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Tarsila do Amaral sob o olhar dos museus: revendo postulados em exposições temporárias (2008-2019)

Tarsila do Amaral from a museological regard: reviewing premises in temporary exhibitions (2008-2019)

RESUMO

Entre 2008 e 2019, a obra de Tarsila do Amaral figurou em importantes instituições museais, dentre elas destacam-se a Pinacoteca do Estado de São Paulo (“Tarsila Viajante”, 2008), The Art Institute of Chicago e Museum of Modern Art (MoMA) (“Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil”, 2017-2018), e Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) (“Tarsila Popular”, 2019). Interessa à presente discussão compreender de que modo as leituras locais sobre a artista se demarcam da leitura efetuada pelo grande centro hegemônico.

PALAVRAS-CHAVE:
Tarsila do Amaral; Pinacoteca do Estado de São Paulo; MASP; MoMA; The Art Institute of Chicago.

ABSTRACT

Between 2008 and 2019, the work of Tarsila do Amaral featured in important museum institutions, such as Pinacoteca do Estado de São Paulo (Tarsila Viajante, 2008), The Art Institute of Chicago and Museum of Modern Art (MoMA) (Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil, 2017 and 2018), and Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) (Tarsila Popular, 2019). This paper is interested in understanding how the local readings about the artist differ from that made by the hegemonic center.

KEYWORDS:
Tarsila do Amaral; Pinacoteca do Estado de São Paulo; MASP; MoMA; The Art Institute of Chicago.

Tarsila do Amaral (1886-1973), personagem central da narrativa modernista brasileira, foi objeto, nas últimas décadas, de mostras individuais em museus centrais no Brasil e no exterior. Entre elas, destaca-se a exposição “Tarsila Viajante”, realizada, em 2008, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, sob a curadoria de Regina Teixeira de Barros e consultoria de Aracy Amaral. A mostra, que também foi também exibida no Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba), trazia ao público, entre obras e documentos, desenhos inéditos da artista. Naquela ocasião, os esforços de Aracy Amaral, importante referência sobre a produção de Tarsila, ganhavam nova forma. A exposição era também fruto do projeto empreendido, em 2006, pela Pinacoteca do Estado de São Paulo e Base 7 Projetos Culturais, que realizou a catalogação da obra da artista a partir das pesquisas iniciadas por Amaral na década de 1970. “Tarsila Viajante”, como informaram os textos de mediação, juntou-se à celebração dos oitenta anos do Manifesto antropófago, além de marcar os dez anos da XXIV Bienal de São PauloFUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. Catálogos. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhJ4si . Acesso em: 27 ago. 2020.
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, edição célebre que inseriu a artista no centro da revolução modernista.

Dez anos depois, em 2017 e 2018, o The Art Institute of Chicago e o Museum of Modern Art (MoMA) realizaram a primeira exposição individual da artista nos Estados Unidos, “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil”, sob curadoria de Luis Pérez Oramas e Stéphanie D’Alessandro. A exposição trouxe a público um conjunto de obras que privilegiava a produção mais expoente de Tarsila do Amaral, primeiro em Chicago, entre outubro de 2017 e janeiro de 2018 e, depois, em Nova York, entre fevereiro e junho de 2018. Naquela ocasião, o catálogo da mostra anunciava questionar tanto o cânone de arte e da cultura quanto as estruturas e as instituições que o reforçam. Nesse contexto, respondendo às demandas globais de arte - mais mulheres artistas e mais artistas do Sul global -, a obra A Lua (1928) passou a figurar na coleção permanente do MoMA, e Tarsila passou a ser reconhecida como a inventora do modernismo brasileiro.

A Lua - que não integraria no ano seguinte a mostra paulista, “Tarsila Popular”, realizada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) - foi adquirida por vinte milhões de dólares, uma soma nunca vista no mercado de arte local. A instituição paulista celebrou Tarsila do Amaral em um ano dedicado à produção de mulheres artistas e “Tarsila Popular” foi exibida entre abril e junho de 2019, inaugurando uma série de mostras reunidas sob a divisa anual da instituição: “História das Mulheres, Histórias Feministas”.

