142).

E mais adiante diz: “A conduta virtuosa se encontra ali como que per accidens, como meio, não como fim” (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 142). Além disso, na esteira desta mesma afirmação, em Fundamento da Moral, Schopenhauer volta a falar de Kant, mas agora em um tom lisonjeador, de modo a higienizar a ética estoica (e toda ética socrática) de qualquer harmonia entre virtude, moralidade e felicidade:

[...] que antes de Kant, jamais ocorreu a alguém identificar o comportamento justo, virtuoso e nobre com o comportamento racional. Tem-se porém distinguido e separado ambos por completo (tr. Cacciola, 2001CACCIOLA, M. L. (2001). Schopenhauer. Sobre o Fundamento da Moral. São Paulo: Martins Fontes., p. 61).

Conforme visto, para Schopenhauer uma vida de felicidade positiva é impossível, o sujeito deve se conformar em ser menos infeliz. Este é outro ponto que chama atenção na sua interpretação do estoicismo no §16, porque ele também reputa essa visão aos estoicos. A impressão que temos ao lermos sua formulação é que há um espelhamento de sua visão de mundo no estoicismo. Por vezes, por causa da projeção de sua metafísica e de sua concepção antropológica pessimista torna-se quase indistinguível o que ele atribui à ética estoica e o que ele formula em seu próprio pensamento eudemonológico. Para tanto, Schopenhauer parte de um ponto pacífico: que o estoicismo é uma das várias escolas da antiguidade que busca uma vida feliz, mas ele atribui como conteúdo da vida feliz dos estoicos o mesmo eufemismo de “vida menos infeliz possível” verificável em seu pensamento.12 12 Embora Schopenhauer atribua esse caráter negativo da felicidade aos estoicos ele também afirma no § 16 que há uma contradição no estoicismo, e essa contradição seria justamente a busca pelo ideal de vida feliz: “Antes, verifica-se uma completa contradição em querer viver sem sofrer, contradição que também se anuncia com frequência na expressão corrente ‘vida feliz’” (tr. Barboza, 2005, p. 147)”. A confusão pode ser explicada pela distinção feita entre o estoicismo de Zenão e o de Arriano. Em resumo, Arriano e outros que Schopenhauer atribui a deturpação do estoicismo buscam essa vida feliz, contraditória, enquanto o verdadeiro estoicismo, o de Zenão, teria a clareza da felicidade como um fenômeno negativo.

Um estudo sistemático dos estoicos convencerá a todos que o fim de sua ética, bem como da ética do cinismo, da qual a primeira origina-se, não era outro senão uma vida a mais isenta possível de dor, e dessa forma, a mais feliz possível. (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 193)

Tal movimento é feito por Schopenhauer justamente para que ele possa acomodar sua visão de que a ética estoica seja o perfeito exemplo de razão prática. Como vemos, segundo o pessimista alemão, o escopo da Stoá era uma existência menos dolorosa possível em um mundo cheio de dores e imprevisibilidade. Assim ele estrutura a ética estoica como uma ética suis generis, se opondo a outras correntes de pensamento da antiguidade que buscavam um fim transcendente. Segundo sua leitura a virtude seria apenas um meio para o verdadeiro fim da escola - uma vida menos dolorosa possível. Esse modo de reconstruir o escopo e o conteúdo da eudaimonia estoica faz com que a virtude ganhe contornos instrumentais, como dito antes, a virtude aparece “[...] per accidens, como meio, não como fim”. Para Schopenhauer os estoicos irão usar tanto a razão quanto a virtude como um instrumento para eliminar os sofrimentos da vida - e é nesse sentido que ele diz a ética estoica é o perfeito exemplo de sua concepção de razão prática, como sugere o título do capítulo 16 dos Suplementos: “Sobre o uso prático da razão e sobre o estoicismo”.

Em decorrência deste fim imanente, isto é, da busca pela “segurança e tranquilidade permanentes”, o homem, como um ser racional, deve-se ocupar com máximas que possam lhe orientar nesta realidade sempre pronta para ferir.

Observo ainda que καθήκοντα dos estoicos, que Cícero traduz por officia, significam aproximadamente incumbências, ou aquilo que é conveniente fazer, em inglês incumbencies, em italiano quel che tocca a mi di fare, o di lasciare, portanto, em geral o que COMPETE, a um ser racional fazer (tr. Barboza, 2015BARBOZA, J. (2015). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação , Tomo II. São Paulo, Editora Unesp ., p. 194, grifos do tradutor)

Schopenhauer, ao afirmar que o agir convenientemente, isto é, seguir os καθήκοντα/pracepta/officia, é o que compete ao ser racional fazer, está na verdade afirmando, tanto nas entrelinhas de sua análise, quanto explicitamente - “[...] mera instrução para uma vida racional [...]” (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 142) - que o estoicismo não passa de uma razão prática que se propõe apenas a aconselhar, através de um mero uso de máximas para se sofrer menos. Nesse sentido, o estoicismo estaria explorando as potencialidades do sujeito, uma vez que o que o distingue dos animais é o emprego da razão prática - em último caso, seria a capacidade de agir a partir de máximas (tr. Barboza, 2005, p. 83). Ademais, ao expor a ética estoica nessas linhas, Schopenhauer acredita estar expondo “pela primeira vez, o verdadeiro espírito do cinismo e da Stóa” (tr. Jannini, 2007JANNINI, K. (trad.); (2007). Schopenhauer. Fragmentos sobre a história da filosofia. São Paulo, Martins Fontes ., p. 81), uma vez que esse espírito se perdeu nas mãos de comentadores de filosofia com interesses estrangeiros. Assim, o estoicismo na interpretação de Schopenhauer é “[...] apenas uma espécie de eudemonismo [...]” (tr. Barboza, 2005, p. 147).

