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Tumor da fossa posterior com sintomatologia atípica: Estudo anátomo-clínico de um caso de hemangioblastoma de Lindau

REGISTRO DE CASOS

Tumor da fossa posterior com sintomatologia atípica. Estudo anátomo-clínico de um caso de hemangioblastoma de Lindau

Paulo Pinto PupoI; José Victor DouradoII

ILivre-Docente da Fac. Med. Univ. S. Paulo e Chefe de Clínica Neurológica da Escola Paulista de Medicina. Neuropatologista do Hospital de Juqueri

IIAssist. extranumerário do Serviço de Neurologia da Escola Paulista de Medicina (Prof. Paulino W. Longo)

Os casos clínicos em neurologia nos proporcionam muitas vezes oportunidade para diagnósticos topográficos precisos, mercê de uma sintomatologia rica e objetiva. Não raro, êles permitem ao neurologista arquitetar planos com requintes de detalhes e vê-los confirmados na minúcia dos dados anatômicos posteriormente evidenciados. É êste um jôgo em que o raciocínio clínico defronta-se, por vezes, com verdadeiros problemas de xadrez, com freqüência ultrapassando em detalhes às reais necessidades do caso clínico. Nem sempre, porém, isto se passa. A sintomatologia neurológica pode apresentar-se de modo desconcertante e mesmo embaraçar a consecução do diagnóstico clínico-topográfico. O caso que trazemos hoje à publicação pertence a êste grupo.

Trata-se de um tumor da fossa posterior que ocasionou, no decurso de sua evolução, hemissíndrome piramidal, hemianestesia e hemissíndrome cerebelar à direita e, ainda mais, lesão do trigêmeo e do facial também à direita. Se bem que o diagnóstico tivesse sido possível, pelo menos para as necessidades clínicas do caso, o raciocínio localizatório e fisiopatológico que tínhamos feito em vida do paciente esboroou-se por completo diante da realidade anatômica evidenciada na mesa de necrópsia. Acompanhamos êste paciente, com intervalos, durante mais de 8 meses, e as particularidades da sintomatologia por êle apresentada, assim como sua correlação anátomo-clínica, constituem motivo suficiente para justificar a apresentação dêste estudo.

Observação: F. S., branco, polonês, com 33 anos de idade. Apresentou-se para consulta no Ambulatório de Neurologia da Escola Paulista de Medicina cm 23 de julho de 1942, informando que 2 meses e meio antes, pela manhã, após um acesso de tosse, apresentara, repentinamente, perda da consciência, passageira, seguida de impossibilidade de movimentação voluntária dos membros superior e inferior do lado direito. Apresentou, nessa época, distúrbios da micção, com retenção de urina durante 2 dias. No momento, vomitou muito. Relata ainda que teve, nessa ocasião, forte cefaléia e distúrbio da visão, com diplopia. No dia da consulta foi assinalado (Dr. Dante Giorgi) : cefaléia intensa, principalmente frontal; distúrbios da visão com diplopia; fraqueza dos membros superior e inferior direitos e, no ouvido direito, corrimento fétido que se iniciara uma semana antes.

Exame neurológico - Estática difícil, com oscilações. Marcha de tipo ebrioso, com tendência a queda e desvio predominante para a direita. Síndrome piramidal deficitária à direita (dificuldade nos movimentos voluntários, diminuição da fôrça muscular e, pela manobra de Mingazzini, queda do membro inferior), em ausência de síndrome de libertação, acompanhada de síndrome cerebelar também à direita (desvio da marcha e lateropulsão para a direita, incoordenação motora nítida nos membros superior e inferior, reflexo patelar ligeiramente pendular) e de hemianestesia também à direita (comprometimento em todo o lado direito do corpo, inclusive face, das sensibilidades táctil, térmica, dolorosa, cinestésica, ar-trestésica e palestésica). Quanto aos pares cranianos, não havia alteração objetiva - a hemianestesia da face acompanhava a do restante do corpo e o reflexo corneano não fôra verificado. Não havia nistagmo. O exame otorrinolaringoló-gico (Dr. V. Perella) mostrou: otite média supurada à direita, com conseqüente surdez de condução.

Tratamento: Foi administrada sulfamida por via oral (Dagenan) num totai de 30 gramas. Em 8 dias, as melhoras gerais eram sensíveis, assim como as Ja sintomatologia neurológica. Diminuíram sensivelmente a sintomatologia piramidal e os distúrbios da sensibilidade, restando a incoordenação motora e a marcha atáxica.

