Acessibilidade / Reportar erro

O tratamento da paralisia infantil pelo método Kenny

NOTAS PRÁTICAS

O tratamento da paralisia infantil pelo método Kenny

Marta Elisa Bierrenbach Khoury

Assistente voluntária de Neurologia da Fac. Med. Univer. São Paulo

Êste trabalho visa divulgar e esclarecer, à luz de observações pessoais, o método preconizado por Elizabeth Kenny para o tratamento da paralisia infantil. Usaremos a terminologia de miss Kenny, embora muitos de seus termos não sejam cientificamente certos de acôrdo com a terminologia médica; êles servem, no entanto, para descrever condições que estão presentes em todos os doentes com paralisia infantil.

É interessante fazer ligeiro histórico sobre tão falado método. Em 1910, Elizabeth Kenny, enfermeira australiana, achou-se em face de uma moléstia para ela desconhecida e que acometera quatro pacientes na zona rural onde trabalhava. Não sabendo o que fazer, telegrafou a seu chefe, Dr. Mc Donnel, pedindo-lhe esclarecimentos. A resposta recebida não foi animadora: "trata-se de paralisia infantil, faça o que puder e o que melhor lhe parecer". Elizabeth Kenny observou os doentes, com cuidado e paciência que lhe são característicos e notou que eles se queixavam de dôres em certas regiões musculares, onde alguns músculos se mostravam endurecidos e encurtados. Procurou aliviar as dores e pensou que talvez o calor fôsse um bom auxiliar. Primeiramente usou o calor úmido, utilizando farinha aquecida em forma de cataplasma; isto não foi satisfatório porque o peso da cataplasma incomodava os pacientes. Posteriormente usou o calor de compressas de lã, embebidas em água fervente e torcidas para se tornarem o mais secas possíveis; conseguiu resultado satisfatório, pois as dores se acalmaram e os doentinhos se sentiam confortados. Passada a fase dolorosa, notou que os músculos opostos àqueles que estavam doloridos, não se contraíam; resolveu então, iniciar a reeducação muscular dos mesmos. Diga-se de passagem que, já naquela época, miss Kenny tinha ótimas noções de anatomia e mecânica muscular, pois durante três anos a isto se dedicara, estudando a maneira de tornar mais fortes os músculos de um seu irmão, considerado fisicamente débil; alguns anos depois, esse moço foi considerado como o mais completo atleta de toda Austrália.

Os resultados, altamente animadores, obtidos nos primeiros casos de paralisia infantil, levaram miss Kenny a aplicar o método a outros casos, generalizando-o cada vez mais; nesses últimos 30 anos, os aperfeiçoamentos dêste método terapêutico têm sido sua única preocupação.

Desde junho de 1940, nos Estados Unidos, a "Fundação Nacional de Paralisia Infantil" adotou o método Kenny para o tratamento da paralisia infantil na Escola de Medicina da Universidade de Minnesota, sob a direção dos departamentos de Cirurgia Ortopédica e Fisioterapia, sendo miss Kenny encarregada da supervisão do trabalho. Depois de um período de observação, um relatório foi publicado, em 7 de junho de 1941, no Journal of the American Medical Association. Neste relatório se lê: " We think it is possible and appropriate to state definitely that these patients with acute infantile paralysis are much more comfortable and cheerful during the acute stage than are those cases who are immobilized and that we have seen absolutely no contractures following this treatment. Even the most severely paralysed patient has passively full range of motion in all his points. No scoliosis or other spinal deformity has developed in these cases and most of them are more limber than they where before onset of the disease... and we believe that the paralysis is least severe than would be expected in nearly every case. Certainly no harm has resulted in any of the observed cases under miss Kenny's care from "abandonment of immobilization". A conclusão final, foi a de que o método Kenny viria a ser a base para o futuro tratamento da paralisia infantil.

Vejamos em que consiste tão discutido método. Seus principais apologistas reconhecem que o processo não cura todos os casos. Sua utilidade é maior quando o tratamento é feito desde o início da moléstia. Continuam aceitando a idéia de que há lesão de células das pontas anteriores da medula e paralisia flácida.

Mas, no conceito do grupo dos adeptos do método de Kenny, há mais do que isso. O conceito de paralisia infantil no qual é baseado o método é fundamentalmente diferente daquele que prevalecia anteriormente. Para que o método Kenny seja compreendido e aceito é preciso, antes de mais nada, pôr de lado a concepção de que a poliomielite produz apenas paralisia flácida. Na fase aguda, a doença afeta não somente as células das pontas anteriores, mas também porções adjacentes da medula, Pode ser segmentar em caráter, envolvendo o sistema nervoso central inclusive o sistema simpático em geral, de maneira que podem' surgir sintomas outros além daqueles devidos ao envolvimento das células das pontas anteriores.