Essa leitura da ética estoica como um eudemonismo justifica o movimento que vemos Schopenhauer fazer ainda nos Fragmentos, também delineado no §16 - a distinção entre o estoicismo corrompido de autores como Arriano e o estoicismo original de Zenão. As críticas sobre o estoicismo apresentado nas Diatribes se justificam porque Arriano parte de algumas contradições. Em primeiro lugar ao estabelecer o teísmo, por tabela o sábio estoico se torna um “[...] portador da moral [...]” (tr. Jannini, 2007JANNINI, K. (trad.); (2007). Schopenhauer. Fragmentos sobre a história da filosofia. São Paulo, Martins Fontes ., p. 79) - desse modo a virtude acaba sendo tomada erroneamente como um fim, não um meio. Em segundo lugar, também por causa do teísmo judaico-cristão nesse estoicismo, o ideal buscado é uma contradição: esses estoicos pregam uma vida sem sofrimento, porque o sábio ataráxico está imune a todas as dores do mundo, o que lhe soa estranho, porque a dor é inerente ao viver. Não por acaso, ao final de sua exposição no §16, ele compara o sábio estoico com um “boneco de madeira” - que em última instância representaria a negação total da vontade -, que “[...] não sabe aonde ir com sua sabedoria” (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 148) porque seu estado de tranquilidade perfeita não é compatível com o pior dos mundos possíveis. Esse ideal dos “estoicos tardios” conflita, de acordo com Schopenhauer, com a sabedoria estoica de Zenão, de modo a imputar não mais o fim imanente, mas um fim transcendente, misturando a doutrina estoica com o cristianismo (tr. Barboza, 2005, p. 194). Em resumo a ética estoica tomada dessa forma é opaca, porque esse ideal de sabedoria é impraticável.

Por outro lado, há um grande elogio ao estoicismo de Zenão, no qual Schopenhauer identifica o uso da sua concepção de razão prática. Ele argumenta que há um hiato entre a ética apresentada por Zenão e a posição dos estoicos posteriores.13 13 O próprio Schopenhauer acena com uma hipótese para explicar o motivo dos outros estoicos incorporarem teses estranhas ao estoicismo. De acordo com ele, tais filósofos se engajaram em discussões com epicuristas e peripatéticos e acrescentaram elementos estrangeiros ao estoicismo para blindarem suas argumentações (tr. Barboza, 2015, p. 145). Enquanto a posição de Arriano e de outros estoicos fazem do sábio aquele que deseja as coisas moralmente certas e uma felicidade positiva, a posição de Zenão faz do sábio aquele que basta a si próprio - remontando suas origens cínicas - e que aplica sua razão prática para cumprir esse objetivo. Perceba que, ao fazer isso, Schopenhauer reputa a Zenão (e ao cinismo) a mesma ideia que aparece em sua Eudemonologia. Ou seja, a felicidade é uma equação entre aquilo que queremos e aquilo que podemos ter. A desproporção, por sua vez, entre aquilo que queremos e aquilo que temos ou podemos ter é abstrata. Basta que raciocinemos melhor, e as máximas serão fundamentais nesse caso, para ajustar nossas ambições diante de nossas possibilidades (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 144). E quais são as possibilidades que, de acordo com Schopenhauer, o verdadeiro estoicismo oferece?

Antes de responder essa questão faremos uma pequena digressão. De acordo com o filósofo alemão, o estoicismo é uma escola oriunda do cinismo. Sua análise coloca o estoicismo de Zenão e o cinismo como uma e mesma coisa: “Deles [dos cínicos] surgiram os estoicos, ao metamorfosearem o prático em teórico” (tr. Barboza, 2015BARBOZA, J. (2015). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação , Tomo II. São Paulo, Editora Unesp ., p. 190).14 14 A interpretação que Schopenhauer faz tanto do estoicismo quanto do cinismo difere sensivelmente da linha hegeliana (cf. Haldane; Beiser, 1995, p. 480). Em outra oportunidade seria interessante perseverar em um estudo geral da interpretação schopenhaueriana das duas correntes filosóficas do período helenístico. Por agora, cabe registrar que salta aos olhos a leitura reducionista feita por Schopenhauer. Ao atribuir essa semelhança, Schopenhauer praticamente unifica as duas escolas, intercambiando suas ideias, atribuindo à Zenão a centralidade da “concórdia consigo mesmo” (tr. Barboza, 2005, p. 145), isto é, uma autossuficiência (αὐτάρκεια), doutrina reconhecidamente cínica.

Um estudo sistemático dos estoicos convencerá a todos que o fim de sua ética, bem como da ética do CINISMO, da qual a primeira origina-se, não era outro senão uma vida a mais isenta possível de dor e, dessa forma, a mais feliz possível; do que se segue que a moral estoica não passa de um tipo especial de EUDEMONISMO. (tr. Barboza, 2015BARBOZA, J. (2015). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação , Tomo II. São Paulo, Editora Unesp ., p. 193).

A doutrina da “concórdia consigo mesmo” que Schopenhauer atribui a Zenão tem origem no objetivo que os estoicos e os cínicos compartilham: uma vida mais isenta de dor possível. Por isso, para Schopenhauer, tanto o estoicismo quanto o cinismo não são nada além de um eudemonismo, tal como o seu. Segue argumentando que os cínicos buscam a “vida mais isenta possível de dor”, através da renúncia radical. Nesse sentido a virtude é descartada porque ela não proporciona, como o ascetismo radical, a felicidade de “[...] de modo imediato e incondicional” (tr. Barboza, 2015BARBOZA, J. (2015). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação , Tomo II. São Paulo, Editora Unesp ., p. 186; p. 184).15 15 Nisso também constitui as críticas de Schopenhauer aos estoicos que teriam deturpado o verdadeiro espírito da ética estoica. Eles teriam flexibilizado a postura ascética radical dos cínicos para uma doutrina dos indiferentes. Schopenhauer critica bastante a doutrina estoica dos indiferentes afirmando que não é possível encontrar um meio termo entre desejar e renunciar, e considera como “fanfarrões” os estoicos que a defendem (tr. Barboza, 2015, p. 190-191). Desse modo o estoicismo é convertido em uma aplicação de máximas através da razão prática, sem nenhuma dimensão moral, para uma vida menos dolorosa possível.