Os exames de líquor mostraram hipertensão e dissociação albumino-citológica ligeira: Punção suboccipital, deitado; pressão inicial 36, pressão final 12, volume retirado 15 cc. Proteínas totais 0,88 grs. por lt.; citologia 2,4 células por mm.8, sendo 100% linfócitos; r. Pandy, opalescência; r. Weichbrodt, negativa; r. Nonne, opalescência; cloretos 7,20 grs. por mil; r. Wassermann, negativa com 1 cc.; r. Steinfeld negativa com 1 cc.; r. desvio de complemento para cisticercos negativa com 1 cc.; r. Eagle negativa; r. benjoim 00200.02222.00000.0; r. Takata-Ara positiva tipo floculante. O quadro flemático evidenciou uma leucocitose de 14.200 por mm.8 com 80% de neutrófilos (Dr. J. B. Reis).

O diagnóstico suposto foi de propagação do processo purulento (otite média supurada) à fossa posterior, com possível pequeno abscesso protuberancial. Permanecia de difícil explicação a homolateralidade da sintomatologia cerebelar, piramidal e sensitiva. O doente foi retirado pela família em visível melhora clínica, restando inalterado o quadro liquórico.

Evolução - em 11 de setembro de 1942, veio o paciente a nosso consultório e o exame neurológico mostrou: Subjetivamente atordoado, dificuldade para andar, em manter-se de pé, sensação de atordoamento, acusando cefaléia a qualquer movimento brusco da cabeça, principalmente quando a inclinava para a frente. A cefaléia se localizava na hemifronte direita. Estática titubeante, alargando a base de sustentação, o mesmo se dando quando tentava a marcha, na qual havia desvio para a direita e tendência à queda, também para a direita. A prova dos braços estendidos mostrava, dentro de alguns segundos, pequena flexão dos dedos, diminuição da distensão de todos os músculos, abaixamento pequeno de todo o membro superior direito, evidenciando a existência de um déficit piramidal, além da perturbação cerebelar. Prova da indicação: à ordem de movimentar separadamente os membros superiores para fôra, para cima ou para baixo, enquanto que o esquerdo volta com segurança à posição primitiva, o direito não o faz - para dentro ultrapassa a linha mediana, qualquer que seja a posição de partida, e no eixo horizontal ultrapassa para cima ou para baixo, quando vem respectivamente de baixo ou de cima. Síndrome de comprometimento piramidal à direita: Sinais deficitários e sinais de libertação nos membros do hemicorpo direito (no membro superior, diminuição da fôrça e da dextreza nos pequenos movimentos; no membro inferior, as manobras de Barre e Mingazzini são positivas. Refletividade profunda mais viva à direita, sinal de Babinski duvidoso à direita, sinais de Gordon e Oppenheim esboçados à direita). Pequeno déficit da motricidade dos músculos inferiores da face (paresia facial tipo central?). Hipoestesia táctil, térmica e dolorosa no território do trigêmeo à direita (nesta zona, acusa espontaneamente sensação de constante ardor). Abolição do reflexo corneano à direita. No restante, já não havia distúrbios da sensibilidade, salvo quanto ao reconhecimento da forma e da substância de objetos na mão direita, cuja pesquisa, entretanto, era prejudicada pelo déficit da motricidade (preensão defeituosa). Ligeira ataxia nos membros superior e inferior direitos, que nos pareceu de origem cerebelar. Cra-niograma normal (Dr. Celso Pereira da Silva).

Como propuséssemos fazer as provas ventriculográficas, porque já suspeitávamos da existência de tumor na fossa posterior, o paciente se recusou e não mais voltou à consulta.

Em fevereiro de 1943, o paciente nos foi enviado pelo Dr. Henrique Mendes, que o examinara para efeito de aposentadoria. Devido a suas precárias condições gerais, internamo-lo de novo no Hospital S. Paulo.

Exame neurológico - A inspecção geral evidenciava, desde logo, cegueira cm ambos os olhos, com midríase bilateral, abolição do reflexo fotomotor, ausência de fixação visual e nítido nistagmo ocular. Encontrava-se em decúbito dorsal, indiferente ao meio, em estado de obnubilação mental. Respondia com dificuldade e tardiamente às perguntas, cansando-se com grande facilidade, o que muito dificultava o exame neurológico. Irritabilidade evidente, quando muito solicitado.