Embora as filas quilométricas anunciassem a consagração da artista junto ao público, “Tarsila Popular” se tratava da primeira mostra individual da artista realizada pela instituição. O adjetivo “popular” repetia o gesto empreendido em “Portinari Popular”, exibida entre agosto de 201 e novembro de 2016, ocasião em que se celebrava a 12ª mostra dedicada ao artista. A disparidade em relação a Candido Portinari pode ser melhor evidenciada no contexto estadunidense: em 1940, o MoMA realizava a primeira mostra individual do pintor Brodowski.

Diante do interesse pela produção de Tarsila, antes desconhecida do grande público estadunidense e, agora, por ele legitimada, uma questão emerge: Em que as leituras locais a respeito da artista se demarcam da leitura efetuada pelo grande centro? No ano em que se celebra o centenário da semana de 1922, urge debruçar-se sobre tais discursos, bem como sobre a institucionalização do trabalho de Tarsila do Amaral, que, apesar de não ter integrado a célebre mostra, passou a ocupar posição central e solar na narrativa modernista brasileira.2 2 “Presenças solares” é um termo cunhado no texto “Modernas em museus: uma consagração tardia” (SIMIONI, 2019, p. 496).

Dada a impossibilidade de se analisar em minúcias todos os ricos enunciados propostos pelas exposições, optou-se por examinar um aspecto em particular: o modo pelo qual quatro museus dialogam curatorialmente com a produção da artista a partir de um olhar específico sobre a obra A negra (1923). Diante dos debates acerca das questões raciais, a obra, peça-chave para a compreensão do projeto modernista brasileiro, tem sido revisitada nas últimas décadas por meio de práticas curatoriais que ora reforçam as consagradas leituras, ora problematizam as narrativas modernistas brasileiras.

A fim de responder ao questionamento enunciado, a reflexão proposta pelo presente artigo organiza-se em torno de três etapas. As duas primeiras apresentam um panorama da trajetória da artista, que compreende suas primeiras exposições individuais, iniciadas em 1926, até a XXIV Bienal de São PauloFUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. Catálogos. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhJ4si . Acesso em: 27 ago. 2020.
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, conhecida como Bienal da Antropofagia. Espera-se, a partir desse levantamento, evidenciar aspectos que concernem à institucionalização de suas obras, tendo em vista a recente aquisição de A Lua, bem como um conjunto de exposições coletivas e individuais anteriores aos discursos expositivos centrais para essa discussão. A última parte do artigo pretende apresentar o recorte expositivo de A negra nas mostras “Tarsila Viajante” (2008), “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil” (2017-2018) e “Tarsila Popular” (2019). Em relação aos espaços expositivos estadunidenses, optou-se por enfatizar a apresentação da artista no MoMA, visto a incorporação de uma de suas obras ao acervo da instituição.

AS DÉCADAS DE 1920 A 1960: DA GALERIE PERCIER À RETROSPECTIVA DO MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO

Passado o escândalo da mostra de 1917, em que Anita Malfatti expusera um conjunto de obras de veio expressionista, e a ruidosa Semana de Arte Moderna, em 1922, Tarsila do Amaral, ainda sob o efeito dos eventos sediados na capital paulista, rumara à Paris, “disposta a procurar nova orientação para seus estudos”.3 3 Para a Cidade Luz, também se dirigia Anita Malfatti. A trajetória das artistas em Paris, em 1922, é analisada pela professora e pesquisadora Maria de Fátima Morethy Couto (2008) em “Caminhos e descaminhos do modernismo brasileiro: o ‘confronto’ entre Anita e Tarsila”. Ali teceu, entre 1922 e 1923 - ano em que pinta A negra -, uma rede importante de contatos: trabalhou no atelier de André Lhote e Fernand Léger e encontrou-se com poetas, pintores e escultores. Regressou ao Brasil em 1923, e, em 1924, empreendeu viagem pelo país na companhia de modernistas brasileiros e do suíço Blaise Cendrars. Nos anos seguintes, realizou viagens consecutivas à Europa e, desse intercâmbio, resultam suas duas primeiras mostras individuais, celebradas na Galerie Percier, em Paris, nos anos de 1926 e 1928.