Ao propor tal interpretação Schopenhauer comete alguns “deslizes exegéticos”16 16 Pegamos essa expressão emprestada de Viesenteiner, que tece um breve comentário sobre a interpretação de Schopenhauer aos escritos aristotélicos nos Aforismos (2012, p. 8). que conduzem o entendimento da ética estoica e sua aplicação para outras direções. Obviamente não cabe a nós, e nem é nossa intenção, julgarmos a interpretação de Schopenhauer e nem tampouco delimitar a validade para o seu sistema filosófico. Mas é preciso pontuar que sua interpretação do estoicismo difere em vários pontos daquilo que Sêneca, várias vezes citado em suas obras, acena, produzindo alguns ruídos na comunicação estabelecida pelo filósofo alemão com os autores antigos.17 17 Bezerra (2006) defende uma posição contrária à nossa. Embora concordemos com a premissa de seu argumento - ele acredita que Schopenhauer volta até Sêneca porque este se distancia de outros estoicos, por achar intangível o ideal do sábio estoico (2006, pp. 13-14) -, discordamos de sua conclusão. Bezerra analisa apenas pontos circunstanciais de aproximação entre os autores. Em relação a Schopenhauer, Bezerra confina sua análise na Arte de ser feliz em detrimento do §16 do Tomo I, do capítulo 16 do Tomo II e do §6 Fragmentos. Em relação a Sêneca, embora Bezerra perceba que Schopenhauer tem grande apreço pelos praecepta (2006, p. 22), em nenhum momento é feita alguma análise (elas sequer são mencionadas) das duas principais epístolas do filósofo sobre o tema. Em resumo, discordamos de Bezerra porque embora Schopenhauer tenha a mesma intenção de Sêneca, ele radicaliza a posição do estoico latino, se distanciando bastante de suas ideias. Embora haja esses ruídos, as reflexões de Schopenhauer sobre o estoicismo são valiosas para pensarmos e repensarmos algumas questões centrais do estoicismo que os filósofos tratam desde a antiguidade, como o debate sobre a suficiência dos praecepta e decreta. Para além disso, também acreditamos que sua visão sobre o estoicismo como um “tipo especial de eudemonismo” trazem grande impacto para a compreensão e formulação do estoicismo na modernidade.

Epístolas 94 e 95

Sêneca ficou conhecido pelo seu estilo elegante e objetivo. Por sorte seu grande trabalho, Epistulae Morales ad Lucilium, bem como outros textos chegaram até nós. As epístolas enviadas para seu dileto amigo Lucílio, um epicurista que Sêneca procurava converter para o estoicismo, mostram grande preocupação com a ética: “a filosofia, essa, ensina a agir, não a falar [...]” (Ep. 20.2). De fato, Sêneca se difere de outros filósofos estoicos pela ênfase nesse recorte, por vezes fazendo duras críticas a outras áreas do estoicismo, como a lógica. Entender a posição de Sêneca nas epístolas 94 e 95, fonte das principais discussões sobre os praecepta e os decreta, é importante porque a sua visão sobre o tema reflete a posição estoica, já que nesse tópico específico Sêneca adota uma postura ortodoxa - a mesma de Cleantes (Ep. 94.4) -, argumentando em um primeiro momento contra o “dissidente” Ariston de Quios.

Nos primeiros parágrafos da epístola 94 Sêneca coloca duas questões que guiarão a discussão: os praecepta são úteis ou inúteis? Os praecepta tornam os decreta supérfluos? (Ep. 94.4). Ao passo que coloca as questões também coloca em jogo algumas alternativas para respondê-las. Há aqueles que consideram apenas os decreta úteis, posição atribuída ao estoico não ortodoxo Ariston de Quios e há os que consideram os praecepta inúteis se eles não se relacionarem com os decreta, posição que será defendida por Sêneca (e que remonta Cleantes) ao longo destas duas epístolas. Por fim, pode-se dizer que há uma terceira via, daqueles que consideram apenas os praecepta úteis, que não é atribuída a ninguém especificamente (Ep. 94.1-4). A partir das questões postas, podemos vislumbrar a estrutura relativamente simples das duas epístolas: na 94 Sêneca dialoga com a posição de Ariston, de modo a mostrar que os decreta não bastam - há uma utilidade para os praecepta, enquanto na 95 o diálogo de Sêneca desloca para aqueles que afirmam que os praecepta bastam, tornando o resto da filosofia, e os decreta são inúteis (Ep. 94.52; 95.4).

Ambas as epístolas apresentam formatações similares: no início de cada uma delas são apresentadas algumas objeções que guiarão a reflexão ao longo do texto. O primeiro bloco de argumentação da epístola 94 começa no passo 5 e segue até o 18, em que é exposta a posição de Ariston. Ele defenderá a primazia completa dos princípios da filosofia, e, por conseguinte a inutilidade dos praecepta. Podemos elencar seus principais argumentos em cinco pontos: 1) aquele que aprende os decreta já é capaz de deliberar em qualquer circunstância e de viver bem. Os praecepta, neste caso, nada acrescentam (Ep. 94.3; 94.8); 2) os praecepta são inúteis porque eles não eliminam a raiz do erro, que está na alma do sujeito, interferindo nas suas tomadas de decisão. Assim, os praecepta apenas produzem uma ilusão - é como “[...] aconselhar um doente a actuar como um homem saudável mas sem lhe restituir a saúde” (Ep. 94.5); 3) os praecepta são inúteis porque são alheios ao próprio sujeito. São apenas máximas, tal como aquelas que as crianças copiam nos seus cadernos, mas que são incapazes de aplicar (Ep. 94.9); 4) os praecepta são inúteis tanto para situações complexas quanto para as óbvias. Para as óbvias eles são dispensáveis, pois, todos sabem o que fazer. Para as complexas é preciso de provas, e as provas serão mais importantes que os próprios conselhos. Ademais, tais provas se encontram nos decreta, que tornam os conselhos supérfluos (Ep. 94.10-11); 5) os praecepta são inúteis porque eles não conseguem abarcar toda a complexidade e o ineditismo da vida, isto é, eles aconselham para situações particulares, mas as situações particulares são infinitas (Ep. 94.14). Em resumo, para Ariston, os decreta são suficientes. Quem os aprendeu, aprendeu a filosofia e a virtude e é capaz de encontrar a solução adequada para qualquer situação posta.

