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A construção imagética de uma Belém idílica: trans-historicidade e movimento das imagens nas apólices da Port of Pará

The imagetic constitution of an idyllic Belém: trans-historicity and movement of images on Port of Pará’s policies

RESUMO

Este trabalho analisa uma gravura representativa da cidade de Belém que ilustra uma apólice da empresa Port of Pará. A análise parte de seus aspectos trans-históricos e de suas reverberações imagéticas, a fim de engendrar uma memória coletiva da cidade assente em seus espectros de modernidade. As apólices, ferramentas transacionais mercantis daquele contexto, são fontes documentais historiográficas por representarem o dinâmico cenário pelo qual as estruturas da cidade se movimentavam no auge do ciclo da borracha. Suas gravuras, ao mesmo tempo que são leituras da cidade sob uma perspectiva desenvolvimentista e cosmopolita, também constituem escrituras de uma nostalgia memorial urbana, de projeção visionária de melancolia e utopia. As gravuras são alicerçadas no movimento de imagens devido ao rearranjo das edificações e da morfologia urbana de Belém, representativas de diversos momentos históricos da cidade. Analisa-se aqui, a partir da perspectiva warburguiana, essa operação imagética, que sintetiza o forte caráter idílico de uma certa experiência de modernidade numa capital periférica.

PALAVRAS-CHAVE:
Apólices; Port of Pará; Belém; Modernidade; Imagens trans-históricas

ABSTRACT

Based on its trans-historical aspects and imagetic reverberations of an engraving of the city of Belém that illustrates policies of Port of Pará Company, this work analyzes a collective memory of the city based on its modernity spectra. The policies, historiographical documents, and transactional mercantile tools of that context represent the dynamic scenario on which the city structures functioned on the rubber cycle boom. The engravings not only offer interpretations of the city through a developmentalist and cosmopolitan perspective, but also constitute writings of a memorial urban nostalgia, of visionary melancholic and utopian projection. The engravings are based on the movement of images due to the rearrangement of buildings and urban morphology of Belém, which represents several historical moments of the city. From a Warburguian perspective, this work analyzes this imagetic operation that synthesizes the strong idyllic power of a certain experience of modernity in a peripheric capital.

KEYWORDS:
Policies; Port of Pará; Belém; Modernity; Trans-historic images

INTRODUÇÃO

A vertiginosa onda de modernidade irrompida na Europa em decorrência das demandas desencadeadas pela Revolução Industrial, a partir do final do século XVIII, que consolidaria o sistema econômico capitalista ao longo do século XIX, alastrando-se como um tsunami por todo o mundo, não tardaria a chegar aos confins da Amazônia. A partir da segunda metade do século XIX, Santa Maria de Belém do Grão-Pará, uma pequena cidade localizada na confluência dos rios Guamá e Guajará, na vasta embocadura do Rio Amazonas, seria tragada por essa grande onda, em meio às condições propiciadas pelo boom econômico da exploração da borracha na região. Belém, assim como Manaus, as duas metrópoles da Amazônia, inexoravelmente seriam engolfadas pelo espírito fáustico (e mefistofélico!) da modernidade que, por essa correlação histórica de forças, iria impregnar os ares equatoriais dessa periferia do capitalismo.

Ainda hoje, mais de cem anos depois, ressonâncias e refluxos dessa grande onda são objetos de revisão histórica, ensejados por um feixe de narrativas que projetam, não sem um saudosismo melancólico, as imagens de uma Belém áurea, cosmopolita, glamurosa, que um dia sonhou ser uma Paris n’América. No entanto, como não compreender que essa cidade se deixaria avidamente seduzir por esse envolvente caldo turbulento e vertiginoso da onda de modernidade cujo sentido, mais que uma moda passageira de uma “bela época”, se afirmaria como uma nova ordem mundial. Marshall Berman, em seu antológico ensaio Tudo que é sólido se desmancha no ar, demarca o que ele assinala como “a aventura da modernidade”, o espírito dos tempos modernos:

Existe um tipo de experiência vital - experiência de tempo e espaço, de si mesmo e de outros, das possibilidades e perigos da vida - que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como “modernidade”. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor - mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos […]. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”.4 4 Berman (1986, p. 15).

Belém, então, ao introjetar esse zeitgeist da modernidade em sua dinâmica de cidade movida pelo abundante capital financeiro decorrente do látex, logo haveria de procurar reconfigurar seus traçados e modos de vida urbanos em consonância com os grandes centros europeus. Com o propósito de se fazer representada nesse cenário, nada mais emblemático do que importar como modelo a cidade de Paris - “a capital do século XIX”, conforme a alusão simbólica de Walter Benjamin -, especialmente de acordo com a concepção urbanística empreendida pelo Barão Haussmann na capital francesa:

O ideal urbanístico de Haussmann eram as visões em perspectiva através de uma longa série de ruas. Isso corresponde à tendência que de novo se pode observar no século XIX, no sentido de enobrecer atividades técnicas fazendo delas objetivos artísticos. As instituições da dominação laica deveriam encontrar a sua apoteose no traçado das avenidas: antes de serem inauguradas eram recobertas por uma lona e depois desencobertas como monumentos.5 5 Benjamin (2006, p. 41).

Essa concepção descortina a imagem da cidade-cenário da modernidade a ser implantada em uma nova Belém, apresentando-se aos olhares do mundo reconfigurada a partir da janela panorâmica da Baía do Guajará sob a perspectiva de quem aporta à cidade, seja estrangeiro, seja ribeirinho. Nesse contexto, no início do século XX, duas grandes intervenções urbanas demarcariam simbolicamente esse novo cenário de uma Belém moderna: as construções do Port of Pará e do Boulevard da República, objetos deste artigo. As denominações port of, em inglês, e boulevard, em francês, parecem nos dizer que, irônica e inexoravelmente, Belém estava, àquela altura, definitivamente incorporada à lógica socioeconômica e ao ideário estético-cultural estabelecidos pelo capital financeiro internacional, elementos que veremos implicitamente representados na imagem da gravura objeto deste estudo.

Para todos os efeitos, tanto o Port of quanto o Boulevard implementariam alterações radicais não apenas na figuração formal do traçado urbano de Belém, mas efetivamente no que significam em sua funcionalidade. Ambos estão diretamente relacionados com os fluxos urbanos emergentes de uma cidade moderna, de uma sociedade envolvida por novos meios de produção e troca e especialmente pelo intercâmbio de ideias vinculadas ao novo estilo de vida promovido por essas vias: a amplitude do Boulevard, que logo se abriria à passagem do automóvel, e o Port of, com as idas e vindas dos vapores, estabelecem, para sempre, as conexões com o moto continuum avassalador da modernidade. Essas conexões dinâmicas materializam-se de forma trans-histórica na gravura de uma das apólices da Port of Pará (Figuras 2 e 3), empresa concessionária do Porto de Belém no momento da intensa comercialização da borracha.

Figura 1
Esboço do plano de obras portuárias da Port of Pará. Fonte: Halle (1912HALLE, A. Port of Pará. In: UNION OF AMERICAN REPUBLICS. Bulletin of the Pan American Union. Washington, DC: The Union, 1912. v. 35, p. 682-698., p. 697).

Figura 2
Apólice A41536 da Port of Pará (1920). Fonte: Acervo Flávio Nassar. Foto: Mateus Nunes, 2019.

Figura 3
Destaque da gravura da cidade na apólice. Fonte: Acervo Flávio Nassar. Foto: Mateus Nunes, 2019.

Os conceitos e operações de Aby Warburg (1866-1929) fundamentam a análise deste trabalho, dado que se trata de um referencial teórico do legado da teoria da imagem, da compreensão rizomática do tempo e da constituição de uma história da arte cronologicamente híbrida. A dificuldade operativa das usuais formas de pensar, ler e escrever história da arte constitui um cerco que limita tanto a análise de objetos artísticos complexos quanto a reverberação analítica em âmbitos científicos transdisciplinares, fundamentais para a historiografia contemporânea da arte, principalmente em estudos da imagem.

Ao depararmo-nos com uma gravura que elenca e constitui - como em operações de colagem ou montagem - uma paisagem idílica, manipulando referências trans-históricas de diversos séculos da história de Belém, o maquinário warburguiano demonstra-se necessário para compreender a complexidade da estrutura temporal e a dinâmica do movimento das imagens. Provê, da mesma forma, refúgio aos constrangimentos teóricos e nomenclaturais de uma historiografia da arte já ultrapassada na contemporaneidade, que igualmente resultaria numa análise rasa no que tange à transdisciplinaridade essencial à análise de uma imagem dessa natureza, que já parte de uma matriz operativa trans-histórica desde sua concepção.