“Já tinham se passado sete anos da exposição do saguão do [Theatro] Municipal em São Paulo, na Semana de Arte Moderna de [19]22, quando fora dado o sinal de ataque ao passadismo, europeísmo, com tudo o que de acadêmico nisso estava implícito”.4 4 Amaral (2003 [197 ], p. 309). Assim descreve Aracy Amaral o ano de 1929, momento em que Tarsila realizou sua primeira mostra individual no Brasil, no saguão do Palace Hotel do Rio de Janeiro, em 20 de julho. Intitulada “Tarsila do Amaral”, a exposição exibiu 3 telas e um conjunto de desenhos. Curioso notar que, embora tenha sido exibida em Paris, a obra A negra, central na produção da artista, não figura entre as obras selecionadas por ela para sua primeira aparição local.

As décadas de 1930 e 1940 marcam um momento à parte na carreira de Tarsila, que passa a assumir posição secundária nos círculos modernistas. Observa-se que, entre 1936 e 1949, a artista não realizou nenhuma exposição individual, voltando à cena apenas em 19 0 com a mostra “Tarsila 1918-19 0”, organizada por Sérgio Milliet e realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Nesse sentido, faz-se necessário lançar um olhar sobre o conjunto das mostras individuais e coletivas dedicadas a Tarsila e à institucionalização de seu trabalho, buscando evidenciar os hiatos de sua carreira, bem como delinear as possíveis respostas para o recente interesse do centro hegemônico pela produção da artista.

Para tanto, observe-se o gráfico “Exposições individuais de Tarsila do Amaral entre os anos de 1920 e 2019” (Figura 1), que apresenta as variações da trajetória da artista em torno das 31 mostras individuais, organizadas em duas categorias: nacionais e internacionais. Para essa etapa da discussão, interessa o intervalo entre as décadas de 1930 e 19 0. Apesar do silêncio e da pouca projeção de Tarsila naqueles anos, verificou-se que a artista se manteve ativa, elaborando, entre 1936 e 19 0, cerca de 466 obras, dentre as quais 68 trabalhos realizados por meio da técnica óleo sobre tela.

Figura 1
Exposições individuais de Tarsila do Amaral entre os anos de 1920 e 2019. Fonte: Elaborada pela autora (2021).

Contrariamente a Tarsila, Candido Portinari passaria a ganhar progressivamente mais projeção, tornando-se o pintor oficial do governo Vargas. Sua trajetória inicia-se em 1936, na ocasião da execução dos murais dos ciclos econômicos no Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro. Em 1938, sob encomenda de Marques Reis, então diretor do Banco do Brasil, Portinari elaborou o retrato de Vargas. Em 1939, meses após a I Feira Mundial de Nova York, foi realizada a mostra “American Exhibition of Fine and Applied Art”, e, em julho de 1940, a exposição “Latin American Exhibition of Fine Arts”. A primeira delas deixou de lado Portinari e Tarsila, exibindo nomes como Georgina de Albuquerque, Guttman Bicho, Helios Seelinger, José Pancetti, Ado Malagoli e Eugênio Sigaud. Entretanto, a ausência dos dois artistas não passou despercebida pela crítica, e o catálogo da mostra, incongruente com a lista de expositores, ressaltava o trabalho de Tarsila. Renata Gomes Cardoso5 5 Cardoso (2019, p. 13). lança mão das palavras de L. S. Rowe, redator dos textos introdutórios da mostra:

“São Paulo é o ponto focal da arte moderna, promovida pelos esforços de Tarsila e seu marido-poeta, Oswald de Andrade”. Interessante a citação de Tarsila, que não está na lista de expositores e a ausência de Portinari como referência para o modernismo dos anos de 1930, nome em circulação nos Estados Unidos naquele momento.