Depois de finalizar a exposição dos argumentos de Ariston, Sêneca anuncia que irá responder a cada um deles. E, assim, inicia-se o segundo bloco de argumentação, entre os passos 18 e 52. A posição de Sêneca não é radical como a de Ariston, portanto, ao responder as objeções postas, Sêneca não discordará fundamentalmente deste. Assim como Ariston, Sêneca irá argumentar em favor dos decreta posteriormente, na epístola 95. O que difere o pensamento dos dois filósofos é o fato de Sêneca considerar um papel importante para os praecepta na progressão moral do indivíduo. Para Sêneca não é incompatível reconhecer esse papel e admitir que os decreta, tal como Ariston argumenta, são indispensáveis (Ep. 94.21). Recapitularemos agora apenas algumas das respostas que Sêneca replicou a Ariston.

Os praecepta são úteis, em primeiro lugar, porque embora não erradiquem totalmente os vícios, podem ajudar a diminuir sua intensidade. Não é porque os praecepta não curam tudo que são completamente descartáveis (Ep. 94.24). Em segundo lugar, eles podem ajudar com questões óbvias porque mantém a memória ativa. Sêneca afirma que muitas das coisas que sabemos não praticamos, assim é preciso dos praecepta, para nos advertir ou exortar (Ep. 94.25). E isso vale mesmo para aqueles que possuem os decreta: “não interessa que estes princípios lá estejam guardados, mas que estejam activos” (Ep. 94.26). Isto é, Sêneca acredita que os praecepta cumprem um papel fundamental - o papel de colocar os decreta em prática. Seguindo suas respostas à Ariston, Sêneca diz que não é necessário provas para justificar os praecepta, basta que eles sejam proferidos por alguma autoridade ou que venham através de uma forma adequada e convincente (Ep. 94.28). Sêneca também destaca que mesmo que o sujeito possua os decreta, e saiba o que fazer, ainda assim pode usar os praecepta, por estes indicarem como agir (Ep. 94.32). Em 94.35 Sêneca diz que os praecepta não precisam ser infinitos, pois só se elabora conselhos e diretrizes para temas que são urgentes, e nesses casos os praecepta apenas variam de época e local. Por fim vale citar uma passagem luminosa de Sêneca que ajuda a transicionar para seus argumentos da epístola 95:

A virtude reveste dois aspectos: um, a contemplação da verdade; outro a acção. O estudo teórico leva-nos à contemplação, a preceptística conduz-nos à acção. (Ep. 94.45, tr. Segurado; Campos, 2014 )

A passagem não deixa dúvida: os praecepta estão a serviço da virtude. Mas isso não significa dizer que os praecepta cumprem apenas um papel instrumental na ética estoica. Uma das primeiras preocupações de Sêneca na epístola 94 é argumentar contra aqueles que sustentam que os praecepta não possuem cunho moral. Admite-se, é claro, em algum nível seu caráter instrumental - os praecepta são conselhos para os sujeitos cumprirem seus deveres (officia) dentro da sociedade -, mas Sêneca discorda que eles possuem um caráter puramente instrumental. Isso significa dizer que são instrumentos à serviço da virtude, e essa sutileza faz toda a diferença. Do contrário qualquer conselho poderia ser tomado como um praecepta, mesmo aqueles imorais como, “se queres ficar rico, roube sem ser pego”, ou conselhos amorais como “em um dia de sol, tome um sorvete para refrescar”. Fazendo eco à posição ortodoxa, Sêneca afirma:

Cleantes, por seu lado, considera útil esta parte da filosofia, mas incompleta se não for derivada da teoria geral, isto é, se ignorar os princípios básicos e as questões fundamentais da filosofia. (Ep. 94.4 tr. Segurado; Campos, 2014).

Sêneca manterá essa argumentação na epístola 95. Tal como na epístola anterior, também são apresentadas no início do texto as objeções que o filósofo pretende responder: é preciso agir justamente para viver uma vida feliz, e como visto anteriormente, os praecepta engendram a ação justa, portanto, são suficientes e tornam os decreta supérfluos (Ep. 95.4; 95.6); é defendida uma técnica de sabedoria de vida semelhante ao que vemos nas artes liberais, onde apenas os praecepta bastariam para a instrução de uma vida feliz (Ep. 95.7).

Os praecepta não podem ser tomados como necessários e suficientes, sem se colocarem a serviço da virtude, porque não há uma relação necessária entre estes e as ações justas - os decreta intermediam as duas esferas (Ep. 95.4-5). Os decreta oferecem ao sujeito a constância em suas ações, saber como agir e porque agir. Ou seja, os decreta tratam da contemplação da virtude, os praecepta tratam de sua prática e um está subordinado ao outro. Os praecepta só tem validade enquanto vinculados aos decreta. O que nos permite afirmar que os praecepta estão, portanto, vinculados também à virtude. Assim sendo, mesmo ao se subordinarem à virtude os praecepta não são suficientes para a instrução da vida boa, mas são necessários, porque a própria virtude necessita da unificação entre teoria e prática para se realizar (Ep. 94.47). Com isso, nos parece que Sêneca demonstra que os praecepta não são suficientes, mas são necessários para a boa formação moral.

Outra objeção é apresentada seguida de uma esclarecedora réplica de Sêneca:

Se às restantes artes bastam os preceitos, também bastarão à sabedoria, pois esta é a arte da vida. Como se ensina o ofício a um piloto? Dizendo-lhe 'que manobre o leme desta maneira, que recolha as velas deste modo, que aproveite assim o vento favorável, que faça frente assim ao vento contrário, que tire partido assim do vento que ora sopra daqui ora dali'. Os preceitos também chegam para formar os demais artífices, e portanto também serão suficientes no caso do artífice da arte de viver. (Ep. 95.7, grifo de Segurado; Campos, 2014)

Essa teoria parece defender uma técnica de sabedoria de vida semelhante às artes liberais, até mesmo pela comparação com a pilotagem. Se para ser um bom piloto é suficiente receber instruções do que fazer ao estar com o leme na mão, assim também é para a vida. Ao objetar essa última tese apresentada, Sêneca remonta argumentos já vistos nas epístolas 89 e 90, onde afirma que as artes liberais são “acessórios da vida”, e não a sua totalidade.