Os sintomas apontados por miss Kenny são os seguintes, segundo suas próprias palavras: 1 - os músculos afetados apresentam condição de espasmo; 2 - os músculos afetados tornam-se encurtados; 3 - a coordenação está desorganizada e a incoordenação é freqüente; 4 - o paciente perde freqüentemente o poder de contrair os músculos sãos, porque os músculos afetados estão puxando aqueles de sua posição normal de repouso e os retêm nesta posição de alongamento pelo espasmo não relaxado do grupo afetado; 5 - os músculos não afetados freqüentemente recusam-se a contrair devido à "alienação mental". Êstes sintomas podem ser condensados em quatro fatores que distinguem o conceito Kenny: 1 - espasmo muscular; 2 - "alienação mental", ou melhor, "alienação muscular"; 3 - incoordenação; 4 - paralisia verdadeira ou enervação.

A expressão "espasmo muscular" indica um conjunto de sintomas incluindo hiperirritabilidade do músculo à distenção e um estado de contração das fibras musculares, que muitas vezes não pode ser dominado nem com o uso de grande fôrça. Há, aqui, principalmente, dor. A exata significação patológica do espasmo não é ainda bem conhecida, embora certos estudos fisiológicos indiquem a existência de mecanismos neuromusculares capazes dè produzir o sintoma observado. Já foram publicados alguns relatórios sôbre mudanças patológicas tardias nos músculos mas, até agora, não foram publicados estudos sobre a patalogia local dos músculos na fase aguda da doença. O espasmo é o sintoma objetivo que mais cedo aparece. Pode afetar qualquer dos músculos esqueléticos e está presente em todos os casos. Esta condição é o mais das vezes associada à dor e o músculo torna-se hi-perirritável à extensão. Este espasmo não.cede, mesmo sob anestesia geral. Segundo certos pesquisadores, este espasmo será devido ao ataque direto ao músculo, pelo vírus ou seus produtos, na junção mioneural ou através da corrente sangüínea. Se este espasmo não fôr tratado, aparecem graves modificações no músculo, destruindo-o e causando atrofia, fibrose e contraturas permanentes; os efeitos tardios do espasmo não tratado se assemelham, em alguns aspectos, aos da isquemia por oclusão arterial. O espasmo geralmente persiste por duas semanas, mas às vezes dura meses e, até, anos.

O segundo sintoma importante é a "alienação", descrita como sendo "a incapacidade de executar um movimento voluntário corrente com um músculo, sem que a transmissão nervosa para este músculo tenha sido lesada" Esta condição geralmente aparece em músculos opostos àqueles que estão cm espasmo. Estes músculos cessam de funcionar e tornam-se, segundo miss Kenny, "alienados" ou seja, divorciados da ação voluntária. Muitas vezes estes músculos são tidos por alguns como verdadeiramente paralisados. Tratar-se-ia de uma interrupção funcional do impulso nervoso, que é preciso distinguir da interrupção resultante da destruição das células das pontas motoras da medula. Os músculos "alienados" aparentam estar paralisados; entretanto, apenas cessaram de funcionar e temporariamente ficam dissociados do sistema nervoso central. A alienação pode ser devida a várias causas: 1 - o músculo ficaria distendido além de seu comprimento habitual de repouso devido à ação de seu oponente, que se apresenta em espasmo; segundo Sherrington, um músculo não poderá se contrair se afastarmos ou aproximarmos demais seus pontos de inserção; 2 - um músculo pode ficar "alienado" quando sua contração causa dor ao músculo que lhe é oposto e que está em espasmo; 3 - a moléstia talvez causasse modificações no sistema nervoso que, sem destruir as células e fibras, determinasse uma perda no poder de transmissão e interferência na ação neuromuscular normal. Um exemplo de "alienação", concepção original e difícil de ser aceita à primeira vista, é o relativo ao chamado "pé caído". A explicação seria a seguinte: o músculo gastroenêmio é o afetado pela doença e está em espasmo, ao passo que os dorsiflexores estão em estado de "alienação". Segundo a concepção de Kenny, os músculos que geralmente são considerados como paralisados por destruição das células das pontas anteriores, muitas vezes não o estão, estando apenas alienados por causa do espasmo dos antagonistas. Se o espasmo dos gêmeos fôr relaxado por meio de compressas quentes e se se restabelece a "consciência" dos dorsiflexores "alienados" por meio de uma reeducação especial, o pé caído desaparecerá. É verdade que pode haver o pé caído verdadeiro, por "paralysia vera". Daí o valor da detenção do espasmo; um músculo "alienado", se não fôr tratado por uma reeducação especial, poderá com o tempo tornar-se completamente paralisado.

A "incoordenação" é descrita da seguinte maneira: o impulso motor que devia ser transmitido a um certo músculo ou grupo de músculos, devido à dor que esta tentativa de movimento causa ou pela incapacidade do músculo em preencher sua função, è transmitido a um outro músculo ou grupo de músculos. Por exemplo, ao invés do paciente fletir a coxa com o auxílio do psoas, usa o músculo costureiro. Se a incoordenação não fôr tratada por reeducação especial, o paciente perde o ritmo do movimento e aparecem então movimentos anormais ou uso inadequado de outros músculos.