A CONSTRUÇÃO DO PORTO DE BELÉM E DO BOULEVARD DA REPÚBLICA

A Belém-látex dos primeiros tempos republicanos já apresentava uma série de avanços modernos. Contudo, foi em especial na Belém de Lemos que a cidade expandiu-se a novas perspectivas, de forma mais atraente a uma população que se tornara ávida por mudanças e ansiava por respirar o impoluto ar da “civilidade”. Desejoso de ir além do que já existia na bela arquitetura portuguesa, o Intendente Antônio Lemos,6 6 Antônio José de Lemos (1843-1913), maranhense, em sua trajetória política, candidatou-se a vários cargos eletivos, além de ter governado a cidade de Belém por 14 anos, de 1897 a 1911, durante o apogeu da borracha. Também jornalista e proprietário do jornal A Província do Pará, fez publicar sete relatórios em que descreve, em tom pessoal, todas as ações do executivo municipal empreendidas entre 1897 e 1908 (NUNES, Marcia, 2017, p. 226-227). inspirado pelos novos ventos de Paris e de Viena, pôs em prática seu plano de transformar Belém em uma Petit Paris; afinal, era preciso transformar as ruas estreitas e os becos acanhados em espaços que viessem a se converter em um boulevard amazônico de inspiração parisiense. Lemos, na verdade, adotou um espelho de urbanismo do “tipo haussmanniano”, conforme conceituou Pierre Pinon:7 7 Pinon (1995). um urbanismo idealizado para uma realidade amazônica, com condições geográficas, climáticas, governamentais e populacionais totalmente diferentes das de Paris, mas implementado mediante uma intervenção autoritária, uma imposição de um projeto urbano definido, também baseado em seu Código de Polícia Municipal.8 8 Cf. Marcia Nunes, op. cit. O Código de Polícia Municipal foi instituído pela Lei n. 276 de 03 de julho de 1900 pelo intendente municipal. Tinha como objetivo precípuo o disciplinamento dos hábitos e costumes de todos os munícipes, principalmente das populações que moravam nos subúrbios, pois os moradores destas áreas também eram vistos pelo centro da capital. Estabelecia direitos e deveres, assim como todos os serviços da comuna. Era orientado por dois princípios formais que, na prática, eram comumente associados: o de higiene e o das normas estéticas (NUNES, Marcia, 2017, p. 287-288). Desta maneira, iniciam-se os projetos e obras de saneamento e embelezamento da cidade,9 9 Sarges (2010). como as do porto de Belém:

Obras de melhoramentos do porto de Belém do Pará. Placa comemorativa da inauguração da primeira extensão do caes, em 12 de outubro de 1909, sendo presidente da República o Dr. Nilo Peçanha; ministro da Industria e Viação, o Dr. Francisco Sá; ministro da Fazenda, o Dr. Leopoldo de Bulhões; ministro da Marinha, o almirante Alexandrino de Alencar; governador, o Dr. João Coelho; intendente, o senador Antônio Lemos; chefe da comissão fiscal, o Dr. Luiz de Souza Mattos.10 10 O Paiz (1909, p. 6).

Esses foram os dizeres da placa de inauguração que foi aparafusada na muralha pelos Desembargador Augusto Olympio e Senador Antônio Lemos, que se serviram de duas belíssimas bengalas de muirapinima, cujas ponteiras rosqueadas foram em tempo substituídas por chaves de parafuso de fendas douradas. As bengalas oferecidas às duas autoridades tinham castão de prata - uma esfera com inscrição alusiva ao ato e respectiva data.11 11 Ibid.

A modernização do porto de Belém era vista de várias formas, mas sempre como via de alcance de um único objetivo: o progresso da cidade. Para os engenheiros, o reordenamento do centro urbano só seria possível mediante a reestruturação da ineficiente zona portuária, inadequada para o recebimento do fluxo cada vez maior de pessoas, mercadorias e veículos. Para os higienistas, o desenvolvimento da cidade passava obrigatoriamente pelo saneamento da zona portuária. Para as autoridades fiscais, a modernização do porto significava o aumento de arrecadação. Para a Praça do Comércio, a redução de custos e prejuízos. Para imprensa e autoridades, significava desenvolvimento econômico e social, pela inserção da cidade nos padrões de civilização do modelo do urbanismo moderno ocidental.

No Brasil, a influência de padrões europeus de urbanização, sobretudo o francês - “haussmanniano” -, caracterizou a remodelação de importantes cidades. As intervenções haussmannianas mudaram a maneira de pensar a cidade, na medida em que tomam a rua como principal elemento e criam uma rede viária composta por um tecido arquitetônico que destrói bairros insalubres e vielas. Expulsam a população residente, priorizam a higiene e a circulação, mudam a imagem da área central, e a cidade prepara-se para um novo modo de vida. A rua do século XIX destrói e modifica a rua medieval. A caixa da rua aumenta, as fachadas são reconstruídas, os trechos irregulares são substituídos por outros com desenho regular, geométrico e ortogonal. Diferentes dos bulevares de Luís XIV - projetados no lugar das antigas muralhas, locais para o desfrute e o passeio -, os bulevares do século XIX, de Haussmann, são artérias criadas para a circulação rápida e o tráfego pesado. O espaço haussmanniano é o espaço público - a rua, o passeio, as praças -, o espaço da mobilidade.12 12 Cf. Marcia Nunes, op. cit., 2017.

Em Belém, diversas ações “modernizadoras” buscaram destruir as feições coloniais da cidade, adequando-a aos moldes europeus e “civilizados” da época. O caráter da reforma de Lemos foi centrado na higiene, remodelamento e embelezamento urbano,13 13 Cf. Lima, Nunes e Eiró (2018). além do processo civilizador. Fazia-se necessária a construção de um porto moderno, que demonstraria as novas perspectivas da cidade e atenderia aos anseios da população.

Entender o sentido dessa transformação foi mostrar como esse espaço tomou nova forma e diferentes sentidos em momentos diversos na vida da cidade por conta da ideologia do progresso de Lemos: modernizar a cidade significou criar estruturas de um sistema eficiente de assepsia pública, isto é, efetuar as reformas paisagísticas e urbanística com aterramentos, sem destruição do tecido existente. Nesse contexto de organização do trecho banhado pela Baía do Guajará, é imprescindível destacar a figura de Percival Farquhar14 14 Percival Farquhar (1864-1953), um dos mais persuasivos empreendedores do ramo ferroviário na história econômica das Américas, nasceu em York, no estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, filho de quacres. Farquhar chegou ao Brasil em 1904 e trabalhou incessantemente até o início dos anos de 1950. Por todo o país, atuou nas áreas de bondes, ferrovias, navegação, portos, hidrelétricas, criação de gado, frigoríficos, colonização de terras, extração e comercialização de madeira, fabricação de celulose e papel e, nos últimos tempos, minério de ferro e siderurgia (Gauld, 2006, p. 31). na construção do porto de Belém, responsável pela construção de uma nova avenida paralela em sua extensão. Essa avenida originou-se do Boulevard da República, que se conecta diretamente com o rio que ilustra a apólice da empresa Port of Pará.

A administração municipal de Antônio Lemos representou uma força efetivamente realizadora da urbanização da Belém moderna e, com ela, a concretização de uma nova imagem de cidade,15 15 Cf. Duarte (1997). que passou a ser apreciada da perspectiva da baía do Guajará. Essa vista, muitas vezes relatada pelos viajantes e estrangeiros que aportavam em Belém, tornou-se símbolo emblemático da cidade, como demonstra Peregrino Júnior no texto Chegada de um peregrino:

Belém… Se eu vos contasse o que foi a sensação do meu primeiro encontro com essa cidade amada! Cheguei à noite e não pude desembarcar. Diante de meus olhos palpitantes cintilavam as ruas da cidade: as lâmpadas de arco-voltáico, lívidas e trêmulas, dos armazéns da Port of Pará, do Boulevard, do Ver-o-Peso… E no veludo das sombras noturnas, o recorte das três panelas verdes da Caixa d’Água e os perfis longínquos das torres da Sé e de Santo Alexandre. No dia seguinte, ao desembarcar, diante das velas coloridas e dos mastros ensarilhados do Ver-o-Peso, senti que pisava terra amiga e acolhedora; solo bom e generoso - e fui para casa de um amigo no bairro da Sé - chão velho onde a cidade nascera.16 16 Júnior (2000, p. 346, grifo nosso).

A nova imagem passaria a ser apresentada por meio da construção e do movimento do novo porto a ser elaborado a partir de 1906 por Percival Farquhar, quando o poder legislativo autorizou a concessão desses melhoramentos no Decreto nº 5.978 de 18 de abril de 1906,17 17 Cf. Brasil (1906a). configurando uma nova forma à orla da cidade. Por meio do Decreto nº 6.283 de 20 de dezembro de 1906,18 18 Cf. Brasil (1906b). o Exmo. Sr. Presidente da República Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves e o Ministro de Estado de Negócios de Indústrias, Viação e Obras Públicas, Dr. Lauro Severiano Muller, autorizam a funcionar no estado a Port of Pará,19 19 Decreto nº 6.283, de 20 de dezembro de 1906, que definiu o funcionamento da Companhia Port of Pará, de capital privado e estrangeiro, como concessionária do porto. empresa constituída pelo engenheiro Percival Farquhar por meio de ações vendidas nas bolsas de valores da França, Bélgica, Canadá e Estados Unidos da América do Norte. Exercendo o direito da concessão à Port of Pará, como primeiro passo, encampou todos os trapiches do litoral da cidade, providenciando suas demolições, e construiu em seus lugares o moderno cais de Belém, cujas instalações são até hoje tidas como as melhores do Brasil.20 20 Cf. Companhia Docas do Pará (1977).

Percebendo a importância da construção de um porto na cidade de Belém, pelo então destaque mundial da Amazônia na produção de borracha, além de possuir a maior e mais moderna frota fluvial destinada ao transporte interno, Farquhar, lançou mão de sua larga visão administrativa para conseguir também do Governo Federal a concessão para explorar os serviços portuários após a construção do porto. Algumas das razões pelas quais Farquhar se interessou pela administração do porto de Belém foi a garantia do governo brasileiro em pagar 6% de juros sobre o capital, além de uma taxa-ouro21 21 Muitos navios preferiam o porto de Manaus para evitar a taxa-ouro de 2% coletada pelo porto do Pará. Isso preocupava Farquhar que, com objetivo de igualar Pará e Manaus, conseguiu das autoridades federais o Decreto nº 8.045 de 02 de junho de 1910 (Gauld, 2006, p. 142). especial de 2% sobre todas as importações. Farquhar fez com que as empresas americanas W. L. Bull e Pearson comprassem ações e se tornassem diretores da empresa e, na qualidade de presidente, registrou a concessão da Port of Pará22 22 A certidão de organização da companhia data de 12 de novembro de 1906, enquanto a aprovação do Decreto nº 6.283 data apenas de 20 de dezembro de 1906 (Penteado, 1973, p. 74). em 7 de setembro de 1906 nos escritórios da Corporation Trust Co., em Portland, no Estado do Maine, assim como a holding, a Brazil Railway. Ele gostou do nome porque, em 1906, “Pará” era sinônimo de borracha em qualquer lugar do mundo.23 23 Gauld, op. cit.