Ao distinguir a filosofia das artes liberais, ele dirá que na filosofia não se pode cometer um erro proposital, pois isso indicaria uma falha de caráter - ser injusto deliberadamente é pior que ser injusto inconscientemente. Enquanto nas artes liberais o processo é inverso: se um médico erra inconscientemente é porque ele não domina por inteiro sua técnica - é um profissional ruim (Ep. 95.9). Neste ponto repousa uma discussão interessante, porque a partir dele podemos até pensar os limites dessa metáfora muito difundida entre os estudiosos, teóricos e até entre os próprios estoicos da filosofia como uma arte de viver. Uma vez que a filosofia e a vida englobam elementos éticos, morais, estéticos e ontológicos, os simples praecepta não darão conta de toda sua complexidade. Para compreender e viver de acordo com determinada filosofia é preciso de um conjunto de princípios - os decreta (Ep. 95.12). São estes que fundamentam a ação humana e a criam a conexão com o todo.

Percebemos, portanto, outro aspecto negligenciado por Schopenhauer - o impacto da ordem cósmica estoica na teoria moral. A ação derivada da virtude busca uma harmonia teleológica com todo o universo. Essa ação perfeita, virtuosa, não pode ser tomada isoladamente, apenas entre o sujeito que age e aqueles que são afetados sumariamente. Assim, os estoicos entendem a virtude como adequação da parte ao todo e o sábio como aquele que compreende o funcionamento amplo do cosmo em sua cadeia de relações, cujo status elevado, se dê justamente por acessar, através da compreensão, a adequação ao logos divino. Desse modo, o sábio vislumbra seu destino e jamais é arrastado pelos acontecimentos (Ep. 37.4-5). Daí a insuficiência dos praecepta em cumprir um papel moral e de uma vida feliz. É preciso dos princípios da filosofia para esgotarmos essa compreensão.

Entre os princípios básicos da filosofia e os preceitos práticos existe a mesma diferença que entre as letras e os membros da frase: estes são constituídos por letras, as quais originam tanto os membros de frase como a totalidade das frases possíveis! (Ep. 95.12, tr. Segurado; Campos, 2014)

Essa metáfora confirma o que Sêneca já trabalhava em cartas anteriores: nós não podemos pensar na nossa vida e nem nossas ações como algo isolado da comunidade ou de um contexto maior.

Os decreta ajudam nessa compreensão porque oferecem não só o que e o como dos praecepta, mas, principalmente o porquê, dando a visão ampla do todo que é necessário para que se viva feliz e virtuosamente. Aqui cabe uma digressão rápida nos passos 19-21 da epístola 65, em que Sêneca argumenta com Lucílio que as questões morais estão intimamente relacionadas a temas ontológicos e físicos. Ao abordar questões do corpo e remeter a uma razão inteligente que está por trás da própria racionalidade, Sêneca se opõe fortemente ao materialismo: “Eu sou algo mais, eu nasci para algo mais do que para ser escravo do meu corpo, a quem não tenho em maior conta do que a uma cadeia em torno à minha liberdade”. O “algo mais” refere-se ao papel no universo que cada um deve encontrar e entendê-lo para cumpri-lo. Daí a importância dos decreta e dos porquês que ele oferece. Aquele que vive feliz, vive uma vida de completude, portanto, suas ações não podem ser estranhas ao seu papel no mundo, caso contrário, teríamos não um virtuoso, mas alguém por vezes assertivo e na melhor das hipóteses um ser autômato (Ep. 95-39).

Por fim, uma terceira grande objeção que Sêneca responde é qual o papel dos decreta para o bem-agir. O filósofo indica que eles são importantes para (1) quem não tem predisposição para a virtude, pois ajuda a apontar a direção correta, (2), para aqueles que já estão inclinados para o bem-agir, pois indica os porquês e (3) para aqueles que estão inclinados para o mal, pois os decreta agem nas causas dos vícios, de modo a extirpá-los (Ep. 95.37). Sêneca também traça o limite para a utilidade dos praecepta:

Por conseguinte, de nada servirá dar conselhos práticos se primeiro não removem os obstáculos a que esses conselhos sejam seguidos [...] (Ep. 95.38, tr. Segurado; Campos, 2014).

Em resumo, percebemos que os praecepta por si só não cumprem aquilo que a filosofia estoica promete, porque não são capazes de tornar uma pessoa virtuosa, e, por conseguinte, feliz. Para os estoicos o valor moral da ação não está tão somente naquilo que ela produz como consequência, mas no modo como ela é engendrada. Em outro tratado, De Beneficiis, Sêneca retoma essa discussão várias vezes, afirmando implícita e explicitamente a importância da disposição interna para a ação:

Tu vês que o ato em si não tem muita relevância, porque não é considerado um benefício quando se faz o bem com uma má disposição. (2.19.1 tr. Borges; Brunetto, 2020BORGES, G. F. B. B.; BRUNETTO, B. O. S. (trad). (2020). Sêneca. Sobre os Benefícios, livro segundo. Hypnos, n. 44, pp. 95-179.).

É importante que o sujeito tenha consciência plena daquilo que está fazendo e dos motivos que o levaram àquilo. Só assim poderá agir com constância e firmeza - que só a virtude e os decreta proporcionam. Só agindo certo pelos motivos certos é que adquirimos a boa vida. Não se trata apenas de uma atuação, como sugere os intérpretes de Schopenhauer ao analisar sua ética do “como se” (Safranski, 2011SAFRANSKI, R. (2011). Schopenhauer: E os anos mais selvagens da filosofia. São Paulo, Geração Editorial., p. 620). É preciso uma interiorização, internalização. E só é possível internalizar os decreta. Já que os pracepta são regras particulares alheias ao sujeito.

