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Paquimeninite cervical hemorrágica com aracnoidite cística: Tratamento cirúrgico

REGISTRO DE CASOS

Paquimeninite cervical hemorrágica com aracnoidite cística. Tratamento cirúrgico

Carlos GamaI; Lamartine de AssisII; V. Arruda ZamithIII

ILivre docente e 2.° assistente de Neurologia da Fac. Med. Universidade de São Paulo. Neuro-cirurgião

IIAssistente voluntário de Neurologia da Fac. Med. Univ. S. Paulo

IIIAssistente voluntário da 2.a Cadeira de Clínica Médica da Fac. Med. Univ. S. Paulo. (Serviço do Prof. Ovidio Pires de Campos)

O presente caso foge ao habitual em virtude de embaraços de ordem diagnóstica e tático-cirúrgica. Estas dificuldades surgiram não somente em relação ao diagnóstico etiológico, mas também ao topográfico por ter havido discordância entre a sintomatologia clínica e a peri-miélografia. Devemos considerar ainda o brilhante resultado cirúrgico alcançado, apesar das dificuldades apontadas e da gravidade do comprometimento medular.

Trata-se de A. L. O. (S. N. 7.495) com 38 anos de idade, pardo, operário, casado, brasileiro, internado na 3.a Enfermaria de Medicina de Homens da Santa Casa de S. Paulo (Serviço do Prof. Ovidio Pires de Campos) em 2 de julho de 1942.

Relata estar doente ha cerca de 4 anos. A moléstia iniciou-se bruscamente com súbita e passageira dor na região escapular esquerda. Alguns dias depois, a dor se repetiu na mesma região e com os mesmos característicos. Desde então, a dor surgia de vez em quando, sempre na mesma região e com os mesmos característicos, isto é, contínua, não muito forte, sem qualquer propagação e de curta duração (48 horas). Tal sintoma se repetiu cada 2 ou 3 mezes. Um ano mais tarde, notou diminuição da atividade, do apetite e da potência sexual. Assim passaram-se 24 meses. Em janeiro deste ano, portanto ha 7 mezes, começou a sentir fraqueza nos membros inferiores, irradiação da dor escapular, agora intensificada e persistente, para a face anterior do tórax. Essas dores se agravavam pela tosse e espirro. Ao mesmo tempo, novos fenômenos álgicos surgiam na coluna dorsal, com irradiação para a face posterior do pescoço. Ha 3 mezes a moléstia adquiriu um aspecto deveras sombrio: fraqueza tal nos membros inferiores, que a deambulação tornou-se impossivel; parestesia no braço esquerdo, com nítida diminuição da força muscular nos dedos anular e médio da mão esquerda; parestesia nos pés e pernas; automatismo nos membros inferiores; retenção de fezes e urina. Nessa situação procurou este hospital onde teve infecção intestinal com febre alta (40°) durante 3 dias, depois do que atravessou um curto período de melhoras chegando até a andar. Dos antecedentes familiares e hereditarios ha a notar ausência de moléstias neurológicas e mentais na família bem como infecções gerais. Dos antecedentes pessoais, é preciso salientar que, cm 1930 teve fraqueza nos membros inferiores (sic) e, em 1927, blenorragia e otite. Sempre foi alcoolista e tabagista moderado.

Exame clínico geral: Indivíduo bem nutrido com mucosas visíveis normais. Aspecto geral bom. Tipo brevilíneo. Não apresenta estigmas luéticos. Pulsos isócronos batendo 78 vezes por minuto e com carateres normais. Bulhas e area cardíaca normais. Pressão arterial 11,2 e 7. Arterias normais. Nada de importante nos demais órgãos e aparelhos.

Exame neurológico: Psiquismo aparentemente íntegro. Paciente em decúbito dorsal preferivelmente, com os membros inferiores em extensão. A face nada denota de anormal, o equilíbrio não poude ser verificado uma vez que o doente não consegue ficar de pé. Ha uma paraplegia crural espasmódica com perda completa da motricidade voluntária nos membros inferiores, estando por isso prejudicadas as manobras deficitárias (Barré, Mingazzini, pé de cadaver). Pé direito em abdução forçada. Também prejudicada a pesquiza de ataxias nos membros inferiores. Hipertonia de tipo piramidal em ambos os membros inferiores. Sinal de Babinski bilateral, bem como a variante de Schaefer. Rossolimo presente em ambos os pés. Não existe o sinal de Mendel-Bechterew. Cremastéricos superficiais e profundos abolidos, bem como os cutâneos abdominais. Reflexos profundos p.os membros inferiores exaltados. Nos membros superiores, há nítida inversão do estilo-radial à esquerda, não havendo outros reflexos patológicos. O espondilo-crural inicia em T6, as respostas evidentes. Clonus nos pés e rótulas. Não ha trepidações. Automatismo intenso nos membros inferiores pelas manobras clássicas e por diversas excitações cutâneas; o automatismo medular é provocado, também, quando se pesquiza a sensibilidade térmica desde os pés até a região ínguino-abdominal dos dois lados. Pesquiza das sincinesias prejudicada. Alem das dores e parestesias já relatadas, existem perturbações objetivas muito nítidas: anestesia térmico-dolorosa de T2 para baixo; faixa de hiperestesia tactil entre T2 e T4, e, finalmente, nítida perturbação da sensibilidade vibratória de T4 para baixo nos dois lados e da segmentar apenas no lado direito (figura 1). A compressão dos testículos não provoca dor. Anestesia corneo-conjuntival dos dois lados.