A obra da artista teria circulado nos anos anteriores na mostra “The First Representative Collection of Paintings by Contemporary Brazilian Artists”, no Nicholas Roerich Museum, em Nova York. A mostra, que exibiu três trabalhos dela, dentre eles Morro da Favela (1924), realizou-se de 11 a 30 de outubro de 1930. A afirmação de L. S. Rowe e a análise proposta por Cardoso6 6 Ibid. corroboram a seguinte hipótese: o trabalho da artista era conhecido por parte do público estadunidense. Logo, a ausência de seu nome dentre os expositores das mostras subsequentes, bem como da lista de aquisições de Lincoln Kirstein - a ser discutida mais adiante - revela que a não aquisição ou a não exibição da obra de Tarsila foi uma escolha. A hipótese também foi apontada, em conferência, por Ana Paula Cavalcanti Simioni.7 7 Simioni (2020a).

Diferentemente de “American Exhibition of Fine and Applied Art”, a mostra “Latin American Exhibition of Fine Arts”, exibida em 1940, é marcada pela predileção por Portinari e a ausência dos artistas de São Paulo. Após a participação de Portinari em “Latin American Exhibition of Fine Arts”, acompanhado apenas de Maria Martins,8 8 Nastari (201 , p. 85). o artista realizaria uma mostra individual no Detroit Institute of Arts, de agosto a setembro de 1940, e, em 8 de outubro, inauguraria sua primeira exposição individual no MoMA. Como demonstrado até aqui, Tarsila, bem como outros artistas de São Paulo, não teria figurado nas mostras que selavam também tratos entre os dois países - posição que não seria diferente nos anos seguintes.

Em finais de 1939, Nelson Rockefeller, presidente do MoMA entre 1939 e 1941, foi nomeado coordenador do Office of Inter-American Affairs, e Lincoln Kirstein, seu amigo, foi encarregado da compra de obras de arte pela América Latina nos anos seguintes. O intercâmbio de correspondência entre o enviado e o presidente do MoMA elucida questões importantes sobre a constituição da coleção de arte latino-americana da instituição, bem como os porquês da ausência de Tarsila. Kirstein diz:

Mario de Andrade, the famous mulatto musicologist and poet who has suffered much from Getulio; Tarsila, the first wife of Oswald de Andrade, etc., comprise another intellectual faction who, while not friendly with each other, are a revolutionary nucleos now as they were for the 1932 and 1937 revolutions.9 9 Ibid., p. 181.

Desse modo, tais excertos, bem como os textos redigidos para a exposição no Riverside Museum mencionados anteriormente, evidenciam que era notório o conhecimento da produção de Tarsila. As obras adquiridas por Lincoln Kirstein em 1942 representam um conjunto de treze artistas, dentre os quais figuram apenas duas mulheres: Lucy Citti Ferreira e Edith Behring. Porém, ainda que no rol dos selecionados, tais artistas não desfrutaram de prestígio local. Por fim, com relação a essas aquisições, é preciso pontuar que a primeira obra adquirida de Portinari seria Morro, em 1939, por meio da intermediação de Alfred Barr e Florence Horn. Curioso notar que a obra de Tarsila, Morro da favela, data de 1924 e, mesmo dispondo de mesma temática, não adentrou a coleção. Assim, A Lua, adquirida em 2019, marca sua entrada na instituição, além da doação, em 2017, por Max Perlingeiro, de Estudo de composição [figura só] III.