Não apresentava movimentos espontâneos. A movimentação ativa era difícil e tarda, mas suficiente para se notar incoordenação motora dos membros superior e inferior à direita (provas dedo-nariz e calcanhar-joelho). Não conseguia ser.-tar-se no leito e nem ao menos manter-se sentado, talvez por perturbação grave do equilíbrio, mas também em parte devido ao precário estado geral. Ao iado dos distúrbios da motricidade ativa, cujas condições de exame eram más, devido ao estado mental do paciente, pudemos notar ausência de distúrbio acentuado do tono muscular. O exame da fôrça muscular estava inteiramente prejudicado. Os reflexos profundos eram vivos, predominando ligeiramente à direita. Reflexo cuta-neoplantar em extensão à direita, sendo de caraterísticas duvidosas em sua resposta à esquerda. Sinal de Oppenheim à direita. Reflexos cremastéricos pouco evidentes à direita e vivos à esquerda. Reflexos cutâneo-abdominais ausentes. Exame da sensibilidade prejudicado pela não cooperação do paciente e pelo seu cansaço mental fácil Podemos afirmar entretanto que existia comprometimento das sensibilidades superficiais no território do trigêmeo à direita, enquanto que no restante do organismo elas estavam íntegras, pelo menos quanto às excitações grosseiras.

Pares cranianos - Cegueira por papiledema bilateral. Não havia perturbações do olfato. Musculatura ocular íntegra no território dos III e IV pares. Anestesia no território do V, à direita, com abolição do reflexo corneano. Pa-resia do VI à direita. Paresia frusta do VII, à direita, comprometendo sòmente os músculos peribucais e o elevador da asa do nariz (tipo lesão central do facial). Exame do ouvido: surdez à direita por distúrbio de condução (antiga otite su-purada), evidenciada pelas provas de Weber (lateralizado para a direita), Rinne (negativo à direita) e Schwabach (alongado à direita). Não havia perturbações da deglutição, da fonação e dos movimentos da língua, assim como dos reflexos palatinos.

Alem dêstes elementos, deve ser anotada a posição da cabeça em permanente inclinação para a direita sem haver paresia de músculos cervicais, sinal de comprometimento cerebelar à direita e síndrome de hipertensão intracraniana (papiledema, cefaléia, torpor). Nos últimos dias apareceu também sinal de Babinski à esquerda.

Exame do liqüido céfalo-raquidiano: Punção suboccipital, deitado; pressão inicial além de 80; pressão final 50, retirados 5 c.c. de líquor turvo e xantocrômico, com formação de coágulos maciços. Reação de Fouchet positiva; proteínas totais 32,8 grs. por litro; citologia 2,8 células por mm3. (Dr. J. B. Reis).

Resumindo o quadro neurológico observado durante a moléstia, encontramos: a) hemiassinergia cerebelar à direita: perturbações da estática e da marcha, com tendência a desvio e a queda para a direita; b) hemiparesia, com comprometimento piramidal à direita, que se mostrou de intensidade variável e que, por fim, estendeu-se também ao lado esquerdo (hemiplegia dupla) ; c) hemianestesia táctil, térmica e dolorosa, à direita, que in medulampletamente; d) hemianestesia para as sensibilidades profundas à direita que, no último período da moléstia, não pôde ser mais verificado devido à não-cooperação do paciente; e) comprometimento do facial à direita, do tipo de lesão central, aparentemente de acôrdo com a síndrome de lesão piramidal também à direita; f) comprometimento periférico do trigêmeo à direita; g) síndrome de obstrução da fossa posterior, com líquor de estase e grande hipertensão intracraniana; h) surdez à direita, por antiga otite média supurada; i) estado vertiginoso rebelde, cujo fator causal pode ser encontrado na lesão do ouvido, na do vestibular periférico ou central (protuberância) ; j) ausência de comprometimento dos nervos bulhares.

Diagnóstico clínico - Processo da fossa posterior (provável neoplasia), na linha mediana (síndrome piramidal bilateral, bloqueio da circulação liquórica), predominantemente à direita (síndrome cerebelar e sinais de lesão periférica do trigêmeo à direita). A hemiparesia e a hemianestesia, de intensidade variável, talvez se explicassem pela contrapressão da protuberância junto à parede óssea do crânio.