Quando, devido a um severo ataque, muitas células das nontas anteriores são destruídas desde o início, há o aparecimento da "paralysia vera flac-cida" de certos grupos musculares. Nesta fase, o tratamento é completamente ineficaz.

Analisados os sintomas da paralisia infantil no conceito Kenny, veiamos as indicações e a técnica terapêutica.

O tratamento deve ser iniciado logo depois de firmado o diagnóstico. O método Kenny exige um conhecimento íntimo da anatomia muscular, do sistema neuromuscular e muita atenção nos detalhes de reeducação. De início trata-se o espasmo e depois passa-se à reeducação muscular.

Para o espasmo o tratamento deve começar pelo uso de compressas quentes preparadas de maneira especial. Pedaços de lã, cortados de maneira especial para cada segmento corporal, são fervidos e depois passados rapidamente num torcedor para que tôda a água seja removida, sendo aplicados direta e rapidamente sobre a zona afetada. As articulações não devem ser cobertas e o paciente não deve ter sensação de estar sendo imobilizado. As compressas são removidas de 2 em 2 horas na maioria dos casos; em casos de espasmo dos músculos respiratórios serão renovadas de 15 em 15 minutos. As compressas são postas durante 12 horas ininterruptamente. A alternância entre o aquecimento e o esfriamento das partes, por estas compressas, parece ser o fator que tende a relaxar o espasmo.

Assim que o espasmo começa a ceder, inicia-se a movimentação passiva. Esta é feita pelo menos em 3 sessões diárias. Passada a fase dolorosa, inicia-se a parte mais importante do tratamento, que é a reeducação muscular.

O propósito da reeducação é tratar a "alienação" do músculo e evitar a incoordenação. A reeducação restaura a conexão entre o músculo e o sistema nervoso central. A consideração primeira não é a de obter a força muscular mas sim a de obter a produção de um movimento rítmico normal, não importa quão fraco seja. O sistema neuromuscular é um sistema altamente especializado e, embora cada músculo tenha uma ação primária definitiva, qual seja a contração no seu ponto de inserção, êle raramente age sozinho, por causa da integração e cooperação dos músculos vizinhos. Quando uma articulação é movida numa direção específica, certo número de músculos entra em ação. Entretanto, há usualmente um músculo que é o responsável por um dado movimento e este músculo pode ser considerado como o principal movimentador da articulação nessa direção particular. É preciso lembrar, também, que para cada movimento produzido por um músculo há um movimento oposto produzido pelo músculo antagonista e que a função efetiva de uma articulação depende da regulação destas unidades que se opõem, sob a ação controladora do sistema nervoso central. Quando um flexor começa a contrair-se, o extensor simultaneamente alonga-se de uma forma gradual, de maneira a resultar uma ação suave na articulação. Esta ação harmoniosa, que permite um funcionamento muscular suave, regular e eficiente, é chamada coordenação.

O desaparecimento, no esquema motor, da ação de um músculo particular, seja devido a um envolvimento direto da inervação deste músculo pela doença, seja pela alienação ou outra causa qualquer, resultará em tentativa dos músculos vizinhos para substituir o movimento perdido, causando então a incoordenação. Quando se começa o treino muscular, esta tentativa de substituição deve ser completamente removida e prevenida. Cada esforço físico ou mental do paciente deve ser guiado exclusivamente para o músculo que está sendo treinado.

Logo que as articulações possam ser movidas passivamente, mesmo em grau muito pequeno, porém sem dor, começa-se a reeducação muscular. No princípio, faz-se apenas a movimentação passiva e a estimulação dos músculos. Logo que se nota uma tentativa de movimento pelo músculo, começa-se a parte ativa do tratamento. O paciente é colocado numa mesa de tratamento como se estivesse na posição normal de sentido com os braços ao longo do corpo. O paciente deve estar completamente relaxado e ser cooperativo. Não se pode fazer tratamento em crianças que estão chorando ou adultos com medo da dor. A atenção do paciente deve se concentrar no músculo a ser reeducado. O técnico dá instruções ao paciente em relação à parte a ser movida e o exato músculo que fará a ação. Primeiramente, faz-se a estimulação dos reflexos proprioceptivos, movendo os tendões para frente e para trás. Isto deverá ser repetido diariamente e várias vezes por dia, mesmo na fase em que o paciente ainda esteja usando compressas quentes.

Para a boa execução da reeducação muscular, miss Kenny fêz uma classificação dos músculos: 1 - Músculos que se contraem na posição normal de repouso (bíceps e gêmeos); 2 - Músculos que devem ser removidos da posição normal de repouso para poder entrar em contração (tríceps e quadrí-ceps). O músculo quadríceps, por exemplo, para se contrair, deve ser tirado da posição de repouso pela flexão do joelho.

Rua Anhangabaú 814, apart. 16 - São Paulo.

Síntese de conferência realizada na Seção de Neuro-Psiquiatria, da Associação Paulista de Medicina, documentada com filme cinematográfico, em 21 de julho de 1944.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1944
Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.arquivos@abneuro.org