Voltando-se à produção da artista entre os anos de 1939 e 1969, constata-se que esta foi compreendida, por parte da crítica, como fruto de “um tempo de diversificação de técnica, ausência total de firmeza sobre o caminho a seguir”.10 10 Amaral (2003, p. 381). Ainda que dela emerja um interessante conjunto de obras, como Praia, Primavera, Roda e terra, observa-se que apenas 36,76% das obras produzidas nesse período figuraram em exposições individuais da artista, representadas majoritariamente por duas mostras: a retrospectiva oferecida pelo MAM-SP, “Tarsila 1918-19 0”, exibida no ano de 19 0, e a mostra realizada em conjunto, em 1969, entre o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) e o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), “Tarsila: 0 anos de pintura”.

Nesse sentido, destaca-se outro dado, apenas ,88% das obras produzidas entre 1939 e 1969 foram apresentadas nos últimos treze anos em mostras individuais, dedicadas à artista: “Tarsila Viajante”, “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil” e “Tarsila Popular”. Logo, apesar das novas releituras reclamadas pelas exposições, o conjunto em questão ainda permanece desconhecido do grande público. Ademais, o esforço de representação desse período aparece centralizado pelo MASP, que, em 2019, trouxe ao público alguns dos trabalhos da referida fase. Os dados apresentados pelo gráfico “Décadas representadas nas exposições individuais de Tarsila do Amaral entre 2008-2019” (Figura 2) evidenciam o escopo temporal privilegiado por cada mostra, destacando-se a prevalência de obras produzidas entre os anos de 1920 e 1930, período considerado como fase áurea da artista, em detrimento da produção posterior. Apenas o MASP exibiu obras produzidas entre as décadas de 1940 e 1960.

Figura 2
Décadas representadas nas exposições individuais de Tarsila do Amaral entre 2008-2019. Fonte: Elaborada pela autora (2021).

A retrospectiva “Tarsila 1918-19 0” abre um marco no processo de musealização da artista no Brasil. Em 19 1, no contexto da I Bienal de São Paulo, adquire-se a obra Estrada de ferro Central do Brasil (E.F.C.B), de 1924, que adentra a coleção do MAM-SP. Desse modo, é necessário mencionar a importância da Bienal e das aquisições para a formação de um acervo de arte moderna, nacional e internacional, na capital paulista.

Embora as aquisições da Bienal visassem o novo,11 11 Magalhães (2019, p. 15). a aquisição de E.F.C.B. parece contrariar as prerrogativas do evento. Sobre isso, Mariana Leão Silva,12 12 Silva (2020, p. 13 ). ao propor um olhar sobre as premiações de artistas mulheres no contexto da I Bienal de São Paulo, afirma:

Dentre as três imagens do país que as obras simbolizam, o júri optou por aquela que evocava uma modernidade - ainda que já histórica - que ultrapassava a caracterização nacional pela paisagem caipira e pela vegetação exótica. A obra evoca uma imagem urbana e moderna a se imiscuir no ambiente brasileiro, bastante estereotipado. O diálogo entre esta imagem e os valores da Bienal é bastante evidente […] o evento como um todo também tencionava construir para o Brasil uma imagem cosmopolita, que inseriria o país, e em especial São Paulo, no diálogo artístico, econômico e político mundial. Também devemos olhar com maior atenção para o caráter histórico desta premiação. Para além da simples datação da obra, deve-se observar que sua linguagem plástica também se encontrava bastante “ultrapassada”, no sentido de que não correspondia ao que os artistas brasileiros, incluindo a própria Tarsila, buscavam desenvolver naquele período. Por outro lado, a linguagem da obra poderia responder ao que era produzido em 19 1 em um sentido de gênese. Este fator certamente foi levado em consideração pelos críticos do júri de premiação, que nessa escolha descartou as prerrogativas de novidade de todo o evento.