Exame do líquido céfalo-raquidiano em 13-7-1942. Punção lombar em decúbito lateral. Pressão inicial 21. Pressão final 0. Manobra de Queckensted 31. Liquor límpido e incolor. Citologia 2,4 células por mm3. Albumina 0,60 grs. por litro. R. Pandy fortemente positiva. R. Benjoin 00122.22222.22210.0. R. Takata-Ara negativa. R. Wassermann negativa. R. Steinfeld negativa (O. Lange). R. Wassermann no sangue negativa. Exame radiologic o da coluna vertebral: Não ha sinal de lesão óssea ou articular passivel de verificação radiológica. Estrutura óssea e espaços articulares conservados (A. Orsini). Prova da histamina positiva, tanto nas zonas de anestesia quanto nos territórios íntegros. Ao fim de alguns minutos estava presente a tríade de Lewis. Em 20 de agosto o exame do líquido cêfalo-raquidiano foi repetido. Punção lombar em decubito lateral. Pressão inicial 10. Manobra de Queckenstedt 36. Provas de Stookey: bloqueio parcial (subida retardada e descida lenta). Citologia 1,8 células por mm3. Albumina 0,50 grs. por litro. R. Pandy fortemente positiva. R. Benjoin 00012.22221.00000.0. R. Takata-Ara positiva tipo mixto. R. Meinicke negativa. R. Wassermann negativa (O. Lange). Diante da existência de bloqueio parcial do canal raqueâno revelado pelas provas de Stookey e pelas anormalidades encontradas no liquor extraido por via lombar, foi praticada punção sub-occipital para injeção do lipiodol descendente. O liquor colhido por essa punção mostrou-se inteiramente normal. O lipiodol injetado parou em bloco ao nivel de C3, passando apenas algumas gotículas (figura 2).


Trata-se de uma afecção que data de 4 anos, iniciada por dores na região escapular esquerda, de fraca intensidade, que apareciam e desapareciam mais ou menos bruscamente, duravam cerca de 48 a 72 horas e repetiam-se a intervalos variáveis de tempo. Há 3 anos diminuição da potência sexual. Em janeiro de 1942 começou a sentir fraqueza progressiva, sensação de peso nos membros inferiores e intensificação dos fenômenos álgicos que se irradiavam para a face anterior do tórax, face posterior do pescoço e coluna dorsal, aumentando com tosse e espirro. Tais algias, de periódicas, tornaram-se contínuas. Há 3 meses peora sensivel das pernas, das perturbações esfinctéricas (dificuldade na micção e defecação) e das parestesias nos membros inferiores. Há 15 dias deambulação impossível, aumento das dores e das perturbações esfinctéricas. O exame neurológico evidenciou uma síndrome paraplégica crural espasmódica, por lesão das vias piramidais na medula, agravada pelo comprometimento do membro superior esquerdo, com diminuição da força muscular da mão esquerda, principalmente dos dedos médio e anular, alem de inversão do reflexo estilo-radial esquerdo. Ao lado dessa síndrome motora, há uma síndrome sensitiva, representada pelas radiculalgias cervicais e toráxicas, parestesias dos membros inferiores e anestesia térmico-dolorosa de T2 para baixo, sendo que o tacto está normal, exceto numa faixa entre T2 e T4, onde há hiperestesia tactil. Perturr bação da sensibilidade profunda conciente de T4 para baixo. Perda da sensibilidade testicular.

Diante desse quadro clínico, em que o sofrimento medular e a nota radicular estavam nítidos, pensamos numa síndrome medular compressiva. O exame do líquido céfalo-raqueano com a prova de Stookey-Queckenstedt, confirmou inteiramente a existência de compressão medular, revelando um bloqueio parcial, com ligeira dissociação albumino-citológica e intensa reação meningítica. Baseando-nos nos distúrbios da sensibilidade, na inversão do reflexo estilo-radial, no comprometimento da força muscular do médio e anular da mão esquerda e no reflexo espondilo-crural que tornou-se nítido ao nivel do T6, localizamos o processo entre C5 e T6. No entanto, a prova de Sicard nos trouxe uma surpresa : o lipiodól descendente parou em bloco ao nivel da 3.a cervical. Este foi o primeiro embaraço de interesse prático que o caso nos apresentou. Como explicar tal discordância? Pensamos que teria sido util antes de operar, fazer um exame radiológico com lipiodól ascendente, o que poderia nos esclarecer sobre o limite inferior do bloqueio, embora os resultados nem sempre sejam satisfatórios. Infelizmente fatores de ordem material impossibilitaram tal procedimento.

