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Degeneração lipoidica do neuro-eixo: An atypical form or Amaurotic Family Idioty

Fatty degeneration, in the central nervous system

REGISTRO DE CASOS

Degeneração lipoidica do neuro-eixo. Considerações anátomo-clínicas a propósito de uma forma atípica de idiotia amaurótica familial

Fatty degeneration, in the central nervous system. An atypical form or Amaurotic Family Idioty

Orlando AidarI, II; J. Lamartine de AssisIII

IAssistente de Anatomia, Secções de Neuranatomia (Dpt.º Anatomia - Prof. R. Locchi) da Fac. Med. da Univ. de São Paulo

IINeuropatologia (Dept.º Anatomia Patológica - Prof. L. Cunha Motta) da Fac. Med. da Univ. de São Paulo

IIIAssistente de Neurologia da Fac. Med. da Univ. de São Paulo (Prof. A. Tolosa)

RESUMO

Os autores fazem considerações anátomo-clínicas a propósito de uma forma atípica de Idiotia Amaurótica Familiar, em uma criança de 3 anos, do sexo masculino, não descendente da raça judaica, e com provável retardo psíquico e motor. As manifestações clínicas iniciais adotaram o tipo das crises convulsivas parciais e depois generalizadas, parecendo terem sido desencadeadas por um processo infeccioso focal banal. Após uma fase de remissão de três meses, houve recrudescência dos sintomas, com afasia provável, distúrbios na deglutição, alterações mentais (apatia e embotamento da consciência), violentas e súbitas reações motoras aos estímulos externos, hipertermia sem foco infeccioso evidenciável e síndrome pirâmido-extrapiramidal com sinais bilaterais de déficit e libertação. A evolução da doença foi de 8 meses, tendo-se desenvolvido por surtos e remissões. Não se pôde chegar senão ao diagnóstico genérico de Encefalopatia Difusa Crônica do caráter degenerativo e talvez dismielinizante, com possível extensão das lesões à medula espinal. Os antecedentes heredo-familiares e os exames subsidiários nada permitiram adiantar, inclusive o exame de fundo de olho.

O diagnóstico exato só foi possível pelo exame histopatológico, o qual mostrou o quadro característico da idiotia amaurótica.

SUMMARY

Report of a case of an atypical form of Tay-Sachs' disease in a 3 years old non-Jewish boy, who showed some degree of mental and motor retardation. Following the appearance of a focal infection, the child started to show localized convulsions which became gradually generalized. Symptoms disappeared for three months, only to show again accompanied by disturbances in swallowing, probable aphasia, complete indifference to the environment, strong motor reactions to external stimuli, hyperthermia in the absence of any evident infection, and a pyramidal-extrapyramidal syndrome with bilateral phenomena. The fundus oculi was found normal. Symptoms progressed intermittently, with gradual exacerbation; the patient died eight months after the onset of the disease. Clinical diagnosis was chronic diffuse encephalopathy of degenerative type, probably demyelination, possibly extending to the spinal cord. Family history and laboratory tests did not help further specifications. Post mortem study revealed the typical changes that are usually found in cases of Tay-Sachs' disease.

Pareceu-nos oportuna a apresentação deste caso por corroborar o que vem sendo apontado por autores estrangeiros e nacionais quanto à relativa freqüência das formas atípicas da doença de Tay-Sachs e de suas variantes.

Observação - Ariovaldo V. P., com 3 anos de idade, masculino, branco, brasileiro, examinado em 10 de janeiro de 1951 no Hospital das Clínicas (registro n.9 201.857). Os primeiros sintomas apareceram há 6 meses, de modo brusco, consistindo em crises convulsivas no hemicorpo esquerdo e, depois, generalizadas. Lsta sintomatologia teria aparecido após ferimento no pé, seguido de adenite inguinal. Náo há referências precisas quanto ao estado da temperatura corpórea no inicio da doença. Em seguida, sobreveio uma fase de remissão de 3 meses, após o que os acessos convulsivos se repetiram com muita freqüência, e a criança não mais pôde andar e nem mesmo ficar de pé. O psiquismo se alterou precoce e profundamente, pois o paciente tornou-se apático, indiferente, desligado do meio ambiente, com olhar fixado, vago, não mais articulou qualquer palavra, enem mesmo apresentou choro. A deglutição tornou-se muito difícil, constituindo sério problema para os pais. Antecedentes - Não há outros casos de moléstias nervosas na família. Pais de nacionalidade brasileira e sadios. A criança nasceu a termo e de parto normal. Foi sadia até o início da doença atual. Andou com 2 anos ecomeçou afalar 6 meses antes da moléstia atual. Os pais negam vacinação de qualquer espécie, febres eruptivas e traumatismos graves.