Sêneca também identifica um problema de ordem lógica na argumentação daqueles que propõe uma filosofia sem decreta. A rigor esses partem do pressuposto que os decreta são inúteis porque os conselhos conseguem recobrir todos os aspectos da vida (Ep. 95. 60). No entanto, quem argumenta a partir dessa lógica esquece que o senso comum elabora seus praecepta a partir de decreta - isso foi apresentado logo no início da epístola 94 quando Sêneca fala de Cleantes. Estes se enganam por julgarem os decreta dispensáveis apenas por ter contato imediato com os praecepta e não compreenderem que é justamente os decreta que os fundamentam (Ep. 95.64).

Conclusão

Ao comparar as construções argumentativas de Schopenhauer e Sêneca sobre o tema percebemos que há modificações de várias ordens - a que mais chama atenção é a ênfase de Schopenhauer em afirmar que não há espaço para a virtude no estoicismo, enquanto Sêneca insistirá o contrário, daí o apelo aos decreta. Essas diferenças sobre o mesmo tópico suscitam questões: quais os motivos que levaram Schopenhauer a fazer essa leitura do estoicismo? O que criou essa divergência entre a leitura clássica do estoicismo e a leitura que Schopenhauer fez em suas obras?

Cremos que o principal ponto de tensão seja a visão da razão prática e o seu papel. A interpretação de Schopenhauer não pode acomodar as principais teses da antiga escola, porque a concepção de racionalidade é diferente nos dois pensamentos. A partir daí, nossa conclusão pode ser segmentada em três pontos principais. O primeiro é a dimensão ontológica que é diferente nas duas posições. A ontologia de Schopenhauer é centrada em uma Vontade irracional, totalmente diversa da ontologia racionalista dos estoicos, baseada em um logos divino que perpassa toda a natureza. Há claramente um descompasso entre as duas concepções. A princípio esse descompasso não seria tão relevante, no entanto, ao que parece, Schopenhauer deseja acomodar o estoicismo, que como visto, ele pleiteia ser o “verdadeiro espírito da Stoá”, em seu sistema filosófico, o que causa um grande ruído. O segundo ponto é dimensão instrumental da razão para Schopenhauer. A razão para este seria apenas uma ferramenta, sem nenhum comprometimento com a dimensão moral. Melhor dizendo, a razão nos serve para conseguirmos dar conta da complexidade que é a vida. No último ponto, Schopenhauer afirma que a razão não produziria, para os estoicos, a ação moral, isto é, ações racionais e ações virtuosas são separadas. Sua conclusão é devastadora para a Stoá, porque a razão, afinal, poderia produzir boas e más ações. Neste sentido a causa da virtude não seria necessariamente a razão - uma ideia que não vemos ser defendida nos textos estoicos.

Em resumo, há forte contraste entre a posição de Schopenhauer e a posição de estoicos ortodoxos, como Sêneca e não ortodoxos, como Ariston. Uma vez que Schopenhauer reputa o estoicismo como um eudemonismo, a ética da escola seria tal como a sua, uma ética do “como se” ou uma “sabedoria teatral”, como postulou Safranski, uma posição suis generis se tratando deste tema.18 18 “Como se” (als-ob), consagrado por Vaihinger, mas que de acordo com o próprio, é latente desde Kant. Não podendo acessar a Coisa-em-si, somente ao fenômeno, agimos “como se” conhecêssemos determinados aspectos de nossa existência que, em verdade, nos escapam, como Deus. Sendo a razão teórica limitada, Kant postula a fé racional: há razões práticas para acreditar na existência de Deus (Vaihinger, 2021, p. 262ff). Em seu livro, Vaihinger radicaliza, tratando tanto aspectos éticos, religiosos, políticos e científicos a partir de uma perspectiva puramente heurística. Schopenhauer, parece antecipar em alguma medida Vaihinger, e acena com o als-ob empregando-o na esfera moral. O “como se” como uma ferramenta para que o sujeito drible o caráter inteligível (oriundo da vontade e imutável). O “como se” em Schopenhauer garante ao sujeito, através do uso da razão prática (isto é, de sua sabedoria de vida, dos praecepta/máximas) e da formação de seu caráter adquirido, alternativas para se relacionar de maneira mais positiva com o mundo - como se este mundo não fosse governado por uma força irracional incorrigível, donde o próprio sujeito é objetidade. "Tratar-se-ia de uma estratégia de cunho positivo para se enfrentar a vida como se ela não pudesse ser afetada por adversidades ou pelo menos como se estas últimas fossem sempre tardar ou nunca chegar" (Debona, 2016, p. 97; cf. também Chevitarese, 2010, p. 144). Schopenhauer parece, portanto, inaugurar uma terceira categoria: enquanto Sêneca defende que os praecepta e os decreta são importantes e complementares, Ariston defende apenas os decreta e a inutilidade dos praecepta, Schopenhauer como vimos, por sua vez defenderá que apenas os praecepta são o suficiente para tornar o homem feliz.

Os estoicos discutem os praecepta a partir de um ponto de vista ético e pedagógico, enquanto Schopenhauer pensa no estoicismo como em uma ética de conselhos, retirando o conteúdo moral dos conselhos e dos deveres e visando produzir uma sabedoria teatral, baseada apenas máximas para atingir uma ilusão de bem-estar, que é o máximo de felicidade que o sujeito pode conseguir neste mundo - lembremos do elogio que fez a Kant em Sobre o fundamento da moral, por separar a ética da felicidade.

Isso parece ecoar de alguma maneira na recepção atual do estoicismo. Proliferam abordagens de um estoicismo disfuncional, esterilizado da ética, da moral, da virtude, da ontologia, da lógica e da física. Um estoicismo calcado apenas em praecepta sem nenhuma preocupação com os porquês e os princípios da filosofia (decreta). O estoicismo que vemos ecoar de Schopenhauer é paradoxal, sendo ao mesmo tempo deontológico, porque as pessoas procuram regras para seguir, mas ao mesmo sem o caráter moral da deontologia, e também das éticas da virtude.