Em sua biografia sobre Farquhar, Charles Gauld afirma que, em Nova York, Pearson24 24 Os planos de melhoramento do novo cais de Belém foram elaborados pela firma inglesa S. Pearson & Sons, construtora dos portos de Liverpool, Londres e Vera Cruz. ajudou Farquhar a esboçar os projetos para as obras do porto com o engenheiro-chefe Elmer L. Corthell, que havia trabalhado com James B. Eads na construção dos molhes na embocadura do rio Mississipi. De acordo com o projeto, haveria 2km de cais, com paredes feitas de pesados blocos de concreto, e 16 armazéns com estrutura de aço que ocupariam uma avenida e suas ruas transversais, cobrindo quase 300 mil m2 de aterro, além de guindastes e equipamentos a serem alimentados por uma usina termoelétrica. A companhia teria de dragar um canal de acesso de 5,5km de comprimento e uma bacia de giro de 9m de profundidade para as manobras do navio.25 25 Gauld, op. cit. Desse projeto, surgiria então um boulevard-cais26 26 Cf. Marcia Nunes, op. cit. que permitiria a importante ligação comercial da cidade com os maiores centros de desenvolvimento do mundo: a Europa e os Estados Unidos. Paralelamente, o projeto do Boulevard da República, elaborado por Farquhar e pelo engenheiro Pearson, incorporava solicitações e normas da Comissão Fiscal das Obras do Porto pela Intendência Municipal, à qual Antônio Lemos indicou o Sr. Joaquim Gonçalves Lalôr como fiscal das obras, nomeado pelo Ministério da Viação.27 27 Cf. A Província do Pará (1906).

Aprovados os estudos, plantas e orçamentos no dia 7 de fevereiro de 1907, no final desse mesmo mês chegaram a Belém as primeiras remessas de materiais destinadas às obras e instalaram-se na cidade os escritórios da Port of Pará e da firma inglesa S. Pearson & Sons Ltd., que havia sido contratada por Farquhar para a construção do porto de Belém.28 28 Cf. Furtado (2015).

Nos altos da casa Adolpho, à rua Santo Antônio, canto da Padre Prudêncio, achaam-se provisoriamente installados os escritórios da Companhia Port of Pará, nos quais está trabalhando com profícua actividade a comissão fiscal sob a chefia do Sr. Edgar Gordilho. Ante-hontem, esse engenheiro acompanhado dos srs. Octavio Pinto, engenheiro e ajudante, e o engenheiro Barry, representante de Percival Farquhar, estiveram em visita em Val-de-Cans, lugar que será centro do movimento das importantes obras do porto, onde será construída a villa operária destinada a dois mil trabalhadores. É intenção da companhia reunir ali todos os engenheiros e operários, de maneira que tenham tudo de que necessitem, sem precisar vir a cidade. De acordo com o Governo do Estado, o sr Ministro da Industria e Viação cedeu, provisoriamente os terrenos existentes ao Boulevard da República, entre o Ver-o-Peso e a Rampa Sacramenta, para que durante a semana entrante, iniciar-se-ão as obras da construção de um depósito para materiaes no trecho entre o trapiche do Companhia do Amazonas e a Alfândega. Alhi também será edificado um escritório de engenharia.29 29 A Província do Pará, op. cit., p. 1, grifo nosso.

A APÓLICE DA PORT OF PARÁ E SUA GRAVURA

Os trabalhos do porto foram financiados em duas divisões: a capitalização por meio de empréstimos bancários foi espalhada entre instituições de Paris, Bruxelas e Londres; e os bônus de dívida foram vendidos a investidores por meio da National Trust Company de Toronto e da Empire Trust Company de Nova York. Com o auxílio de Hector Legru, banqueiro de Paris, Farquhar fez de Paris seu principal mercado financeiro entre 1907 e 1912, em grande medida porque a cidade se especializou em financiar projetos apoiados por governos que garantiam pagamento de juros sobre o capital emprestado. O restante da primeira emissão foi feito em Londres por Robert Fleming. A seguir, fizeram uma emissão de 2,484 milhões de libras em títulos de segunda divisão pelo Banco Union Parisienne, pela gigantesca Société Générale de Paris e pelo Stallaerst & Loewenstein, de Bruxelas.30 30 Cf. Gauld, op. cit.

A apólice da Port of Pará (Figura 2) analisada neste trabalho, datada de 1920 e de número serial A41536, faz parte do acervo pessoal de Flávio Nassar.31 31 Flávio Nassar é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, a quem agradecemos a gentileza do acesso ao material. Em seu cabeçalho, circunscrita pela rebuscada moldura verde e pelo nome da empresa em tipografia destacada, apresenta-se a gravura a ser analisada (Figura 3). Constitui-se em uma visualização aérea, em perspectiva de ponto de fuga único, que representa a área portuária da cidade, com a reconfiguração e o reposicionamento de protagonistas arquitetônicos do tecido urbano da cidade, assim como o próprio redesenho da orla da cidade e a reformulação de obras urbanísticas. Desses protagonistas, destacamos: o Theatro da Paz, o Monumento à República, a Igreja da Sé, o Palácio Antônio Lemos, a Doca do Ver-o-Peso e o Boulevard da República (Figura 5). São amostras de três séculos da história de Belém, que compõem uma imagem trans-histórica e refletem diferentes contextos sociopolíticos, econômicos e artísticos dos séculos XVIII, XIX e XX. Neste trabalho, analisaremos individualmente esses protagonistas e suas representações na gravura da apólice escolhida.

Figura 4
Planta da Cidade de Belém (1905), por José Sidrim. Fonte: Acervo Flávio Nassar. Foto: Mateus Nunes, 2017.

Figura 5
Identificação dos protagonistas arquitetônicos e urbanísticos na Planta de Belém (SIDRIM, 1905), à esquerda, e na apólice (1920), à direita. Fonte: Mateus Nunes, 2018.

A apólice configura-se, portanto, como ferramenta de relações socioeconômicas, na medida em que incorpora a ideia da imagem como objeto material de uma cultura visual e, sobretudo, elenca valor à própria cidade representada. Sua moldura, em verde vivo, figura diversos elementos ornamentais frequentemente utilizados no movimento eclético, como os referidos em obras que buscaram sistematizar gramáticas ornamentais, como The Grammar of Ornament, de Owen Jones,32 32 Jones (1856). e Styles of Ornament, de Alexander Speltz.33 33 Speltz (1910). Durante o século XIX, em publicações sobre repertórios ornamentais, há um movimento historiográfico tanto de sistematizações de tipologias e origens quanto de discussões a respeito de seus usos mais apropriados nas artes. Essas obras, presentes em escolas técnicas e em bibliotecas públicas e privadas, detinham preocupação não apenas historiográfica e acadêmica, mas também serviam como manual prático ou catálogo de modelos para gravuristas, arquitetos, pintores, escultores, desenhistas, entalhadores, modelistas, marceneiros, carpinteiros, ferreiros etc. Estabelecia-se, então, uma gramática ornamental de fato. Na moldura da apólice, há o profícuo uso de folhas de acanto em formas de volutas e setas, flores e pinhas. Os elementos laterais da moldura simulam colunas torsas (também conhecidas como salomônicas), com capitéis ecléticos e bases em mísula com volutas. No coroamento, inscreve-se “UNITED STATES OF BRAZIL” e, na base, há uma composição linear em formato de florão com a inscrição “Waterlow & Sons Limited. London Wall, London, E.C.”.

No canto inferior direito da gravura principal está marcado seu valor em libras (“£20.”), acima do nome da empresa Port of Pará. É uma apólice bilíngue, em que o texto da coluna esquerda está em língua inglesa e o da direita, em língua francesa. Importante ressaltar que em que pese ser uma empresa em Belém do Pará, não há texto em português na apólice. Os textos anunciam que é uma empresa incorporada segundo as leis do estado do Maine, nos Estados Unidos da América, que opera sob concessão exclusiva do Governo Federal do Brasil. Sobre o capital, informa que o capital autorizado em ações é de 17.500.000 dólares, em ações de 100 dólares cada, divididas em ações não cumulativas de 75.000 dólares (que constitui 6% do capital anônimo) e 100.000 ações ordinárias e cumulativas. O texto descritivo principal narra, em tradução nossa:34 34 Usamos tanto o texto em inglês quanto o em francês como base para a tradução ao português.

Pelo valor recebido, PORT OF PARÁ, incorporada sob as leis do estado do Maine, EUA, promete pagar ao detentor ou, se essa apólice for registrada ao proprietário aqui registrado o total de £20 em modelas de ouro ou o equivalente ao então parâmetro de peso e fineza, no Banco da Escócia na Cidade de Londres, Inglaterra, ou nos Bancos de Paris, França, e Bruxelas, Bélgica, designados por isso, em troca de vinte e cinco francos e vinte centavos, no dia 1º de janeiro de 1957, que, enquanto isso, tem o valor na taxa de cinco por cento por ano, pagável semianualmente, apresentando e entregando os cupons aqui anexados, conforme amadurecem, no dito Banco da Escócia em Londres em igual moeda de ouro ou em Paris, Bruxelas ou Basiléia, em troca de 25.20 francos, ou em Amsterdam em troca de 12.10 florins, ou em Nova York, em troca de $4.86 23 por libra esterlina respectivamente, nas casas bancárias nos ditos lugares respectivamente, de tempo em tempo, a ser nomeado pela Companhia sem dedução de qualquer taxa ou taxas às quais a Companhia possa ser obrigada a pagar, ou reter deste momento em diante, sob qualquer lei atual ou futura, ou ordem dos Estados Unidos do Brasil ou de qualquer estado, contato ou municipalidade neles inscrita.