Exame clínico - Criança apática, indiferente, desligada do meio, não articula a fala e não emite o choro, porém reage inconsciente e intensamente aos estímulos externos. Ao mais leve estímulo cutâneo ou à manipulação de qualquer parte do corpo, o paciente responde com intensas e bruscas contrações musculares generalizadas. Os olhos mantêm-se abertos, porém o olhar é indiferente, perdido, não permitindo afirmar se existe ou não cegueira. Exame do sistema nervoso - Paresia com moderado aumento do tono muscular nos quatro membros, estando os superiores em semiflexão e os inferiores em hiperextensão. Sinais de Babinski e Rossolimo nas mãos e pés. Hiperreflexia geral, superficial e profunda. Reflexos palmo-mentoniano e axiais da face exaltados. Automatismo em flexão nos membros inferiores. Reflexos de Magnus e Kleijn e os primitivos de sucção, de voracidade, de Moro e de preensão, ausentes. Hiperestesia cutânea geral. Não há distúrbios tróficos nem rigidez de nuca.

Exames subsidiários Radiografia do tórax, reação de Mantoux e reações de Wassermann e Kahn no sangue, negativas. Exame hematológico: hipocromia e discreta linfo e leucocitose. Exame do liqüido cefalor raquidiano: punção suboccipital no decúbito lateral; pressão inicial 16 (manómetro de Claude); aspecto límpido e incolor; 53,3 células por mm3 (linfomononucleosc exclusiva) ; proteínas 0,20 g por litro; glicose 0,77 g e cloretos 6,90 g por litro; as demais reações normais; r. de desvio de complemento negativas. Exame neurocular: não há alteração dos fundos oculares; papilas ópticas normais; reflexos fotomotores normais.

Evolução- A doença evoluiu por surtos de agravação e remissões parciais. Durante os primeiros havia elevação térmica acentuada, adotando o tipo remitente com intensa aceleração do pulso (140 a 160 batimentos por minuto). Poucos dias antes da crise final, o pulso elevou-se muito, em desacordo com a temperatura. Decadência rápida do estado geral, aparecimento de estase brônquica difusa, e estado final de coma e morte.

Chamaram nossa atenção no presente caso os seguintes elementos: 1) doença iniciada de modo brusco com convulsões após provável adenite inguinal secundária, numa criança do sexo masculino com dois e meio anos de idade, e com retardo psíquico e motor provável; 2) remissão de 3 meses com recrudescência da sintomatologia inicial, afasia possível, impossibilidade de andar e de ficar de pé, distúrbios na deglutição e alterações mentais. Não há referências sobre o estado térmico, nem da visão, nem sobre cefaléia e vômitos; 3) Ausência de doenças hereditárias ou familiah e de qualquer outro fator desencadeante da doença atual, que não a adenite inguinal já referida; 4) Hipertermia caracterizada por estado subfebril, entremeado por surtos de tipo remitente que coincidiam com a agravação de toda a sintomatologia; 5) Quadro psíquico com predomínio da apatia e do embotamento da consciência, e violentas e súbitas reações motoras aos estímulos externos, mesmo discretos; 6) Síndrome pirâmido-extrapiramidai com sinais bilaterais de déficit e libertação, e exagero dos reflexos palmomentoniano e axiais da face; 7) Quadro hematológico indicando um estado infeccioso inespecífico e liqüido cefalor raquidiano com discreta hipercitose reação linfomononuclear) e hiperalbuminose. Exame neurocular normal; 8) A evolução completa da doença em 8 meses, tendo-se desenvolvido por surtos e remissões.

