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Período médico-legal nas toxicomanias?

NOTAS PRÁTICAS

Professor de Medicina Legal da Fac. Direito da Univ. do Paraná

1. Conceito clássico de "período médico-legal" - Atribui-se a Legrand du Saulle a criação do conceito de período médico-legal das psicoses, traçando-o em linhas magistrais, na paralisia geral progressiva. Muito antes que a doença possa ser prevista, quando nem de longe dela suspeitam quantos, de perto, com o doente convivem, têm lugar manifestações que contrastam, de maneira flagrante, pelo excêntrico e pelo absurdo, com sua conduta anterior.

Tomando por exemplo a mencionada paralisia geral progressiva, assinalam estudiosos da questão - e qualquer psiquiatra sabe-o bem, por havê-lo observado mais de uma vez - precederem as perturbações de caráter e comportamento, em muito, as manifestações psíquicas e somáticas, da mesma. Se êsse período tem duração variável, impossível de ser prevista, certo é que, na sua vigência, são encontradiços o crime (roubo, ultrage público ao pudor, lesões corporais, delitos sexuais, homicídio, incêndios, etc), a prodigalidade, transações e tudo o mais. Recordando palavras de Legrand du Saulle,1 1 . Legrand du Saulle - Tratado de Medicina Legal, de Jurisprudência Médica y de Toxicologia. Tradução espanhola, 2.ª edição, tomo 2. Libreria de Hernando y Cia., Madrid, 1898. frisemos, com êle, que "esta fase da doença escapa, de ordinário, ao médico que, até, raras vêzes, é consultado neste particular". Porque fosse tida em pouca estima, acentua que, do ponto de vista médico-legal, tem indubitável importância.

2. Extensão do conceito - Partindo da lição de Legrand du Saulle, conforme relembra Hélio Gomes,2 2 . Gomes, H. - a) Medicina Legal. Ofs. Gráficas do Jornal do Brasil, vol. 1, Rio de Janeiro, 1942; b) Estudo Médico-Legal dos Esquizofrênicos Insulinizados e Cardiazolizados. Tese, Rio de Janeiro, 1939. Antheaume e Mignot descreveram, em 1907, um "período médico-legal" nas esquizofrenias, compreendendo aquêles casos em que a doença não se mostra an grand complet (formas frustas, formas incompletamente evoluídas, formas latentes). Para Ruiz Maya,3 3 . Maya, R. - Psiquiatria Penal y Civil. Madrid, 1931. abrangeria a esquizofrenia propriamente dita, a esquizomania e mais as formas ligeiras ou muito em comêço da esquizofrenia.

Escrevendo, há alguns anos, em São Paulo, bem feito trabalho (Crime e esquizofrenia), Uchoa e Toledo assim se expressaram: "Os autores franceses assimilaram a heboidofrenia de Kahlbaum, que é mais ou menos semelhante ao "período médico-legal da esquizofrenia", de Antheaume e Mignot..... Tôdos êsses quadros (esquizoidia, algumas esquizomanias, heboidofrenias e período médico-legal de Antheaume e Mignot) tendem a confundir-se na " latência esquizofrênica''. Lembram, com Hacfield, que "durante as fases iniciais da esquizofrenia, pessoas anteriormente ajustadas - econômica ou socialmente - podem cometer crimes atrozes, comumente de difícil ou ininteligível motivação". Se cometidos "por pessoas que manifestem tendências primárias esquizóides, são sintomáticos de uma esquizofrenia latente".