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  • 1
    O termo praecepta é uma tradução latina que Cícero (Gomes, 2000GOMES, C. H. (2000). Cícero. Dos Deveres. Lisboa, Edições 70.) fez em De Officis (1.7-8) do termo grego καθήκοντα. De modo simples, podemos conceituar os praecepta como regras particulares oferecidas como deveres ou conselhos para orientar o sujeito em uma determinada ocasião. Em uma linguagem kantiana, são como os “deveres perfeitos”: “faça isso”, “não faça aquilo”. Enquanto os decreta, outro termo traduzido do grego, κατορθώματα, por Cícero estão ligados aos princípios universais da filosofia moral. Sêneca ao discorrer sobre as diferenças entre os decreta e os praecepta observa que este é o único ponto de distinção (Ep. 94.31).
  • 2
    Schopenhauer condensa sua interpretação do estoicismo no §16 do Tomo I de O mundo como Vontade e como Representação, assim como no capítulo 16 dos Suplementos, no §6 de Fragmentos para a história da filosofia, nos Aforismos para a Sabedoria de Vida, e, por fim, nos manuscritos organizados por Franco Volpi, A Arte de Ser feliz.
  • 3
    Embora não concluído, podemos dizer que o esforço de Schopenhauer foi frutífero. As máximas reunidas nos manuscritos entre 1826 e 1829 serviram de ensejo para ele escrevesse um dos capítulos mais notórios do Parerga e Paralipomena, o capítulo 5, intitulado Aforismos para a sabedoria de vida (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp.b, p. IX).
  • 4
    Gracián não propõe uma ética ou moral para embasar seus conselhos (tr. Benedetti, 2009BENEDETTI, I. C. (2009). Baltasar Gracián. A arte de prudência. São Paulo, Martins Fontes .). Suas máximas visam tão somente o aprimoramento do comportamento das pessoas em relação a determinadas situações. Isso não é necessariamente uma novidade. Na filosofia antiga Plutarco fez algo parecido em alguns de seus tratados, embora haja algo nesses livros que nos permite vislumbrar um pano de fundo moral.
  • 5
    Schopenhauer traduziu o texto de Gracián para alemão entre 1831 e 1832, publicado apenas em 1862, dois anos após a morte de Schopenhauer (Safranski, 2011SAFRANSKI, R. (2011). Schopenhauer: E os anos mais selvagens da filosofia. São Paulo, Geração Editorial., p. 510). Em carta enviada a Johann Georg Keil, Schopenhauer revela que seu escritor preferido é Gracián (tr. Debona, 2013DEBONA, V (2013). A outra face do pessimismo: entre a radicalidade ascética e sabedoria de vida. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 151).
  • 6
    No Apêndice de O mundo... Tomo I ele afirma: “A questão, já antes tratada por Platão e Sêneca, se a virtude pode ser ensinada, deve ser respondida negativamente.” (p. 654). Em Aforismos, Schopenhauer dedica muito a discussão do caráter do sujeito a fim de deixar claro os limites da felicidade. “Sua individualidade determina de antemão o grau de sua felicidade possível” (tr. Barboza, 2009BARBOZA, J. (2009). Schopenhauer. Aforismos para a sabedoria de vida. São Paulo, Martins Fontes., p. 7). Já no § 20 de Fundamento da Moral Schopenhauer é enfático: “Pode uma ética, já que descobre a motivação moral, fazê-la atuar? Pode ela transformar um homem de coração duro num compassivo e, daí, num justo e caridoso? Por certo não; a diferença de caracteres é inata e indelével” (tr. Cacciola, 2001CACCIOLA, M. L. (2001). Schopenhauer. Sobre o Fundamento da Moral. São Paulo: Martins Fontes., p. 190).
  • 7
    Head arrisca seu argumento (quase recorrendo ao ex silentio) em tratar como uma simples nuance o fato de a razão ser instrumental em Schopenhauer e um fim supremo para os estoicos. É um aspecto relevante para ser posto como um detalhe secundário. Assim, embora possamos dizer que há uma aproximação entre a soteriologia de Schopenhauer e dos estoicos a partir da relação do sujeito com o mundo, a fundamentação é distinta. Ademais, o estoico admite a pré-paixão e a eupatheia, mesmo para o sábio, enquanto, Schopenhauer busca a completa aniquilação da Vontade (Vandenabeel, 2015, p. 19-20).
  • 8
    Viesenteiner (2012VIESENTEINER, J. L. (2012). ‘Prudentia’ e o uso prático da razão em Schopenhauer. Revistas Voluntas: Estudos sobre Schopenhauer, vol. 3, n. 1 e n. 2, pp. 1-17.) fala mais sobre esse deslocamento dos estoicos para Aristóteles.
  • 9
    Tal texto foi publicado no Brasil como livro, porém é um capítulo parte de sua grande obra Parerga e Paralipomena.
  • 10
    Schopenhauer afirma que as Diatribes e o Manual são de autores diferentes, sendo o segundo verdadeiramente ditado por Epicteto enquanto as Diatribes seriam reflexões de Arriano sobre as lições de Epicteto (tr. Jannini, 2007JANNINI, K. (trad.); (2007). Schopenhauer. Fragmentos sobre a história da filosofia. São Paulo, Martins Fontes ., p. 82). No entanto, examinando as fontes antigas verifica-se uma posição diferente da de Schopenhauer. Na carta prefácio das Diatribes que Arriano envia à Lúcio Gélio ele confirma: “Nem compus os discursos de Epicteto (como se alguém pudesse escrever tais coisas!), nem eu mesmo, que digo não os ter escrito, os trouxe a público” (tr. Dinucci, 2020DINUCCI, A. (2020). Epicteto. Diatribes de Epicteto, livro I. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra., p. 43). Para uma posição contrária à de Schopenhauer cf. Dinucci (2020) e Dobbin (2008). Ambos afirmam que as Diatribes são uma “[...] transcrição das palavras de Epicteto sem nenhum tratamento literário” (Dinucci, 2020, p. 35).
  • 11