No estado precário em que se achava o paciente, não houve possibilidade de se realizar as provas ventriculográficas, assim como de tentar a intervenção cirúrgica. A morte deu-se em estado de grande hipertensão intracraniana, em 16 de março de 1943.

Com o consentimento da família, foi praticada necrópsia parcial no Departamento de Anatomia Patológica da Escola Paulista de Medicina (Prof. Moacyr de Freitas Amorim).

Necropsia 19/43: O encéfalo mostra intenso edema do parênquima e grande congestão vascular generalizada, principalmente nas leptomeninges. Os cortes transversais do cérebro mostram sòmente hidrocefalia interna, sem alterações paren-quimatosas focais. Na fossa posterior, há um grande tumor ocupando a região inferior do ângulo pontocerebelar direito, tumor êste que comprime fortemente o lobo digástrico, o flóculo, o nódulo e a amígdala do hemisfério cerebelar direito e, além disso, invade o IV ventrículo, preenchendo totalmente sua metade inferior, bloqueando-o por completo. O tumor tem o tamanho de uma noz, consistência firme, coloração vinhosa escura. Mostra-se formado por traves conjuntivas e lagos venosos de vários tamanhos, cheios de sangue. Seus limites são mais ou menos nítidos na face lateral, o mesmo não se dando na face medial, pela qual invade infiltrativamente o flóculo e a amígdala cerebelares, assim como a calota bulbar. Superiormente, emite um prolongamento que se insinua entre as malhas conjuntivas do sulco bulboprotuberancial e, por compressão, ocasiona lesão focal (amolecimento) na hemicalota protuberancial à direita. Êstes dados descritivos são melhor objetivados nas figuras 1, 2 e 3.




Estudo microscópico: Os cortes do tumor, por congelação, mostram unia proliferação neoplástica constituída por grandes espaços lacunares de dimensões variadas, cheios de sangue e revestidos em geral por uma camada de células achatadas ou cubóides, de citoplasma claro e aspecto endotelial. Outros espaços aparecem vazios e revestidos por células endoteliais achatadas, sendo, também, ora muito volumosos, ora pequenos e irregulares. Entre essas lacunas vasculares, vêm-se cordões ou massas de espessuras as mais variáveis, constituídos por células de núcleo claro, ovóide, vesiculoso, e citoplasma muito claro, poliédrico ou quadrangular, alongado, com aspecto de células endoteliais. As células são freqüentemente isoladas umas das outras, pelo menos em alguns pontos, por espaços claros. Não há fibrilas gliosas ou outras entre as mesmas. Tendência a uma disposição concêntrica em alguns trechos. Muitas células contêm pigmento hemossiderótico no citoplasma. Em alguns trechos, vêm-se largas zonas de esclerose. Diagnóstico: Hemangiendotelioma, hemangioblastoma de Lindau (Prof. Moacyr de Freitas Amorim).

Cortes em diferentes alturas do tronco cerebral - Material incluído em ce-loidina e corado pelo método de Weigert. *

O estudo detalhado dos cortes transversos do tronco cerebral veio trazer elementos bastante interessantes. Resumiremos seu resultado em uma síntese dos elementos positivos que foram encontrados e que serão levados em conta na análise anátomo-clínica dêste caso, assim como apresentaremos sòmente os cortes mais demonstrativos: a) tumor comprimindo e deformando grandemente o bulbo por seu lado direito, comprometendo fundamentalmente as formações aí localizadas - pedúnculo cerebelar inferior, núcleos sensitivos do TX e X nervos, raiz descendente do trigêmeo, núcleos vestibulares. Estavam íntegros o feixe longitudinal posterior, o lemnisco medial e os feixes espinhotalâmico, central da calota e espinhocerebelar de Gowers; b) foco de amolecimento no bulbo inferior, conseqüente à compressão pelo tumor, comprometendo os neurônios eferentes dos núcleos de Goll e de Burdach, que, entrecruzando-se, passam para a esquerda e, como conseqüência, degeneração walleriana do lemnisco medial esquerdo em tôda altura do tronco cerebral; c) prolongamento do tumor no sulco bulboprotube-rancial, determinando foco necrótico (amolecimento) na hemicalota protuberancial direita, que compromete os núcleos do trigêmeo e do facial e, parcialmente, as fibras eferentes do facial; d) integridade histológica das fibras piramidais. Infelizmente, em virtude da necrópsia parcial, não pudemos examinar cortes da medula, com cujo estudo poderíamos ter melhores esclarecimentos sobre a existência ou não de comprometimento anatômico do feixe piramidal.