Nêste período, tôdas as reações anti-sociais são encontradiças e até freqüentes. "É o mais importante, o mais difícil, o mais intensamente anti-social, na medicina legal da doença" (Hélio Gomes). Quando, no indivíduo, tudo dá a impressão de "normal", aparecem anomalias no seu proceder. Segundo Pighini, "o primeiro defeito se manifesta na esfera moral, com mudança verdadeiramente surpreendente na conduta do indivíduo" que leva a efeito, então, crimes violentos, de sangue - incalculáveis, irracionais, inalisáveis, ao ver de Schpkowsky - ou entrega-se à vagabundagem, ao furto. Se militar, deserta. Agressões, o assassínio, atentados contra a propriedade, calúnias — são cometidos impulsivamente. "À falta de móvel compreensível alia-se a inutilidade do gesto" (Garcia4 4 . Garcia, J. A. - Psicopatologia forense. Edição da Revista Forense, Rio de Janeiro, 1945. ). Fala-se aqui em "ação de curto-circuito", de Kretschmer. Contrariamente, os ilícitos da esfera sexual, o uxoricídio são "preparados, revestidos de cerimonial patológico e simbólico" (Id., ibidem). Não se fazendo sentir intervenção oportuna de psiquiatra, a realidade psíquica do agente não é notada - ensinam os Mestres. Criminoso, é condenado. No cárcere - que, ao ver de Carrilho, "favorece a interiorização dos esquizóides", isso para focalizar apenas o atual caso - explode a doença; fala-se, então, não raro erradamente, em psicose carcerária. Isso, em rápido resumo, o que há, respeito ao período médico-legal das esquizofrenias.

Generalizando mais e adentrando-se nos domínios da demência senil, recordam autores, a propósito do discutido "estado misto senil" (assim o chamou Legrand du Saulle), que seria estado intermediário que "Psiquiatricamente excede los limites de la vejes fisiológica, para entrar en el terreno de lo patológico" - escreve, entre outros, Bonnet.5 5 . Bonnet, F. - El hombre mentalmente normal y. el código civil. Capacidad y vejez. Arch, de Med. Leg. (Buenos Aires), 43:362-367 (setembro-outubro) 1948. São comuns, então, ilícitos da esfera sexual, atos de libidinagem e ciúme senil, ademais de casamentos inadequados, da captação de testamentos, et caterva. Tais atos, surgindo, por vêzes, inexplicavelmente, ao fim de uma vida honrada e proba (exemplo: caso do desembargador Pontes Visgueiro no Maranhão, que, presa de ciúme mórbido por mulata jovem, ardente e bela, mata-a, barbaramente, oculta-lhe o cadáver e, mais tarde, fria, cinicamente, confessa: "amei-a, matei-a; tornasse a viver, tornaria a amá-la, voltaria a matá-la!") não tem, à primeira vista, aos olhos do leigo ou do médico não especialista, explicação plausível. Explicação que há procurar no patológico. Hélio Gomes a, em 1942, propôs se denomine " período médico-legal da demência senil" a êsse estado misto senil que nos parece acertado e digno de aceito.

3. Inovação revolucionária é, entretanto, a referência de Trivisonno a "período médico-legal nas... toxicomanias". Não vai nisso crítica, pois nos falta competência para tanto. É apenas reparo de quem, desejando ouvir opiniões outras, mais sábias e abalizadas, põe o tema em debate.

Já vimos - e isso é coisa sobremodo sabida, particularmente dos psiquiatras e psicopatologistas forenses - que, no sentido clássico dado por Legrand du Saulle, "período médico-legal" de uma psicose abrange aquêle período inicial em que - muito antes que a doença possa ser prevista - aparecem manifestações ou são levados a efeito atos absurdos, que contrastam com a anterior maneira de comportar-se do indivíduo. Casos há em que o crime é a primeira exteriorização da psicose. Isso, o que anda por aí, nos livros de Medicina Legal e Psicopatologia Forense. Vejamos, agora, como Nicolas Trivisonno6 6 . Trivisonno, N. - Toxicologia. Ed. 2, Leonardo Vazquez, Buenos Aires, 1938. encara o "período médico-legal", em toxicologia. Dois itens:

a) Estudando, entre as toxicofilias, a cocainomania, descreve, em primeiro lugar, um período de excitação, durante o qual, ao reverso do morfinômano - "que siente la setisación de no sentir, de calma, de quietud, de no ser" - o acesso leva o indivíduo a grande exaltação psicomotora. Fala, a seguir, no período de depressão, depois que passou a ação da cocaína. Apresenta-se, então, lassitude, sensação de mal-estar, tristeza e violência, mau-humor (Galgenhumor* * Denominou Kraepelin Galgenhumor (tradução literal: humor de cão ou, como querem outros, humor patibular) à distimia encontradica em certos maníaco-depressivos. Assinala-a Mira em determinados alcoolistas crônicos. Acreditamos poder também fazê-lo em outros toxicômanos (cocainômanos, morfinômanos, etc). ), irritabilidade de esfôrço continuado, etc.

Uma só preocupação a comandá-lo: obter cocaína. Necessidade imperiosa, tirânica, avassaladora. Tudo fará para isso. É aqui que Trivisonno fala em "período médico-legal". Demos-lhe a palavra: "Es en este período (período médico-legal), de necessidad, cuando el cocainomano, anulada por completa su voluntad, realiza toda clase de actos delictuosos, con el objeto de obtener cocaína"** ** Para Trivisonno, há distinguir estado de necessidade, de estado de abstinência, que, a seu ver, não seriam a mesma coisa. Estado de necessidade consiste em impulso, irresistível e impositivo, que experimenta o indivíduo a repetir a dose da droga euforística, que procura obter, nesse instante, sejam quais forem os meios de que tenha de lançar mão (roubo, violência à mão armada, prostituindo-se até as mulheres). Estado de abstinência caracteriza-se pelos diferentes transtornos, orgânicos e funcionais, experimentados pelo toxicômano, ante a supressão brusca da droga - deles podendo resultar até a morte. Interessante assinalar haver - de par com imediata "crise de falta" - outra, paradoxal ou tardia ("crise oital" chamada), que aparece algum tempo depois daquela supressão, ou mesmo mais tarde, após haver o indivíduo sido dado como curado. . Embora Rojas7 7 . Rojas, N. - Medicina legal. Ed. 2, tomo 2, El Ateneo, Buenos Aires, 1942. e outros achem que o quadro agudo de necessidade física ou de apeténcia tóxica seja "exclusivo do ópio e seus alcalóides, em especial a morfina (hambre nwrfínica), não o dando nem o álcool, nem a cocaína", autores há que não pensam igualmente, descrevendo-o em outras toxicomanias.

b) Ao tratar do alcoolismo, Trivisonno discrimina, na embriaguez dita fisiológica (em lugar das clássicas fases, originariamente descritas por Legrand du Saulle, e, mais tarde, adotadas ou modificadas em parte por outros tratadistas), os seguintes períodos: eufórico, médico-legal e comatoso.

Note-se bem: período médico-legal, o segundo. Seria êste, ao ver de Trivisonno, aquele em que se instala "estado confusional e de incoerência", acentuando, mais além, que, "em medicina legal, se interpreta êste período como de cbriedade completa, que implica na inconsciência e, portanto, na irresponsabilidade do indivíduo face a ato delituoso cometido nesse período".

4. Em conclusão - Aí estão, como quer Trivisonno, duas novas maneiras de considerar o "período médico-legal". A menos que o queiramos tomar, nos casos por ele citados, como sinônimo de " períodos de maior interesse médico-legal", a concepção do brilhante toxicólogo platino parece, à primeira vista, fugir ao sentido original dado à designação por Legrand du Saulle na doença de Bayle, e, mais tarde, por Antheaume e Mignot nas esquizofrenias, e por Gomes na demência senil ("estado misto senil").

Feliz a inovação? Fará carreira, sendo aceita pelos tratadistas e passando a figurar, de futuro, nos livros de Medicina Legal? Longe de nós opinar. Façam-no outros, de competência maior e melhores credenciais. Aqui estaremos prontos a receber ensinamentos que, dos Mestres, acaso, nos venham.