Esta ação é uma de uma série de ações de semelhante teor e data mas de diferente denominações, formando a principal soma agregada de £3.600.000, do qual é emitido, ou a ser emitido desta, e são igualmente asseguradas por um contrato de confiança e primeira hipoteca, datada de 16 de novembro de 1906, e feita entre Port of Pará e National Trust Company Limited de Toronto, Ontario, Canadá, cobrindo os trabalhos e propriedade compreendida na primeira divisão da primeira seção da Port of Pará, como detalhado no Artigo II, parágrafos “A” a “R” inclusos nas provisões acompanhando um certo Decreto N.5978 do Presidente da República do Brasil, datada de 18 de abril de 1906, e o direito aos procedimentos do imposto especial do ouro a ser cobrado sobre o total das importações na Port of Pará, pagável pelo Governo Federal, enquanto necessário, para fornecer interesse e amortização na expedição do capital nos trabalhos do porto, como anunciado na concessão. Por uma descrição mais completa da propriedade hipotecada, a natureza e a extensão de sua segurança, os direitos dos acionistas e os termos e condições sobre as quais as mesmas são emitidas e asseguradas, referência é direta ao dito contrato e ao dito Decreto.

O repagamento da dita emissão, da qual esta ação é parte, é adicionalmente assegurada pela operação de um fundo de amortização conforme fornecido pela dita primeira hipoteca.

Esta ação pode ser resgatada por um prêmio de cinco por cento, e interesse acumulado sobre qualquer dia ou a qualquer hora após o dia 1º de janeiro de 1917 e, em certos casos especificados, antes desta data, sob aviso prévio, como prescrito no dito contrato. O capital desta ação pode ser declarado imediatamente e pagável em certos casos pré-estabelecidos, como determinados no dito contrato. Nenhum recurso deve ser feito em nenhum caso para o pagamento do capital e interesse desta ação contra qualquer acionista, diretor ou funcionário da Port of Pará.

Essa ação deve passar por entrega, a não ser que seja registrado, de acordo com as provisões da dita hipoteca.

Essa ação é válida somente quando a dita Trust Company tiver endossado um certificado de que é uma das ações especificadas no contrato supracitado.

Caso haja alguma diferença entre as versões em Inglês e em Francês desta ação, a versão em Inglês deve governar.

A testemunha da qual a Port of Pará causou seu selo comum para ser aqui afixado, e esses prêmios a serem executados em seu nome e sob sua responsabilidade por seus funcionários, devidamente autorizados, e os cupons a serem autenticados pela assinatura em fac-símile de seu Tesoureiro, neste 1º dia de Janeiro de 1907.

A apólice é assinada (em fac-símile) no canto inferior direito por Percival Farquhar, presidente da Port of Pará, e pelo tesoureiro-assistente, cuja assinatura não nos foi legível. A apólice é acompanhada, em anexo, conforme citado no texto, por pequenos selos que devem ser apresentados e pagos pelos acionistas.

Quanto aos elementos arquitetônicos e urbanísticos representados na gravura, destacamos sua posição real na malha urbana de Belém. A partir do mapa da primeira légua patrimonial de Belém, feito por José Sidrim em 1905 (Figura 4), na gestão de Antônio Lemos, podemos observar a disposição e a orientação das obras arquitetônicas próximas ao centro irradiador da cidade. É importante atentar-se, também, para o distanciamento entre o aspecto real da orla de Belém e o da gravura. Ainda que a data da gravura (1920) e a do mapa (1905) distem 15 anos, o mapa é o documento cartográfico oficial mais próximo cronologicamente e nele já atesta-se todas as obras que destacamos na análise (Figura 5). A cartografia de Belém só é beneficiada com outro mapa oficial em 1955, desenvolvido pela Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), órgão instituído por Getúlio Vargas em 1953, posteriormente substituído pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). O vazio cartográfico desse período de 50 anos pode ser explicado pelo declínio da economia gomífera em Belém: o fluxo de capital e as grandes obras de infraestrutura urbana estagnaram após o boom da Belle Époque, o que resultou na recessão da produção cartográfica.

AS IMAGENS MOVIMENTADAS: OS PROTAGONISTAS ARQUITETÔNICOS E URBANÍSTICOS NA GRAVURA

Theatro da Paz

O Theatro da Paz, um dos principais símbolos arquitetônicos relacionados diretamente à Era da Borracha em Belém, foi inaugurado em 15 de fevereiro de 1878 com a apresentação do drama As duas órfãs de Adolphe Phillipe d’Ennery. Com características do ecletismo de forte influência neoclássica, o Theatro foi construído entre 1869 e 1874 e passou por ampla remodelação entre 1904 e 1905,35 35 Cf. Souza (2010). responsável pelo aspecto atual da edificação. Essa intervenção, ocorrida no governo municipal de Augusto Montenegro e no de Antônio Lemos, entre outras mudanças significativas no Theatro, foi responsável pelo recuo do frontão e pela emblemática troca do número de colunas na fachada principal: de sete, no projeto original, para seis, após reforma, mais alinhado aos cânones clássicos. Não somente a fachada foi alterada na intervenção, como também houve a remodelação do palco e da sala de espetáculos, conforme o modelo italiano; a introdução de vários elementos ornamentais, tanto no interior quanto no exterior; e a atualização do sistema de iluminação elétrica.36 36 Ibidem, p. 98.

Na gravura da apólice, há uma fusão dos dois momentos na representação do Theatro: embora sejam seis as colunas sob o frontão da fachada principal, o que representa a edificação após a reforma inaugurada em 1905, apresenta o frontão ainda não recuado, configurando-se como um alpendre cuja área de cobertura corresponde à da inauguração inicial de 1878, faceando o limite frontal da edificação. Na reforma inaugurada em 1905, esse alpendre foi retirado, já que o frontão foi recuado, e foram implementados uma colunata de seis colunas e um terraço descoberto com guarda-corpo em balaustrada. A representação do Theatro da Paz na gravura (Figura 6) constitui-se, então, como uma representação híbrida trans-histórica que mescla aspectos da edificação de duas épocas diferentes (Figuras 7, 8 e 9).

Figura 6
Theatro da Paz na gravura da apólice da Port of Pará (recorte). Fonte: Acervo Flávio Nassar. Foto: Mateus Nunes, 2019.

Figura 7
Theatro da Paz atualmente, após a reforma de 1904. Destaque para o frontão recuado e o número de colunas na fachada principal (seis). Fonte: Foto de Mateus Nunes, 2020NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. O Boulevard da República: um boulevard cais na Amazônia. Curitiba: Appris, 2020..

Figura 8
Theatro da Paz em 1898. Destaque para o frontão ainda ressaltado. Fonte: Souza (2010SOUZA, Roseane Silveira de. Teatro da paz: histórias invisíveis em Belém do Grão-Pará. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 93-121, 2010. Doi: <https://doi.org/10.1590/S0101-47142010000200003>.
https://doi.org/10.1590/S0101-4714201000...
, p. 95).

Figura 9
Theatro da Paz em 1898. Destaque para o número de colunas na fachada principal (sete). Fonte: Souza (2010SOUZA, Roseane Silveira de. Teatro da paz: histórias invisíveis em Belém do Grão-Pará. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 93-121, 2010. Doi: <https://doi.org/10.1590/S0101-47142010000200003>.
https://doi.org/10.1590/S0101-4714201000...
, p. 96).

Monumento à República

Na gravura, em frente ao Theatro, é representado o Monumento à República (Figura 10), situado na Praça da República. Escolheu-se representar apenas o monumento e não o todo do traçado da praça. Inaugurado em 15 de novembro de 1897, com altura de 22m, foi resultante de um concurso - divulgado no Brasil e na Europa por meio de jornais de grande circulação - que contou com ampla presença de participantes italianos: o vencedor foi o escultor genovês Michele Sansebastiano.37 37 Michele Sansebastiano (1852-1908) foi um escultor italiano, formado pela Academia de Gênova, posteriormente pupilo de Augusto Rivalta em Florença. Produziu esculturas predominantemente em estuque e terracota, em território italiano. Sobre uma coluna dórica encontra-se Marianne, símbolo francês de representação da República. Segundo Soares, “o projeto original previa que ela empunhasse um ramo de oliveira, mas o símbolo foi considerado pacifista, do ponto de vista militar, e substituído pela espada”.38 38 Soares (2009, p. 152). Há outras figuras representadas na base da coluna e no pedestal do monumento, como gênios, um leão e uma mulher que representa a História, bem como nomes de defensores dos ideais republicanos no Brasil, como Tiradentes, Floriano Peixoto, José Bonifácio e Benjamin Constant (Figura 11).

Figura 10
Monumento à República na gravura da apólice da Port of Pará (recorte). Fonte: Acervo Flávio Nassar. Foto: Mateus Nunes, 2019.

Figura 11
Monumento à República, na Praça da República, em Belém. Fonte: Foto de Mateus Nunes, 2020NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. O Boulevard da República: um boulevard cais na Amazônia. Curitiba: Appris, 2020..

Na gravura da apólice (Figura 10), o monumento, em comparação às escalas humanas próximas, é ainda agigantado, representado com dimensões bem maiores e menos fidedignas ao real. Os degraus que estão na base do monumento real, elementos mensurados a partir da escala humana de passo, não são representados na gravura. O agigantamento desse protagonista enfatiza os ideais de renovação, revolução e liberdade inerentes ao pensamento republicano, promovendo a noção de “novos tempos” e de uma nova Belém Republicana.

Igreja da Sé

A Igreja da Sé (Figura 14), também conhecida como Catedral de Belém, situa-se no Centro Histórico da cidade, bem próximo a outros protagonistas arquitetônicos que cercam a praça D. Frei Caetano Brandão, como o Forte do Castelo, a Casa das Onze Janelas - antigamente Hospital Militar - e o Complexo Jesuítico de Santo Alexandre, que, juntamente com outros bens patrimoniais, constitui o Complexo Feliz Lusitânia. Simboliza outro período marcante da história da cidade, a Belém setecentista, que ainda vivenciava a forte atuação colonial de Portugal. Sua construção foi marcada por diversas interrupções, intervenções e passagens de diversos artistas e construtores, tanto em seu exterior quanto interior, predominantemente durante a segunda metade do século XVIII. Destacamos a intervenção do arquiteto bolonhês Antônio José Landi,39 39 Antônio José Landi (1713-1791) foi um arquiteto, desenhador, cenógrafo e naturalista formado pela Academia Clementina, em Bolonha, com marcante atuação na Amazônia Colonial. Chegou em Belém em 1753 com a comissão portuguesa de demarcação de fronteiras do Tratado de Madri, com a função de desenhador. Desempenhou o papel de arquiteto em serviço à Coroa, a ordens religiosas, comerciantes e senhores de terra, e concebeu vasta obra civil, oficial e religiosa. um dos maiores protagonistas da história de Belém, que imprimiu sua assinatura em diversas obras na cidade.