Os restantes cortes, em níveis superiores, só evidenciam a degeneração walleriana do lemnisco medial (feixe bulbotalâmico) esquerdo, sendo portanto dispensáveis para o nosso raciocínio anátomo-clínico.

CORRELAÇÃO ANÁTOMO-CLÍNICA

As considerações que êste estudo nos suscita são de duas ordens : explicação fisiopatológica da sintomatologia clínica, e etiologia do processo existente na fossa posterior.

Relativamente ao primeiro item, as cousas são algo complicadas. O diagnóstico clínico não pôde ser estabelecido de modo acertado. O exame anatômico sistemático das formações da fossa posterior veio mostrar-nos que, de fato, o que lá havia era até certo ponto caprichoso e muito difícil de ser diagnosticado com precisão. Senão, vejamos: as duas hipóteses clínicas que havíamos estabelecido - tumor na hemifossa posterior direita, comprometendo por contrapressão as vias da motricidade e da sensibilidade à esquerda, e sede de compressão ao nível da protuberância - não se confirmaram totalmente. De fato, não havia comprometimento anatômico das vias piramidal e espinhotalâmica e o tumor comprimia grandemente o bulbo e não a protuberância. O fato da sintomatologia neurológica evidenciar, à direita, uma síndrome de comprometimento das vias da sensibilidade e da via piramidal, ao lado de uma síndrome cerebelosa também à direita, isto é, homolateral, fazia-nos prever uma lesão secundária daquelas vias longas (piramidal e da sensibilidade) por possível contrapressão da hemiprotuberância esquerda contra a parede óssea. Casos desta natureza já têm sido assinalados na literatura. O aspecto clínico da paresia facial, limitada ao territorio inferior dêsse nervo (simulando lesão de tipo central) e homolateral à hemiplegia, corroborava ainda para que raciocinássemos com lesão piramidal ao nível da protuberância (superiormente, ao núcleo do facial). Por outro lado, o compromenti-mento (clinicamente evidenciado) do trigêmeo à direita e não do glossofaríngeo, pneumogástrico, espinhal ou hipoglosso, nos levou a pensar em tumor comprimindo |a protuberância e não o bulbo. É preciso que seja lembrado não existir, até o período final da moléstia, distúrbios na deglutição e na fonação. Relativamente ao acústico, repetimos, a surdez direita (seqüela de otite supurada) fazia com que não pudéssemos raciocinar levando em conta o seu comprometimento. As provas de Weber, Rinne e Schwabach, feitas, é verdade, em condições precárias do paciente, indicavam que o nervo estava íntegro. Pelas condições em que foram feitas estas provas, deixamo-las de lado em nosso raciocínio localizatório.

Ambos os erros de diagnóstico clínico estão, assim, inteiramente justificados. Mais interessante é a análise da correlação existente entre o quadro clínico e os elementos anátomo-patológicos. Desta correlação podemos chegar às seguintes conclusões:

1. Presença de um tumor na hemifossa posterior direita, comprimindo grandemente a calota bulbar e sem evidenciar, clinicamente, distúrbios relativos aos nervos bulbares.

2. Êste tumor emitia um prolongamento em direção à calota protuberancial e comprometia assim núcleos e fibras do V e VII nervos à direita, explicando a sintomatologia clínica correspondente (paresia facial, hemianestesia total da face, abolição do reflexo corneano).

3. A lesão do facial era periférica e não central, como se supunha, e o fato da paresia se situar exclusivamente no território inferior do rosto talvez se explique pelo não comprometimento anatômico total do núcleo e das suas fibras eferentes e aferentes.

4. Não havia lesão evidente das fibras piramidais, mesmo abaixo da lesão, ficando assim a compreensão da sintomatologia piramidal ligada a possíveis fenômenos de edema e a outros distúrbios circulatórios passageiros a êsse nível. Esta explicação está de acôrdo com a variabilidade dos sinais piramidais e com a sua bilateralidade nos últimos dias de vida do paciente.

5. Um fóco de amolecimento no bulbo inferior comprometia as fibras arciformes emitidas dos núcleos de Goll e de Burdach à direita, antes do entrecruzamnto piniforme. Em conseqüência, encontrava-se o lemnisco medial esquerdo degenerado em tôda altura do tronco cerebral, o que está de acôrdo com as perturbações da sensibilidade profunda do lado oposto, isto é, hemicorpo direito. É possível que êstes distúrbios da sensibilidade tenham cooperado na gênese da incoordenação motora persistente nos membros direitos.