Diagnóstico de localização - Com estes elementos orientamos o diagnóstico para uma afecção central, predominante senão exclusivamente encefálica, difusa, e de evolução crônica e progressiva. Realmente, os sinais encefálicos eram manifestos, e representados pelos elementos de excitação cortical (crises convulsivas) e pelo quadro psíquico (apatia e embotamento), além de sinais dependentes do acometimento difuso das vias piramidais e extra-piramidais. O exagero do reflexo palmo-mentoniano e des reflexos profundos axiais da face reforçavam a suposição clínica de que as lesões centrais fossem difusas, atingindo as vias motoras em níveis supranucleares.

A impossibilidade de exame mais detalhado, inclusive da sensibilidade, não nos permite afirmar que as lesões houvessem atingido os segmentos mais caudais do neuraxe. Entretanto, a falta de escaras de decúbito, de paraplegia flácida, de amiotrofias, de contrações fibrilares e de retenção de urinas e fezes, fazia supor a não existência de lesões, pelo menos dominantes ou mais antigas, na medula, embora não pudéssemos afastar a presença de tais lesões, menos intensas ou mais recentes, nesta porção segmentar do neuro-eixo.

Nestas condições, fizemos o diagnóstico de encefalopatia crônica difusa., sem podermos afirmar comprometimento concomitante ou sucessivo da medula espinal.

Diagnóstico da natureza do processo - Não tínhamos elementos para chegar a um diagnóstico etiológico preciso. No entanto, a evolução crônica por surtos e remissões, o início após um foco infeccioso banal, mas que poderia constituir a causa desencadeante, os quadros térmico, hematológico e liquórico, e mais o terreno predisponente (criança com provável retardo psíquico e motor), poderiam fazer pensar numa encefalomielite difusa dismielinizante espo radica.

A falta de antecedentes hereditários e familiais afastou de nosso raciocínio clínico as doenças degenerativas hereditárias do sistema nervoso, embora o caso em apreço pudesse ser o primeiro.

Assim, pudemos chegar ao diagnóstico genérico de uma encefalopatia difusa crônica de caráter degenerativo e talvez dismielinizante. E' possível que as lesões se estendessem para as porções segmentares do neuraxe, porém parece que elas predominavam no cérebro.

Necropsia (Dept.° de Anatomia Patológica, SS-31.558/51) - O estudo patológico do caso mostrou tratar-se de uma degeneração lipóide dos elementos nervosos do neuro-eixo, em tudo semelhante à que se encontra na idiotia amaurótica. Nos outros aparelhos foram verificadas apenas bronquite catarral bilateral, congestão do baço e esteatose incipiente do fígado; os elementos retículo-endoteliais do fígado e baço não apresentavam alterações. O encéfalo pesou 890 g, tinha forma e volume normais, porém sua consistência estava aumentada, comparável à de borracha. Meninges e vasos sem alterações. Circunvoluções e sulcos de aspecto e disposição normais. Aos cortes viam-se, disseminadas na substância branca de todos os lobos, manchas de coloração marrom pálida, de limites nítidos e áreas variáveis, também presentes no rombencéfalo; esmaecida a distinção entre as substâncias cinzenta e branca. A medula espinal e suas meninges e vasos não apresentavam alterações macroscópicas.