Figuras 12a e 12b
Prospecto da Cidade de Bellem, do Estado do Gram Para, desenho a pena de João André Schwebel, 1753. Prospecto integral (à esquerda) e recorte evidenciando a ainda incompleta Igreja da Sé (à direita). Fonte: Schwebel (1756SCHWEBEL, João André. Collecçam dos prospectos das aldeas, e lugares mais notaveis que se acham em o mapa que tiraram os engenheiros de expediçam principiando da cidade do Pará the a aldeã de Mariua no Rio-Negro, onde se acha o arrayal, alem dos prospectos de outras tres ultimas aldeas chamadas Camarâ, Bararuâ, Dari; situadas no mesmo rio. [S. l.: s. n.], 1756.); Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Figura 13
Igreja da Sé na gravura da apólice da Port of Pará (recorte). Fonte: Acervo Flávio Nassar. Foto: Mateus Nunes, 2019.

Figura 14
Fachada principal da Igreja da Sé. Fonte: Foto de Mateus Nunes, 2020NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. O Boulevard da República: um boulevard cais na Amazônia. Curitiba: Appris, 2020..

Na gravura da apólice (Figura 13), parte da fachada principal da Sé é encoberta em perspectiva pelo posicionamento do Palácio Antônio Lemos logo à frente da Igreja, o que dá destaque à segunda fileira de janelas e ao coroamento da fachada. Tal recorte faz com que o trabalho de Landi seja ainda mais ressaltado, pois a intervenção de Landi deu-se na retomada das obras da Igreja em 1766, no governo de Ataíde Teive, após interrupção das obras por 5 anos.40 40 Cf. Trindade (2017). Em prospecto desenhado por João André Schwebel,41 41 João André Schwebel (Johann Andreas Schwebel [1718-1759/1760]) foi engenheiro militar, cartógrafo e capitão alemão, integrante da comissão de demarcação do Tratado de Madrid. Estudou na Universidade da Cidade Livre do Império em Nuremberg (Universidade de Altdorf). É autor do conhecido mapa de Belém de 1753. em 1753, ano de chegada em Belém da comissão que Landi integrava, observa-se a fachada da Igreja ainda incompleta (Figuras 12a e 12b).

Em carta do bispo D. Frei Miguel de Bulhões à Corte, de fevereiro de 1759, envia-se a Portugal desenhos para a Sé de Belém, de autoria de Landi,42 42 Cf. Mendonça (2003). Sobre a autoria: “Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro guarda-se um conjunto de desenhos referentes à sé, provavelmente aqueles que o bispo do Pará enviou à corte. Destes desenhos, apenas um está assinado por Landi - o que representa o retábulo do Santíssimo -, mas o traço utilizado e a grafia das legendas identificam um mesmo autor” (MENDONÇA, 2003, p. 358). o que denota o marco inicial da intervenção de Landi na Catedral. Importante ressaltar a presença marcante dos pináculos - também conhecidos como obeliscos piramidais - na área do coroamento acima da grande cimalha da fachada principal da Catedral. Esses elementos são uma das imagens que repetidamente se movimentam nas obras de Landi, com destaque para as gravuras dedicadas a Sant’Ana e para o arco triunfal dedicado a D. João III. A presença da Igreja da Sé na gravura da apólice da Port of Pará enfatiza a áurea memorialista de Belém no século XVIII e atesta a longevidade histórica da cidade que, no momento da confecção da gravura analisada, já completava quase 300 anos.

Palácio Antônio Lemos

O Palácio Antônio Lemos (Figura 16), inicialmente chamado de Paço Municipal, foi idealizado pelo Presidente Antônio Coelho de Sá e Albuquerque e construído no século XIX para ser sede do poder da província e de sua capital. Abrigaria instituições como a Assembleia Provincial, a Câmara Municipal, o Tesouro Público Provincial e as Obras Públicas. O projeto de José Coelho da Gama e Abreu43 43 José Coelho da Gama e Abreu (1832-1906) recebeu o título de Barão de Marajó e manteve-se no poder ao longo da vida desempenhando diferentes cargos públicos durante os períodos imperial e republicano. Iniciou a carreira em 1855 como Diretor das Obras Públicas no Pará; foi presidente das Províncias do Pará e do Amazonas e Deputado; e foi o primeiro Intendente republicano da cidade de Belém. Terminou sua carreira como Senador estadual em 1906, ano de sua morte. Divulgador dos interesses da Amazônia na Europa, foi representante do Pará na Exposição Universal de Paris em 1889 e na Exposição Universal de Chicago em 1893. data de 1860 e caracteriza-se pelo ecletismo com predominância do neoclassicismo tardio. Em 1862, foram concluídos os alicerces, faltando apenas os cubos ou castelos de engenharia em que deveriam ser assentadas as colunas.44 44 Pará (1862). A obra continuou no governo de Abel Graça, época em que o Paço sofreu modificações nos planos originais, com a demolição dos entrecolúnios dos pátios interiores para maior solidez do edifício.45 45 Id., 1871. Apenas no final do governo de José Coelho da Gama e Abreu, em 1881, foram realizadas as obras de acabamento primoroso do Palácio, como as de pedreiro, carpinteiro, pintor e estucador. Estavam concluídos, então, a escada monumental e os acabamentos do terraço e pórtico.46 46 Id., 1881.

Figura 15
Palácio Antônio Lemos na gravura da apólice da Port of Pará (recorte). Fonte: Acervo Flávio Nassar.

Figura 16
Fachada principal do Palácio Antônio Lemos. Fonte: Foto de Mateus Nunes, 2020NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. O Boulevard da República: um boulevard cais na Amazônia. Curitiba: Appris, 2020..

Em 1902, Antônio Lemos reformula o Palácio e a ele acrescenta revestimentos, móveis e objetos da moda europeia assinados por mestres como Giovanni Capranesi (1852-1936), Domenico De Angelis (1852-1900) e Teodoro Braga (1872-1953). A fachada principal tem uma composição horizontal com uma massa homogênea, estética característica da arquitetura eclética, com predominância do neoclássico tardio. Seus dois pavimentos contêm um conjunto de cornijas formadas por frisos com tríglifos, métopas lisas, dentículos e lacrimais (ou gotas). A cornija conformava a cobertura propriamente dita, constituída por três frontões triangulares com tímpanos desprovidos de ornamentos, decorados com acrotérios assentados em cada ponta dos triângulos, totalizando nove estatuetas humanas.

No primeiro pavimento do corpo central do Palácio, apresenta-se um corpo avançado constituído por colunas dóricas incrustadas no pórtico de entrada, composto de três arcos frontais e dois laterais de acesso, encimados pelo mesmo friso. No segundo pavimento, há um terraço descoberto sobre o pórtico, com guarda-corpo em balaustrada. O fundo do terraço é arrematado por pilastras embutidas, intermediadas por três janelas francesas de frontões semicirculares alinhadas aos pórticos do primeiro pavimento. As aberturas que flanqueiam o corpo principal totalizam quatorze janelas em cada lado do pórtico, todas em arco abatido, de modo que as janelas do segundo pavimento têm guarda-corpos entalados. A partir dessa reforma, que ainda configura o aspecto da fachada atual, o Paço passou a se chamar Palácio Antônio Lemos, também popularmente conhecido como Palacete Azul.

É interessante perceber que na gravura (Figura 15) escolhe-se representar o Palácio do Poder Municipal, do século XIX, eclético, e não o do Poder Estadual, ao seu lado, do século XVIII, de um tardo-barroco italiano. Tal escolha pode ter sido motivada por uma tentativa de consagração de Belém como uma cidade com protagonismo individual na modernidade, que se desvincula da notoriedade do Pará como estado, usualmente atrelada ao Período Colonial. Belém destacar-se-ia, então, como um polo de desenvolvimento moderno na gramatura das metrópoles mundiais, como Paris e Londres. Essa escolha representacional também pode enfatizar os importantes vínculos estabelecidos com o Poder Municipal decorrentes dos acontecimentos e obras desenvolvidas nesse período, principalmente referentes às negociações, parcerias e concessões estabelecidas entre as grandes empresas estrangeiras e a gestão municipal.

Boulevard da República e Doca do Ver-o-Peso

O Boulevard da República e a Doca do Ver-o-Peso são espaços que conversam entre si (Figuras 18 e 20). Inicialmente, a Doca do Ver-o-Peso, urbanizada no momento da construção do porto de Belém, era o antigo Alagado do Piri. Adentrando a cidade nos princípios do século XIX, ainda era possível visualizar o Alagado do Piri, registrado por Baena47 47 Baena (1969, p. 254). como um “[…] terreno de alluvião muito baixo inteiramente horisontal, em que duas vezes por dia penetrão livremente as águas da preamar”. O Piri, trecho de terreno devoluto, era muito extenso e terminava na Estrada das Mongubeiras (hoje a Av. Almirante Tamandaré); após o trabalho do Conde dos Arcos, foi drenado por meio de valas e guarnecido com avenidas de belas árvores, no único logradouro da cidade: “as mongubeiras […] e as sumaumeiras […], as árvores-do-pão australianas […], as mangueiras […], os mombins […] cresceram em dois decênios, dando troncos frondosos e enfeitam a região aprazível onde existem algumas chácaras esparsas”.48 48 Spix (1981, p. 23-24). As obras de “exsicação” do Piri, aterrado por volta das décadas de 1830 e 1840, demandaram vários anos.

Figura 17
Boulevard da República na gravura da apólice da Port of Pará (recorte). Fonte: Acervo Flávio Nassar.

Figura 18
Boulevard da República, no início do século XX. Fonte: Biblioteca Digital Fórum Landi.

Figura 19
Doca do Ver-o-Peso na gravura da apólice da Port of Pará (recorte). Fonte: Acervo Flávio Nassar. Foto: Mateus Nunes, 2019.