    No início do §16 Schopenhauer indica onde ele se estenderá na crítica à ética kantiana, a saber no apêndice de O mundo como vontade... Tomo I, e na obra Dois problemas fundamentais da ética.
  • 12
    Embora Schopenhauer atribua esse caráter negativo da felicidade aos estoicos ele também afirma no § 16 que há uma contradição no estoicismo, e essa contradição seria justamente a busca pelo ideal de vida feliz: “Antes, verifica-se uma completa contradição em querer viver sem sofrer, contradição que também se anuncia com frequência na expressão corrente ‘vida feliz’” (tr. Barboza, 2005BARBOZA, J. (2005). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação. São Paulo, Editora Unesp., p. 147)”. A confusão pode ser explicada pela distinção feita entre o estoicismo de Zenão e o de Arriano. Em resumo, Arriano e outros que Schopenhauer atribui a deturpação do estoicismo buscam essa vida feliz, contraditória, enquanto o verdadeiro estoicismo, o de Zenão, teria a clareza da felicidade como um fenômeno negativo.
  • 13
    O próprio Schopenhauer acena com uma hipótese para explicar o motivo dos outros estoicos incorporarem teses estranhas ao estoicismo. De acordo com ele, tais filósofos se engajaram em discussões com epicuristas e peripatéticos e acrescentaram elementos estrangeiros ao estoicismo para blindarem suas argumentações (tr. Barboza, 2015BARBOZA, J. (2015). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação , Tomo II. São Paulo, Editora Unesp ., p. 145).
  • 14
    A interpretação que Schopenhauer faz tanto do estoicismo quanto do cinismo difere sensivelmente da linha hegeliana (cf. Haldane; Beiser, 1995, p. 480). Em outra oportunidade seria interessante perseverar em um estudo geral da interpretação schopenhaueriana das duas correntes filosóficas do período helenístico. Por agora, cabe registrar que salta aos olhos a leitura reducionista feita por Schopenhauer.
  • 15
    Nisso também constitui as críticas de Schopenhauer aos estoicos que teriam deturpado o verdadeiro espírito da ética estoica. Eles teriam flexibilizado a postura ascética radical dos cínicos para uma doutrina dos indiferentes. Schopenhauer critica bastante a doutrina estoica dos indiferentes afirmando que não é possível encontrar um meio termo entre desejar e renunciar, e considera como “fanfarrões” os estoicos que a defendem (tr. Barboza, 2015BARBOZA, J. (2015). Schopenhauer. O mundo como vontade e como representação , Tomo II. São Paulo, Editora Unesp ., p. 190-191).
  • 16
    Pegamos essa expressão emprestada de Viesenteiner, que tece um breve comentário sobre a interpretação de Schopenhauer aos escritos aristotélicos nos Aforismos (2012, p. 8).
  • 17
    Bezerra (2006BEZERRA, C. C. (2006). Sêneca e Schopenhuaer: A arte de ser feliz. Kalagatos, v. 3 n. 5, pp. 11-32.) defende uma posição contrária à nossa. Embora concordemos com a premissa de seu argumento - ele acredita que Schopenhauer volta até Sêneca porque este se distancia de outros estoicos, por achar intangível o ideal do sábio estoico (2006, pp. 13-14) -, discordamos de sua conclusão. Bezerra analisa apenas pontos circunstanciais de aproximação entre os autores. Em relação a Schopenhauer, Bezerra confina sua análise na Arte de ser feliz em detrimento do §16 do Tomo I, do capítulo 16 do Tomo II e do §6 Fragmentos. Em relação a Sêneca, embora Bezerra perceba que Schopenhauer tem grande apreço pelos praecepta (2006, p. 22), em nenhum momento é feita alguma análise (elas sequer são mencionadas) das duas principais epístolas do filósofo sobre o tema. Em resumo, discordamos de Bezerra porque embora Schopenhauer tenha a mesma intenção de Sêneca, ele radicaliza a posição do estoico latino, se distanciando bastante de suas ideias.
  • 18
    Como se” (als-ob), consagrado por Vaihinger, mas que de acordo com o próprio, é latente desde Kant. Não podendo acessar a Coisa-em-si, somente ao fenômeno, agimos “como se” conhecêssemos determinados aspectos de nossa existência que, em verdade, nos escapam, como Deus. Sendo a razão teórica limitada, Kant postula a fé racional: há razões práticas para acreditar na existência de Deus (Vaihinger, 2021, p. 262ff). Em seu livro, Vaihinger radicaliza, tratando tanto aspectos éticos, religiosos, políticos e científicos a partir de uma perspectiva puramente heurística. Schopenhauer, parece antecipar em alguma medida Vaihinger, e acena com o als-ob empregando-o na esfera moral. O “como se” como uma ferramenta para que o sujeito drible o caráter inteligível (oriundo da vontade e imutável). O “como se” em Schopenhauer garante ao sujeito, através do uso da razão prática (isto é, de sua sabedoria de vida, dos praecepta/máximas) e da formação de seu caráter adquirido, alternativas para se relacionar de maneira mais positiva com o mundo - como se este mundo não fosse governado por uma força irracional incorrigível, donde o próprio sujeito é objetidade. "Tratar-se-ia de uma estratégia de cunho positivo para se enfrentar a vida como se ela não pudesse ser afetada por adversidades ou pelo menos como se estas últimas fossem sempre tardar ou nunca chegar" (Debona, 2016DEBONA, V. (2016). Caráter adquirido, sociabilidade e a moral do “como se” (Als-Ob) em Schopenhauer. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, vol. 9, n. 1, pp.84-102., p. 97; cf. também Chevitarese, 2010CHEVITARESE, L. (2010). A eudemonologia empírica de Schopenhauer. In: REDYSON, Deyve (Org.). Arthur Schopenhauer no Brasil. João Pessoa, Ideia, pp. 127-146., p. 144).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2022
  • Aceito
    10 Mar 2023
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