Microscopicamente, deparamo-nos com o quadro característico da idiotia amaurótica, isto é, degeneração lipóide de células nervosas em todo o neuro-eixo, em proporção maior no claustro, bulbo e medula, um pouco menor no córtex cerebral e globo pálido, menor ainda no putâmen, córtex cerebelar e núcleos Olivares do bulbo, muito pequena no núcleo caudado, e ausente no núcleo denteado do cerebelo. Ao lado de células nervosas de aspecto praticamente normal, outras apresentavam os vários graus de degeneração lipóide, culminando em muitas delas com a fase da enorme tumefação baloniforme, típica. Nestas, o citoplasma apresenta-se carregado de material amarelado, sem afinidade pelos corantes cios métodos de Nissl e Hematoxilina-eosina ; em algumas dessas células aparecem também outros grânulos, maiores, basófilos e argentófilos, como se vê em cortes para coloração da mielina (Weil, Tee. E) ou impregnados pela prata (Bielsehowski, Ungewitter), grânulos êsses mais numerosos na periferia da célula e próximos ao núcleo. Êste encontra-se deslocado para uma extremo da célula, às vêzes perde a regularidade de contorno e toma coloração basófila homogênea. O que resta da substância de Nissl aparece sob a forma de finíssima granulação em todo o citoplasma, mais concentrada em tôrno do núcleo. Cortes de congelação corados pelo escarlate R demonstram, nas células em degeneração, a presença de lipóides com coloração alaranjada, muito próxima do tom laranja-violáceo da mielina. Esta última não está alterada. A glia apresenta-se um tanto hiperplástica, especialmente a oligodendróglia interfascicular, e há hipertrofia de astrócitos. Em tôrno de alguns vasos, e de mistura com alguns linfócitos e monócitos, encontram-se numerosos corpúsculos granulares compostos (Gitterzellen), carregados de gordura neutra, corada em vermelho vivo pelo Escarlate R; o mesmo se observa na leptomeninge, porém em menor grau. Os vasos estão congestos, mas suas paredes são normais. E' relativamente grande o número de células nervosas ectópicas, especialmente no córtex cerebelar e substância branca do córtex cerebral. A citoarquitetura deste último está profundamente alterada em várias áreas. As raízes nervosas apresentam um discreto aumento das células de Schwann.


COMENTÁRIOS

Identificado o processo patogênico, torna-se mais fácil, a posteriori, moldar o quadro clínico de modo a compará-lo a uma das diferentes modalidades de idiotia amaurótica. De fato, não faltam a este caso as características principais de uma forma atípica dessa doença: deterioração mental, talvez em terreno de retardo psíquico e motor, e distúrbios da esfera motora (crises convulsivas, paralisias, passividade no leito com extensão de membros inferiores e semiflexão dos superiores). Faltam referências a antecedentes familiais e hereditários, sem que possamos garantir, no entanto, a absoluta inexistência de tais fatores, nem mesmo se são consanguíneos os genitores do paciente. O fator étnico judaico, como está estabelecido, não é mais tido como elemento compulsório para o diagnóstico de idiotia amaurótica, especialmente em relação às variantes dessa doença. Explicam-se essas falhas anamnésticas, de vez que a atipia do quadro clínico não focou a atenção para esses pormenores. Pelas mesmas razões e devido à ausência de colaboração do doente, não são minuciosos os dados sobre a visão. O paciente mantinha os olhos abertos, com olhar indiferente, vago, sem que se chegasse a concluir pela existência ou não de amaurose: e o exame oftalmológico foi negativo. Também está assente não ser obrigatória a presença do sinal de Tay - mancha vermelho-cereja da mácula - nas variantes da doença de Tay-Sachs e, mesmo nesta, só aparece durante certo tempo, enquanto o comprometimento das células maculares não atinge proporções maiores. Mesmo os acúmulos pigmentares encontradiços na retinite pigmentar de algumas modalidades da doença podem desaparecer com a evolução do caso. E também pode ocorrer aspecto normal das retinas em alguns desses casos com amaurose. Por fim, cumpre lembrar que, na forma juvenil tardia, é freqüente a ausência de distúrbios visuais e alterações retinianas observáveis.

Também sob o ponto de vista patológico o caso deixou de ter estudo completo, uma vez que não foi retirado material para exame das retinas, dos gânglios cerebrospinais, gânglios simpáticos e plexos intramurais, ainda uma vez em razão da não suspeita de um diagnóstico que só o exame microscópico revelou.

Departamento de Anatomia da Fac. Med. da Univ. de São Paulo

Trabalho apresentado ao Departamento de Neuro-Psiquiatria da Associação Paulista de Medicina, em 7 maio 1951.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1951
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