Possivelmente tratava-se de um tumor intra-raquidiano com limite inferior em T6. Estranhamos a parada do lipiodól em C3 mas a explicamos pela existência de aracnoidite cística. Não seria desarroado pensar, também, em paquimeningite cervical hipertrófica. Um fato clínico que reputamos importante em favor de afecção meningea e contrário a um processo neoplásico justa-medular, foi a melhoria acentuada, embora transitória, apresentada depois de um período febril. Alem disso, após o período inicial álgico da moléstia, o doente teve uma remissão quasi completa durante 'um ano, fato que fala contra neoplasia e em favor de aracnoidite. Em suma, antes da laminectomia, não conseguimos determinar a natureza da afecção bloqueante. Pelos exames complementares foram afastados os processos originários da coluna e órgãos próximos, os hiéticos e mesmo a equinococóse intra-raqueana.

O segundo embaraço que o caso apresentou, de ordem tático-cirúrgica e decorrente do primeiro, dizia respeito ao nivel em que devia ser feita a laminectomia. As opiniões eram divergentes, achando uns que a laminectomia alta, cervical, seria a mais aconselhável, por isso que ditada pela para do lipiodól. Realmente, si em C3 parou o contraste, deveria haver ali um obstáculo ao transito. E qual o fim da intervenção se não procurar permeabilizar o canal raqueano? Outros, porem, e nós mesmos estávamos neste grupo, baseados no exame clínico e, calculando que o agente bloqueante fosse mais extenso e se propagasse mais para baixo, opinavam pela laminectomia baixa, entre T1 e T6. Mais tarde poderia ser feita outra, caso necessário, entre C3 e C5. Decidimo-nos por esta segunda norma de conduta.

A operação foi feita por um de nós, em 21 de setembro (ficha C. G. 5.578). Laminectomia entre T1 e T6. O canal raqueano, completamnte aberto, permitiu verificar que a face posterior da dura-mater era inteiramente normal. A sondagem extra-dural permitiu verificar estar livre o canal raquano para baixo e para cima dos limites da laminectomia. Aberto o envoltóro dural nada foi encontrado de anormal, sendo igualmente permeável o espaço peri-medular. A intervenção e a sequência imediata foram muito boas. Todavia, a sequência tardia foi má, porisso que o paciente apresentou varias escaras, algumas das quais graves; mas, com enfermagem cuidadosa, curou-se dentro de 5 mezes, ficando em boas condições para nova intervenção. Nessa época o quadro neurológico estava um pouco melhor, em relação ao anterior à operação: o paciente movimentava os artelhos, executava a flexão das pernas e os esfincteres funcionavam expontaneamente, embora ainda sem um controle perfeito; houve, também, melhora da sensibilidade.

Em 27 de fevereiro de 1943 foi feita nova operação, ao nivel de C3, C4 e C5. Aberto o canal, verificou-se o adençamento do tecido peri-dural, o qual apresentava-se arroxeado, talvez pelo sangue em sufusão. A sondagem extra-dural era livre para cima, para baixo, depois da libertação desse tecido. Aberta longitudinalmente a dura, foi encontrado grande espeçamento da mesma. A aracnóide era opaca e densa formando um cisto que retinha o lipiodol. O exame histo-patológico, deu o seguinte resultado: "fragmento de tecido conjuntivo frouxo, em cuja superficie se vêem blocos sinciciais com aspecto dos meningotelios, e, em pleno tecido, existem corpos psamomatósos idênticos àqueles vistos nas meninges" (W. E. Maffei).

Uma semana depois da intervenção, as raqui e radiculaalgias tinham desaparecido completamente. A motricidade e a sensibilidade melhoraram de modo acentuado e os esfincteres voltaram ao funcionamento normal. Dez dias depois, conseguia andar apoiado. Novo exame neurológico, feito em 22-3-1943, mostrou: motricidade voluntária muito melhorada, com força muscular apreciável. Manobras deficitárias executadas satisfatoriamente. Sinais piramidais de libertação ainda presentes: clonus nas rótulas e nos pés; trepidações, sinal de Babinski bilateral, sinal de Rossolimo esboçado nos pés; reflexos cutâneos abdominais e cresmastéricos abolidos; dos automatismos antigos, persistia apenas uma tendência pela manobra das percussões repetidas na planta dos pés. Restauração da sensibilidade tactil e dolorosa nos membros inferiores; ainda havia hipoestesia térmica; os esfincteres funcionavam bem e o trofismo estava bom, não havendo o menor sinal de escara. Revisto o doente em julho de 1943, continuavam as melhoras, tendo o doente retornado às suas funções normais, completamente curado. Estava em uso de radioterapia profunda, aplicada na região cervical.

A nosso ver, a discordância entre o quadro clínico e a sede do bloqueio raqui-medular demonstrado pela peri-mielografia, constituiu o fato de maior interesse desta observação. Realmente, em virtude dessa dúvida, tornaram-se necessárias duas laminectomias em niveis diversos para a cura do paciente. A despeito do exame anátomo-patológico do material retirado do espaço aracnoidiano, não ficou perfeitamente esclarecida a etiologia do processo (Aracnoidite cística e paquimeningite hemorrágica. Meningotelioma?).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Set 1943
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