Assim, Para Silva, a aquisição de E.F.C.B. revela o esforço de relacionar a produção de Tarsila à produção contemporânea e à Bienal. Data também de 19 1 a incorporação de A negra à coleção da instituição, adquirida diretamente da artista, bem como a doação, por André Dreyfus, de Floresta (1929). As aquisições de A negra e E.F.C.B. refletem o impacto da retrospectiva “Tarsila 1918-19 0” e, junto à Floresta, o conjunto de obras procura reconstruir uma narrativa que concerne ao período de produção mais expoente da artista.13 13 Ibid., loc. cit. Desse modo, Mariana Leão Silva delineia três movimentos: a obra A negra marca o contato com o cubismo e o primitivismo aprendido na Europa, aliado ao desejo de expressão nacional; Floresta remete à “antropofagia”, por meio de uma paisagem recoberta de uma aura mística e mágica, na qual a autora destaca seu caráter agigantado, também de influência surrealista; e, por fim, E.F.C.B., que responde aos anseios de narrar também parte de sua poética “pau-brasil”.

Contudo, essas obras não configuram as primeiras aquisições da artista. Seu processo de musealização, como destaca Simioni,14 14 Simioni (2019). inicia-se no exterior, em 1928, com a obra A Cuca (1924), hoje no Musée de Grenoble. Segundo a pesquisadora,15 15 Ibid., p. 493). o museu exerceu um papel importante na musealização da arte moderna como a primeira instituição a integrar obras de Matisse, Picasso e outros.

A Pinacoteca do Estado de São Paulo adquiriu, em 1929, a pintura São Paulo (1924) junto a obras de outros três modernistas: Lasar Segall, com Bananal (1927), em 1928; Anita Malfatti, com Tropical (1917), em 1929; e, por fim, Victor Brecheret, com La Porteuse de parfum (1923-1924). Em 1931, em Moscou, o Museu de Arte Moderna e Ocidental compraria a obra Pescador (192 ), exibida pela primeira vez no Brasil na mostra “Tarsila Popular”, e que hoje está no acervo do Museu Hermitage, em São Petersburgo. O MASP, por sua vez, adquiriu uma gravura da artista apenas na década de 1970, ou seja, 23 anos após sua inauguração.16 16 Ibid., loc. cit.

Pescador (192 ) foi adquirida no curso de sua viagem à União Soviética, momento em que, na companhia de Osório César, realizara mostra individual em Moscou, em 1931. Desse modo, ainda que parte de sua biografia sugira uma carreira de êxito no exterior, é, antes, a artista quem circula pelos países. Até o momento, localizou-se nove mostras individuais internacionais, cinco delas celebradas após o ano de 2008. Três mostras ocorreram em Paris: em 1926 e 1928, na Galerie Percier - espaço que teria recebido, até aquele momento, artistas como Naum Gabo, Torres García ou Alexander Calder - e a última, em 200 , na Maison de l’Amérique Latine, espaço dedicado à promoção da arte latino-americana.

As demais exposições dispersaram-se entre União Soviética, Argentina, Espanha e Estados Unidos. Em 1931, ocorreu a mostra individual no Museu de Arte Ocidental, em Moscou; em 2008, a mostra “Tarsila Viajante” foi exibida pelo Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba); em 2009, “Tarsila do Amaral” é exibida em Madri, na Fundación Juan March, de 6 de fevereiro a 3 de maio e, em seguida, de 14 de maio a 31 de julho, na Fundación Caixa Galicia, em Santiago de Compostela; e, por fim, a exposição “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil”, exibida pelo The Art Institute of Chicago e pelo MoMA em 2017 e 2018.

TARSILA: ENTRE A HERANÇA MODERNISTA E A XXIV BIENAL

Durante as décadas de 1930 e 1940, Tarsila ocupou um lugar secundário na cena paulistana.17 17 Simioni (2019, p. 494). Contudo, a partir dos anos de 19 0, com a retrospectiva organizada pelo MAM-SP, houve mudanças significativas nesse panorama. Ainda na década de 19 0, publicações acadêmicas corroboraram a construção de uma narrativa sobre a arte modernista brasileira. Entre elas, a professora e pesquisadora Ana Paula Cavalcanti Simioni destaca Literatura e sociedade de Antonio Candido, publicada em 19 , e História do modernismo brasileiro: antecedentes e consequências, de Mário da Silva Brito, de 19 8.18 18 Ibid., loc. cit. A autora ainda traz à luz um panorama dos eventos que marcariam as décadas de 1960 e 1970 e lista alguns eventos que, no referido período, contribuíram para a institucionalização da artista, como a liberação de linhas de crédito destinadas à aquisição de obras de arte; a celebração dos cinquenta anos da Semana de Arte Moderna; e o falecimento de alguns artistas, dentre eles, Candido Portinari, Anita Malfatti e a própria Tarsila.