Rua Coronel Dulcídio, 956 — Curitiba, Paraná.

  • 1. Legrand du Saulle - Tratado de Medicina Legal, de Jurisprudência Médica y de Toxicologia. Tradução espanhola, 2.ª edição, tomo 2. Libreria de Hernando y Cia., Madrid, 1898.
  • 2. Gomes, H. - a) Medicina Legal. Ofs. Gráficas do Jornal do Brasil, vol. 1, Rio de Janeiro, 1942;
  • b) Estudo Médico-Legal dos Esquizofrênicos Insulinizados e Cardiazolizados. Tese, Rio de Janeiro, 1939.
  • 3. Maya, R. - Psiquiatria Penal y Civil. Madrid, 1931.
  • 4. Garcia, J. A. - Psicopatologia forense. Edição da Revista Forense, Rio de Janeiro, 1945.
  • 5. Bonnet, F. - El hombre mentalmente normal y. el código civil. Capacidad y vejez. Arch, de Med. Leg. (Buenos Aires), 43:362-367 (setembro-outubro) 1948.
  • 6. Trivisonno, N. - Toxicologia. Ed. 2, Leonardo Vazquez, Buenos Aires, 1938.
  • 7. Rojas, N. - Medicina legal. Ed. 2, tomo 2, El Ateneo, Buenos Aires, 1942.
  • Período médico-legal nas toxicomanias?

    Napoleão Teixeira
  • *
    Denominou Kraepelin
    Galgenhumor (tradução literal: humor de cão ou, como querem outros, humor patibular) à distimia encontradica em certos maníaco-depressivos. Assinala-a Mira em determinados alcoolistas crônicos. Acreditamos poder também fazê-lo em outros toxicômanos (cocainômanos, morfinômanos, etc).
  • **
    Para Trivisonno, há distinguir
    estado de necessidade, de estado de abstinência, que, a seu ver, não seriam a mesma coisa.
    Estado de necessidade consiste em impulso, irresistível e impositivo, que experimenta o indivíduo a repetir a dose da droga euforística, que procura obter, nesse instante, sejam quais forem os meios de que tenha de lançar mão (roubo, violência à mão armada, prostituindo-se até as mulheres).
    Estado de abstinência caracteriza-se pelos diferentes transtornos, orgânicos e funcionais, experimentados pelo toxicômano, ante a supressão brusca da droga - deles podendo resultar até a morte. Interessante assinalar haver - de par com imediata "crise de falta" - outra, paradoxal ou tardia ("crise oital" chamada), que aparece algum tempo depois daquela supressão, ou mesmo mais tarde, após haver o indivíduo sido dado como curado.
  • 1
    . Legrand du Saulle - Tratado de Medicina Legal, de Jurisprudência Médica y de Toxicologia. Tradução espanhola, 2.ª edição, tomo 2. Libreria de Hernando y Cia., Madrid, 1898.
  • 2
    . Gomes, H. -
    a) Medicina Legal. Ofs. Gráficas do Jornal do Brasil, vol. 1, Rio de Janeiro, 1942;
    b) Estudo Médico-Legal dos Esquizofrênicos Insulinizados e Cardiazolizados. Tese, Rio de Janeiro, 1939.
  • 3
    . Maya, R. - Psiquiatria Penal y Civil. Madrid, 1931.
  • 4
    . Garcia, J. A. - Psicopatologia forense. Edição da Revista Forense, Rio de Janeiro, 1945.
  • 5
    . Bonnet, F. - El hombre mentalmente normal y. el código civil. Capacidad y vejez. Arch, de Med. Leg. (Buenos Aires), 43:362-367 (setembro-outubro) 1948.
  • 6
    . Trivisonno, N. - Toxicologia. Ed. 2, Leonardo Vazquez, Buenos Aires, 1938.
  • 7
    . Rojas, N. - Medicina legal. Ed. 2, tomo 2, El Ateneo, Buenos Aires, 1942.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1949
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