Figura 20
Doca do Ver-o-Peso no início do século XX. Fonte: Acervo Marcia Nunes.

O Boulevard da República surge no período de 1906 a 1912, momento da construção do Porto de Belém, quando Farquhar acatava as solicitações e normas da Comissão Fiscal das Obras do Porto de Antônio Lemos para sua construção. Isso acontece no período do grande advento da borracha, quando Lemos implanta em Belém um ideário de modernidade. Sob essa concepção, executa-se a urbanização das margens da Baía do Guajará, antigo espaço destinado a acostamento de embarcações da Província do Grão-Pará, denominado então de Rua Nova do Imperador, até sua transformação no Boulevard da República. Ao discorrer sobre a ideia de boulevard, remetemo-nos imediatamente a Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) por ter elaborado esse elemento estruturante do urbanismo parisiense, que se estendia como uma grande reta e realçava uma perspectiva ligada por monumentos, o que garantia uma amplitude espacial que valorizava o paisagismo urbano.

Além de longa, o boulevard era uma via de boa largura, ladeada por calçadas arborizadas onde se misturavam seus transeuntes residentes e comerciantes, seus dândis e flâneurs, que faziam dessa rua um cenário dotado de uma estética refinada e glamorosa, fartamente iluminado, com edificações de gabarito homogêneo, além de muitos equipamentos urbanos em ferro fundido em estilo Art Nouveau incrustados em espelhos, vitrines e vidros que refletiam o esplendor desenvolvimentista moderno e cosmopolita da Belle Époque. Antônio Lemos adota esse modelo urbano haussmanniano corporificado em sua transformação e na nova forma estruturante do Boulevard da República.

Apesar da bifurcação do boulevard próxima à Tv. Leão XII até a Tv. 15 de Agosto, ainda hoje é possível apreciar seus monumentos sob a perspectiva que se descortina a partir da Tv. da Companhia, com o Mercado de Ferro, até a Tv. 15 de Agosto, com a edificação emblemática da Port of Pará. Dispõe de calçadas arborizadas nos espaços públicos abertos e ajardinados, apresenta homogeneidade nas fachadas dos sobrados de arquitetura eclética e seus materiais são utilizados em razão da funcionalidade. Conta com infraestrutura e serviços urbanos instalados, assim como mobiliários urbanos. Nunes denomina o Boulevard da República como “boulevard-cais”,49 49 Cf. Marcia Nunes (2020). um boulevard que convergia todo seu olhar à Baía do Guajará, no qual foi alocado o porto da cidade e onde continuaria a ser o local de entrada e saída de pessoas e das mais diversas mercadorias. O glamour desse “boulevard-cais” seria diferente em Belém: em lugar das vitrines chiques com seus espelhos e vidros, entrariam em cena o porto e os mercados da cidade - o Mercado de Peixe e o Mercado de Carne -, que o configurariam como um empório comercial.

No entanto, notamos que, na gravura, escolhe-se reposicionar o Boulevard da República (Figura 17), de modo que figura como protagonista não mais a Baía do Guajará, mas as obras arquitetônicas analisadas neste trabalho. Ao caminhar por esse boulevard idílico, o flâneur podia observar os protagonistas artísticos e arquitetônicos da cidade, arranjada como uma vitrine parisiense que ostenta orgulhosamente seus ícones de modernidade urbana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A DIALÉTICA SEMIOLÓGICA E O RIZOMA HISTÓRICO-IMAGÉTICO

A dialética semiológica50 50 Por dialética semiológica, compreendemos uma dinâmica simbólica e comunicacional ambígua, que ao mesmo tempo que cria um discurso novo, faz uma leitura de narrativas pregressas. Dessa forma, é uma dinâmica como a de um cabo de guerra puxado dos dois lados simultaneamente, por desempenhar papéis de atividade e de passividade, ou de emissão e recepção. estabelecida pela poética deste conjunto de imagens opera em dois fluxos principais: um de introdução e outro de absorção das imagens produzidas, fluxos indissociáveis e contínuos cujas relações causal e consequencial operam de forma dinâmica e rizomática.51 51 O rizoma é um modelo epistemológico que entende a conexão das coisas e das ideias de modo complexo, ambíguo e emaranhado, diferentemente do modelo hierárquico em árvore que se utiliza do pensamento moderno e positivista. Visa embarcar as novas dinâmicas de fluxo da pós-modernidade/contemporaneidade. Conforme Mateus Nunes (2020, p. 221): “Sobre o rizoma como estrutura epistemológica em [Gilles] Deleuze e [Félix] Guattari: ‘[…] and including the research undertaken with Guattari where we invoked a vegetal model of thought the rhizome in opposition to the tree, a rhizome-thought instead of an arborescent thought’ (Deleuze, 1994, p. XVII)”. Tradução minha: “‘[…] e incluindo a pesquisa empreendida com Guattari onde invocamos um modelo vegetal de pensamento: o rizoma em oposição à árvore, um pensamento-rizoma ao invés de um pensamento arborescente’”. Isso permite compreender o fluxo complexo e ambíguo dos elementos semiológicos e comunicativos por meio do processo linguístico de escrileitura.52 52 “[…] escrileitura como um texto que reivindica uma postura multivalente de coautoria entre leitor e escritor para tornar-se, dessa maneira, um exercício de pensamento. A concepção de escrita-pela-leitura (e de leitura-pela-escrita) supõe textos permanentemente abertos às interferências do leitor e, logo, sempre escrevíveis de múltiplos modos e traduzíveis para diferentes línguas” (CORAZZA et al., 2014, p. 1031). O vetor (embora rizomático…) de introdução se estabelece ao compor, a partir de uma narrativa visual, um sonho-devir de progresso53 53 Sobre os modelos de urbanismo progressista referidos, cf. Choay (1999). em uma cidade na periferia do capitalismo que vivia a experiência do zeitgeist moderno característico do cenário da Europa ao longo do século XIX.

Objetivando representar a cidade a partir de projeções de desenvolvimento, progresso e utopia, a representação maneja, por meio de um movimento trans-histórico, personagens arquitetônicos e urbanísticos marcantes em diversos períodos da história da cidade. Gráfica e ideologicamente, o gesto de desenho acarretado pela reconfiguração da orla da cidade de Belém segundo esses princípios aproxima o debate à utopia da “cidade ideal” do Renascimento italiano, representada em obras como a Città ideale (1480-1484) (Figura 21), atribuída ao pintor italiano Fra Carnevale (c. 1420/1425-1484). Morfológica e visualmente, a cidade ideal se pauta, com base em princípios cenográficos, na composição urbana a partir do ordenamento estratégico, simétrico e harmônico de protagonistas arquitetônicos. Escolhe-se a perspectiva de ponto de fuga único para a representação, por permitir expressar visualmente esses valores. O uso dessa teatralidade, com seus princípios de simetria, harmonia, equilíbrio e clareza na percepção visual da cidade, funciona como ferramenta comunicacional e cenográfica de conformação idílica e utópica, tanto de uma sociedade quanto de uma cidade, de acordo com um senso artístico e estético.

Figura 21
Cidade ideal atribuída a Fra Carnevale, 1480-1484. Fonte: <https://bit.ly/3AYmIyy>.

Esse ideário de modernidade de impulso desenvolvimentista alimentava a sociedade e produzia incessantes imagens que ideologicamente galgavam essa metamorfose estruturalmente ilusória da constituição em plena Amazônia de uma cidade fundamentada na realidade e nos costumes europeus. Embora hoje muito contestada por revisões decolonialistas, a supervalorização e a importação de ideais estrangeiros, principalmente europeus, em cenários geográfica e culturalmente tão distantes, representavam a ferramenta ideológica de progresso socioeconômico que se impunha àquela realidade de mundo.

A constituição de uma narrativa da cidade naquele contexto histórico encontra-se também nos Relatórios de Antônio Lemos, intendente municipal de Belém entre 1897 e 1911. Os relatórios, metodicamente organizados, embora sejam registros da administração de serviços, de relatórios de obras e de legislação urbanística e edilícia, serviam também como veículo de propaganda política dos projetos, das obras promovidas, da vida social de Lemos e, consequentemente, dos ideais desenvolvimentistas.54 54 Cf. Lima, Eiró e Nunes (2017). Tais estratégias e ações corroboravam a criação de uma narrativa visual do triunfante período histórico da cidade, operando diversos mecanismos comunicacionais, como os relatórios e as grandes obras públicas. Quanto às obras da administração municipal, esses ideais, que também celebravam o progresso técnico-industrial, abordam principalmente as ações estéticas de “embelezamento urbano”:

O termo “embelezar” tem enorme ressonância no discurso propagandístico da época. Designa, mais do que a imposição de novos valores estéticos, a criação de uma nova fisionomia arquitetônica para a cidade. Encobre, por assim dizer, múltiplas “estratégias”. A erradicação da população trabalhadora que residia na área central; […] a mudança de função do centro, atendendo - num plano mais imediato - aos interesses especulativos que cobiçavam essa área altamente valorizada e - num plano mais geral - às exigências da acumulação e circulação do capital comercial e financeiro; razões ideológicas ligadas ao “desfrute” das camadas privilegiadas; razões políticas decorrentes de exigências específicas do Estado republicano em relação àquela cidade que era a sede do poder político nacional.55 55 Benchimol (1992, p. 228).