6. Integridade do feixe espinhotalâmico, fato êste que vem dificultar a interpretação dos distúrbios da sensibilidade superficial no hemicorpo direito. Podemos, entretanto, lembrar que êsses distúrbios sempre foram de intensidade variável e não persistentes. Talvez perturbações gerais, tais como o edema e os demais fenômenos inflamatórios iniciais tivessem tido papel preponderante em sua gênese. Posteriormente, com o desaparecimento de tais fenômenos, desapareceu também a hemianestesia direita. No estádio final, quando se intensificou o quadro de distúrbios piramidais, o paciente já não estava em condições de prestar informes sôbre a sensibilidade.

7. Comprometimento do pedúnculo cerebelar inferior e do hemisfério cerebelar à direita, explicando a hemiassinergia direita, os distúrbios da marcha com tendência ao desvio, e a queda para a direita.

8. Comprometimento do flóculo e nódulo cerebelares à direita, motivando, sem dúvida, a persistência da inclinação da cabeça para a direita.

9. Não havia comprometimento anatômico do VI par. A pa-resia recente dêste nervo fôra ocasionada pelos fatores gerais de edema encefálico e de hipertensão intracraniana.

10. O bloqueio do 4.° ventrículo pelo tumor evidencia a causa da hidrocefalia interna, da hipertensão intracraniana e da estase liquóríca (grande dissociação albumino-citológica e coagulação maciça).

Quanto ao segundo item, isto é, no que diz respeito à etiologia do processo existente na fossa posterior, chama atenção o fato do quadro mórbido iniciar-se com uma síndrome infecciosa aguda acompanhando uma otite média supurada, processo êste indubitavelmente repercutindo nas formações, normais e patológicas, da fossa posterior. Provàvelmente o tumor, já preexistente na fossa posterior em condições clìnicamente mudas, teve sua sintomatologia evidenciada pela ação do processo infeccioso agudo. Há grande interesse em ser assinalada esta circunstância para que tenhamos em mente esta associação mórbida quando em face de casos semelhantes. Neste, fizemos com razão o diagnóstico de processo purulento na fossa posterior, por propagação da otite supurada, e instituímos a terapêutica sulfamídica. A melhoria rápida dos sintomas veio provar não sòmente o acêrto do diagnóstico, como também a nossa afirmação de há pouco de que aos fenômenos inflamatórios se devia grande parte da sintomatologia inicial. Posteriormente, cessados aquêles e diminuída em muito a intensidade do quadro clínico, o tumor não mais permaneceu mudo, mas, pelo contrário, tomou logo desenvolvimento e a sintomatologia anterior se restabeleceu rapidamente, agora acrescida dos sinais gerais do bloqueio da fossa posterior. Tais elementos nos levaram a fazer o diagnóstico de neoplasia, confirmado pelo exame do líquor, que revelou bloqueio completo da fossa posterior e hipertensão intracraniana.

A meditação sôbre as divergências anátomo-clínicas passadas em revista vem ainda pôr em fóco uma nova questão muitas vezes observada em neurologia, qual seja a da fragilidade funcional dos sistemas de vias longas. A função piramidal, em particular, é a primeira a claudicar em um grande numero de injúrias ao sistema nervoso central (como traumas e tumores) sem que sejam suas vias anatômicas as únicas comprometidas. O caso que hoje apresentamos é bem uma demonstração disso. À existência indubitável de uma síndrome piramidal (deficitária e de libertação) se contrapõe a integridade anatômica das vias piramidais. Não há dúvida de que a função nervosa, em particular a de longos sistemas de condução, pode ser comprometida temporariamente, por ação direta ou indireta do agente mórbido, sem que a integridade de seus sistemas anatômicos o seja.

Recebido para publicação em 23 março 1945

Trabalho das cátedras de Neurologia e Anatomia Patológica da Escola Paulista de Medicina e do Laboratório de Neuropatologia do Hospital do Ju-queri.

Estudo feito no Laboratório de Neuropatologia do Hospital de Juqucri - Diretoria da Assistência a Psicopatas de São Paulo.

Rua Itaguaçaba, 135 - São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Jun 1945
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