Isso reverberava em diversas camadas da sociedade, desde seus posicionamentos políticos e obras de grandiosa escala, até os detalhes da vida privada, com suas interações sociais e motivos comportamentais. Refletia em diversos aspectos: as modas, os alimentos, as cerimônias, os costumes, os protocolos sociais, os modos de falar, as diretrizes estéticas, os catálogos de diversas naturezas, as ferramentas legislativas, os programas distributivos dos edifícios, as formas de morar, etc. O outro fluxo da dialética semiológica dessas imagens opera, então, na absorção de seus ideais e na constituição de uma memória social ou coletiva - ou, como propõe Warburg, no engrama.56 56 “Para que se possa penetrar a fundo nas fases críticas do desenrolar desse processo, ainda não se utilizou plenamente, na interpretação dos documentos, esse expediente do conhecimento, a saber, a função polar da figuração artística entre a fantasia imersiva e a razão emersiva - algo possível por estar documentado na configuração das imagens. Entre a apreensão imaginária e a visada conceitual está o tateio no manusear do objeto, com o subsequente espelhamento na escultura ou na pintura, que se usa denominar “ato artístico”. Essa duplicidade entre a função anticaótica (que pode ser assim chamada, uma vez que a forma da obra de arte realça a unidade de modo seletivo e com clareza de contornos) e a entrega ao ídolo criado (que requer o olho do observador, e está culturalmente arraigada) é formada pelos apuros do homem espiritual, que precisariam constituir o objeto próprio de uma ciência da cultura que escolhesse como tema a história psicológica ilustrada do espaço intermediário entre o ímpeto e a ação” (WARBURG, 2015, p. 365). Constituía-se, então, um ciclo de permanente abastecimento e consumo de imagens propagandísticas que vinculavam uma metrópole republicana ao molde parisiense.

É importante discutir a influência fundamental que essas imagens e constituições de ideais idílicos desempenham na prática historiográfica sobre esse período da história de Belém. Trata-se de uma narrativa composta por uma áurea quase mágica, com uma série de protagonistas fabulosos em meio a um cenário de sonho europeu: uma cidade que “quase deu certo” - aos moldes eurocêntricos -, cuja conversão por pouco não a transformou, de fato, em uma Paris n’América. Usualmente, a própria historiografia sobre esse período se constitui de maneira saudosista e memorialista, materializando imagética e historicamente uma Belém nostálgica, mas parcial e seletiva, na qual se celebrava os aspectos idílicos e sonhadores e se negligenciava os setores e serviços precários da cidade. Vale lembrar que as imagens que ilustram e fundamentam essa prática historiográfica são instrumentos comunicacionais, propagandísticos: interpretados sob a ferramenta comunicacional de “intencionalidade performativa”, são dispositivos de representação de poder que escolhem o que omitir e o que exibir. A produção de imagens com esse caráter utópico e progressista que constitui o “discurso sobre a Era da Borracha” claramente intenciona perpetuar as ideologias correntes por meio da constituição de uma Belém virtual na realidade, arcando com suas consequências sociais, historiográficas, ideológicas e no imaginário social. Sobre essa dimensão melancólica no imaginário social, Castro sabiamente propõe o conceito de “semiotical blues”:

Percebi ser notável a repetição de determinados feixes semióticos, ou conjuntos de signos evocativos de um “passado-látex”. Notei também que esses feixes eram permeados por uma dimensão algo mítica/mística contingenciadora das saudades do passado-látex: uma melancolia leve, enunciatória e indicial. A sensação do moderno experimentada por Belém, há algumas gerações, interpunha-se, ainda presentemente, na intersubjetividade da cidade. Em certos setores sociais, notadamente mais bem situados economicamente e culturalmente - ou seja, a campos da sociedade que conservaram a memória de uma experiência de modernidade mais ativa do ciclo do látex, essa memória era mais visível. Porém, no correr da pesquisa, ficou claro que essa figuração do moderno havia se disseminado na contemporaneidade da cidade, tendo engendrado códigos estéticos, políticos e de convívio social que escapavam à percepção exclusiva de uma camada da sociedade para se generalizarem, como possibilidade de leitura, pelo espaço geral da intersubjetividade local. Batizei esses feixes de significados - ou melhor, essa sedimentação de uma sensação peculiar de experimentar a modernidade, ou, ainda, essa figuração social, de semiotical blues. O termo não deixará de ter ironia. Refere-se a uma sensação alegórica de sentir a modernidade, própria às periferias do capitalismo no final do século XIX. Associa-se a uma forma de colonialismo particular desse momento de construção de um sistema-mundo e à recepção de uma estética fabril marcada por sedimentações peculiares da mercadoria e do dinheiro como formas de fetiche.57 57 Castro (2010, p. 30-31, grifo do autor).

Essa realidade historiográfica tem se alterado na contemporaneidade com o advento de novas concepções epistemológicas em resposta aos novos paradigmas informacionais. No caso específico da experiência moderna de Belém na transição entre os séculos XIX e XX, tem-se contestado tais práticas historiográficas sob diferentes perspectivas. Tanto a partir do viés decolonialista, que rompe com a concepção faustosa de desenvolvimento pungente de Belém de matriz eurocêntrica, certamente não adequada em sua totalidade a uma cidade amazônica, latino-americana, às periferias do capitalismo; quanto a partir do questionamento dos aspectos positivistas de adoção de fontes documentais primárias como fatos ocorridos, a despeito dos quais procura-se avaliar essas imagens e informações quanto à potência de suas subjetividades e de seus aspectos literários, comunicacionais e semiológicos.

FONTES IMPRESSAS

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  • WARBURG, Aby. Introdução à mnemosine. In: História de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 363-375.
  • 4
    Berman (1986BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986., p. 15).
  • 5
    Benjamin (2006BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006., p. 41).
  • 6
    Antônio José de Lemos (1843-1913), maranhense, em sua trajetória política, candidatou-se a vários cargos eletivos, além de ter governado a cidade de Belém por 14 anos, de 1897 a 1911, durante o apogeu da borracha. Também jornalista e proprietário do jornal A Província do Pará, fez publicar sete relatórios em que descreve, em tom pessoal, todas as ações do executivo municipal empreendidas entre 1897 e 1908 (NUNES, Marcia, 2017NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. Rumo ao Boulevard da República: entre a cidade imperial e a metrópole republicana. 2017. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2017., p. 226-227).
  • 7
    Pinon (1995PINON, Pierre. L’haussmannisation: réalité et perception en Europe. In: LORTIE, Andre (ed.). Paris s’exporte: architecture modèle ou modèles d’architectures. Paris: Pavillon de l’Arsenal-Picard, 1995.).
  • 8
    Cf. Marcia Nunes, op. cit. O Código de Polícia Municipal foi instituído pela Lei n. 276 de 03 de julho de 1900 pelo intendente municipal. Tinha como objetivo precípuo o disciplinamento dos hábitos e costumes de todos os munícipes, principalmente das populações que moravam nos subúrbios, pois os moradores destas áreas também eram vistos pelo centro da capital. Estabelecia direitos e deveres, assim como todos os serviços da comuna. Era orientado por dois princípios formais que, na prática, eram comumente associados: o de higiene e o das normas estéticas (NUNES, Marcia, 2017NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. Rumo ao Boulevard da República: entre a cidade imperial e a metrópole republicana. 2017. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2017., p. 287-288).
  • 9
    Sarges (2010SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1910). Belém: Paka-Tatu, 2010.).
  • 10
    O Paiz (1909O PAIZ. Rio de Janeiro: [s. n.], 3 nov. 1909. Ed. 9161., p. 6).
  • 11
    Ibid.
  • 12
    Cf. Marcia Nunes, op. cit., 2017.
  • 13
    Cf. Lima, Nunes e Eiró (2018LIMA, José Júlio; NUNES, Mateus Carvalho; EIRÓ, Jorge. Cidade, imagem, embelezamento: desenhos em perspectiva dos planos urbanísticos para Belém. Arquitextos, São Paulo, v. 19, n. 221.02, 2018.).
  • 14
    Percival Farquhar (1864-1953), um dos mais persuasivos empreendedores do ramo ferroviário na história econômica das Américas, nasceu em York, no estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, filho de quacres. Farquhar chegou ao Brasil em 1904 e trabalhou incessantemente até o início dos anos de 1950. Por todo o país, atuou nas áreas de bondes, ferrovias, navegação, portos, hidrelétricas, criação de gado, frigoríficos, colonização de terras, extração e comercialização de madeira, fabricação de celulose e papel e, nos últimos tempos, minério de ferro e siderurgia (Gauld, 2006GAULD, Charles A. Farquhar, último titã: um empreendedor americano na América Latina. São Paulo: Cultura, 2006., p. 31).
  • 15
    Cf. Duarte (1997DUARTE, Cristóvão. Belém do Pará, na virada do século XIX: modernidade no plano urbanístico de expansão da cidade. 1997. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997.).
  • 16
    Júnior (2000JÚNIOR, Peregrino. Chegada de um peregrino. In: MARANHÃO, Haroldo. Pará, capital: Belém: memórias & pessoas & coisas & loisas da cidade. Belém: Supercores, 2000., p. 346, grifo nosso).
  • 17
    Cf. Brasil (1906aBRASIL. Decreto nº 5.978, de 18 de abril de 1906. Concede ao engenheiro Percival Farquhar autorização para executar as obras de melhoramento do porto de Belém, no Estado do Pará. Diário Official, [s. l.], p. 2392, 8 maio 1906a.).
  • 18
    Cf. Brasil (1906bBRASIL. Decreto nº 6.283, de 20 de dezembro de 1906. Concede autorização á Companhia “Port of Pará” para funccionar na Republica. Diário Official, [s. l.], p. 7191, 26 dez. 1906b.).
  • 19
    Decreto nº 6.283, de 20 de dezembro de 1906, que definiu o funcionamento da Companhia Port of Pará, de capital privado e estrangeiro, como concessionária do porto.
  • 20
    Cf. Companhia Docas do Pará (1977COMPANHIA DOCAS DO PARÁ. Porto de Belém. Belém: [s. n.], 1977.).
  • 21
    Muitos navios preferiam o porto de Manaus para evitar a taxa-ouro de 2% coletada pelo porto do Pará. Isso preocupava Farquhar que, com objetivo de igualar Pará e Manaus, conseguiu das autoridades federais o Decreto nº 8.045 de 02 de junho de 1910 (Gauld, 2006GAULD, Charles A. Farquhar, último titã: um empreendedor americano na América Latina. São Paulo: Cultura, 2006., p. 142).
  • 22
    A certidão de organização da companhia data de 12 de novembro de 1906, enquanto a aprovação do Decreto nº 6.283 data apenas de 20 de dezembro de 1906 (Penteado, 1973PENTEADO, Antonio Rocha. O sistema portuário de Belém. Belém: UFPA, 1973., p. 74).
  • 23
    Gauld, op. cit.
  • 24
    Os planos de melhoramento do novo cais de Belém foram elaborados pela firma inglesa S. Pearson & Sons, construtora dos portos de Liverpool, Londres e Vera Cruz.
  • 25
    Gauld, op. cit.
  • 26
    Cf. Marcia Nunes, op. cit.
  • 27
    Cf. A Província do Pará (1906A PROVÍNCIA DO PARÁ. Belém: [s. n.], 28 abr. 1906.).
  • 28
    Cf. Furtado (2015FURTADO, Luciana Martins. Nas pedras do caes: cidade, cotidiano e trabalho - Belém do Pará (1852-1912). 2015. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2015.).
  • 29
    A Província do Pará, op. cit., p. 1, grifo nosso.
  • 30
    Cf. Gauld, op. cit.
  • 31
    Flávio Nassar é arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, a quem agradecemos a gentileza do acesso ao material.
  • 32
    Jones (1856JONES, Owen. The grammar of ornament. London: Day and Son, 1856.).
  • 33
    Speltz (1910SPELTZ, Alexander. Styles of Ornament. Leipzig: Brockhaus, 1910.).
  • 34
    Usamos tanto o texto em inglês quanto o em francês como base para a tradução ao português.
  • 35
    Cf. Souza (2010SOUZA, Roseane Silveira de. Teatro da paz: histórias invisíveis em Belém do Grão-Pará. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 93-121, 2010. Doi: <https://doi.org/10.1590/S0101-47142010000200003>.
    https://doi.org/10.1590/S0101-4714201000...
    ).
  • 36
    Ibidem, p. 98.
  • 37
    Michele Sansebastiano (1852-1908) foi um escultor italiano, formado pela Academia de Gênova, posteriormente pupilo de Augusto Rivalta em Florença. Produziu esculturas predominantemente em estuque e terracota, em território italiano.
  • 38
    Soares (2009SOARES, Elizabeth Nelo (org.). Largos, coretos e praças de Belém - PA. Brasília, DF: Iphan, 2009., p. 152).
  • 39
    Antônio José Landi (1713-1791) foi um arquiteto, desenhador, cenógrafo e naturalista formado pela Academia Clementina, em Bolonha, com marcante atuação na Amazônia Colonial. Chegou em Belém em 1753 com a comissão portuguesa de demarcação de fronteiras do Tratado de Madri, com a função de desenhador. Desempenhou o papel de arquiteto em serviço à Coroa, a ordens religiosas, comerciantes e senhores de terra, e concebeu vasta obra civil, oficial e religiosa.
  • 40
    Cf. Trindade (2017TRINDADE, Elna Maria Andersen. O desenhador de Belém: Antônio José Landi e o movimento das imagens na Amazônia Colonial (1753-1791). 2017. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2017.).
  • 41
    João André Schwebel (Johann Andreas Schwebel [1718-1759/1760]) foi engenheiro militar, cartógrafo e capitão alemão, integrante da comissão de demarcação do Tratado de Madrid. Estudou na Universidade da Cidade Livre do Império em Nuremberg (Universidade de Altdorf). É autor do conhecido mapa de Belém de 1753.
  • 42
    Cf. Mendonça (2003MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho. António José Landi (1713-1791): um artista entre dois continentes. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2003.). Sobre a autoria: “Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro guarda-se um conjunto de desenhos referentes à sé, provavelmente aqueles que o bispo do Pará enviou à corte. Destes desenhos, apenas um está assinado por Landi - o que representa o retábulo do Santíssimo -, mas o traço utilizado e a grafia das legendas identificam um mesmo autor” (MENDONÇA, 2003MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho. António José Landi (1713-1791): um artista entre dois continentes. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2003., p. 358).
  • 43
    José Coelho da Gama e Abreu (1832-1906) recebeu o título de Barão de Marajó e manteve-se no poder ao longo da vida desempenhando diferentes cargos públicos durante os períodos imperial e republicano. Iniciou a carreira em 1855 como Diretor das Obras Públicas no Pará; foi presidente das Províncias do Pará e do Amazonas e Deputado; e foi o primeiro Intendente republicano da cidade de Belém. Terminou sua carreira como Senador estadual em 1906, ano de sua morte. Divulgador dos interesses da Amazônia na Europa, foi representante do Pará na Exposição Universal de Paris em 1889 e na Exposição Universal de Chicago em 1893.
  • 44
    Pará (1862PARÁ. Relatório do Governo da Província. Relatório apresentado a Assembléa Legislativa da Província do Pará na primeira sessão da XIII legislatura pelo Exmº Presidente da Província Dr. Francisco Carlos de Araújo Brusque em [ilegível] setembro de 1862. Pará: Typ. de Frederico Carlos Ruossard, 1862.).
  • 45
    Id., 1871PARÁ. Relatório do Governo da Província. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial na segunda sessão da 17.a legislatura pelo dr. Abel Graça, presidente da provincia. Pará: Typ. do Diario do Gram-Pará, 1871..
  • 46
    Id., 1881PARÁ. Relatório do Governo Província do. Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial na 2ª sessão da 22ª legislatura em 15 de fevereiro de 1881 pelo Exm.º Sr. Dr. José Coelho da Gama e Abreu. Pará: [s. n.], 1881..
  • 47
    Baena (1969BAENA, Antonio Ladisláo Monteiro. Compêndio das Eras da Provincia do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1969., p. 254).
  • 48
    Spix (1981SPIX, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. v. 3., p. 23-24).
  • 49
    Cf. Marcia Nunes (2020NUNES, Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves. O Boulevard da República: um boulevard cais na Amazônia. Curitiba: Appris, 2020.).
  • 50
    Por dialética semiológica, compreendemos uma dinâmica simbólica e comunicacional ambígua, que ao mesmo tempo que cria um discurso novo, faz uma leitura de narrativas pregressas. Dessa forma, é uma dinâmica como a de um cabo de guerra puxado dos dois lados simultaneamente, por desempenhar papéis de atividade e de passividade, ou de emissão e recepção.
  • 51
    O rizoma é um modelo epistemológico que entende a conexão das coisas e das ideias de modo complexo, ambíguo e emaranhado, diferentemente do modelo hierárquico em árvore que se utiliza do pensamento moderno e positivista. Visa embarcar as novas dinâmicas de fluxo da pós-modernidade/contemporaneidade. Conforme Mateus Nunes (2020NUNES, Mateus Carvalho. Warburg, Agamben, Deleuze: a imagem e a filosofia da diferença. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, v. 4, n. 3, p. 210-223, 2020. Doi: <https://doi.org/10.24978/mod.v4i3.4568>.
    https://doi.org/10.24978/mod.v4i3.4568...
    , p. 221): “Sobre o rizoma como estrutura epistemológica em [Gilles] Deleuze e [Félix] Guattari: ‘[…] and including the research undertaken with Guattari where we invoked a vegetal model of thought the rhizome in opposition to the tree, a rhizome-thought instead of an arborescent thought’ (Deleuze, 1994, p. XVII)”. Tradução minha: “‘[…] e incluindo a pesquisa empreendida com Guattari onde invocamos um modelo vegetal de pensamento: o rizoma em oposição à árvore, um pensamento-rizoma ao invés de um pensamento arborescente’”.
  • 52
    “[…] escrileitura como um texto que reivindica uma postura multivalente de coautoria entre leitor e escritor para tornar-se, dessa maneira, um exercício de pensamento. A concepção de escrita-pela-leitura (e de leitura-pela-escrita) supõe textos permanentemente abertos às interferências do leitor e, logo, sempre escrevíveis de múltiplos modos e traduzíveis para diferentes línguas” (CORAZZA et al., 2014CORAZZA, Sandra Mara et al. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 4, p. 1029-1043, 2014. Doi: <https://doi.org/10.1590/S1517-97022014121435>.
    https://doi.org/10.1590/S1517-9702201412...
    , p. 1031).
  • 53
    Sobre os modelos de urbanismo progressista referidos, cf. Choay (1999CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 1999.).
  • 54
    Cf. Lima, Eiró e Nunes (2017LIMA, José Júlio Ferreira; EIRÓ, Jorge; NUNES, Mateus Carvalho. Perspectivas da cidade e a cidade em perspectiva: A mídia estatal e os planos urbanísticos da Região Metropolitana de Belém. In: CASTRO, Edna Maria Ramos de; ALVES, Suely Rodrigues (orgs.). Anais do II Seminário Internacional América Latina: política e conflitos contemporâneos. Belém: Naea, 2017. p. 3001-3015.).
  • 55
    Benchimol (1992BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, 1992., p. 228).
  • 56
    “Para que se possa penetrar a fundo nas fases críticas do desenrolar desse processo, ainda não se utilizou plenamente, na interpretação dos documentos, esse expediente do conhecimento, a saber, a função polar da figuração artística entre a fantasia imersiva e a razão emersiva - algo possível por estar documentado na configuração das imagens. Entre a apreensão imaginária e a visada conceitual está o tateio no manusear do objeto, com o subsequente espelhamento na escultura ou na pintura, que se usa denominar “ato artístico”. Essa duplicidade entre a função anticaótica (que pode ser assim chamada, uma vez que a forma da obra de arte realça a unidade de modo seletivo e com clareza de contornos) e a entrega ao ídolo criado (que requer o olho do observador, e está culturalmente arraigada) é formada pelos apuros do homem espiritual, que precisariam constituir o objeto próprio de uma ciência da cultura que escolhesse como tema a história psicológica ilustrada do espaço intermediário entre o ímpeto e a ação” (WARBURG, 2015WARBURG, Aby. Introdução à mnemosine. In: História de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 363-375., p. 365).
  • 57
    Castro (2010CASTRO, Fabio Fonseca. A cidade Sebastiana: era da borracha, memória e melancolia numa capital da periferia da modernidade. Belém: Edição do Autor, 2010., p. 30-31, grifo do autor).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2020
  • Aceito
    09 Abr 2021
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