Por meio do que Simioni19 19 Ibid., p. 495). qualifica como a reivindicação de uma “herança modernista”, vê-se, a partir das décadas de 1960 e 1970, figuras como as de José Celso Martinez Corrêa ou o movimento de contracultura, como a Tropicália, reafirmaram a importância das produções modernistas no cenário nacional. Simioni e Bruna Fetter,20 20 Simioni e Fetter (201 ). em “Brazilian Female Artists and the Market: A Very Unique Encounter”, destacam o papel desempenhado pela Universidade de São Paulo na institucionalização da narrativa que encerra a produção modernista em São Paulo e concede a Tarsila e a Anita papel de destaque. É a partir dos anos 1970 que se darão a conhecer os primeiros trabalhos monográficos em torno das duas figuras: Tarsila sua obra e seu tempo (197 ), de Aracy Amaral, e Anita Malfatti no tempo e no espaço (198BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: Editora 34, 2006 [198 ]. ), de Marta Rossetti Batista.

O gráfico “Exposições coletivas de Tarsila do Amaral entre os anos de 1922 e 2018” (Figura 3) demonstra um aumento expressivo de suas participações a partir de 1970 devido à promoção e à institucionalização da narrativa modernista brasileira.21 21 Lima (2020, p. 82). Organizado em torno das categorias “exposições nacionais”, “em Paris” e “outros”, o documento comprova a hipótese de que, apesar do intenso deslocamento entre os eixos Brasil-Paris, o número de exposições modernistas na Ville Lumière é pequeno ou nulo.

Figura 3
Exposições coletivas de Tarsila do Amaral entre os anos de 1922 e 2018. Fonte: Lima (2020LIMA, Nerian Teixeira de Macedo. Tarsila global: releituras de sua obra. 2020. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020., p. 82).

O grande número de exposições no período que antecede a XXIV Bienal de São PauloFUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. Catálogos. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhJ4si . Acesso em: 27 ago. 2020.
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, em 1998, sugere que a mostra curada por Paulo Herkenhoff seja o clímax do crescente interesse pela produção modernista, com destaque para a obra de Tarsila. Projetando a produção local além das fronteiras nacionais, a XXIV BienalFUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. Catálogos. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhJ4si . Acesso em: 27 ago. 2020.
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promove a reescrita da história da arte, discutindo as trocas simbólicas entre o Brasil e a Europa e as relações de alteridade estabelecidas entre o colonizado e o colonizador.

Nessa edição, Paulo Herkenhoff recupera o célebre diagrama de Alfred Barr, de 1936, cujas proposições reforçam uma leitura cronológica da história da arte a partir de escolas e movimentos. Se, como observa Griselda Pollock,22 22 Pollock (2011). o diagrama estadunidense não reconhece a produção artística de mulheres nos períodos representados, em seu diagrama Herkenhoff insere Tarsila do Amaral no cerne da revolução modernista.

Desse modo, o gesto do curador não apenas questiona as relações entre centro e periferia, mas recupera a produção artística de mulheres artistas brasileiras. Contudo, apesar da inclusão dos nomes de Tarsila, e também o de Lygia Clark, a menção às mulheres artistas em seu diagrama é ainda escassa.

Por fim, é necessário pontuar que a presença de Tarsila na XXIV BienalFUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. Catálogos. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhJ4si . Acesso em: 27 ago. 2020.
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não foi sua primeira aparição na mostra. Além do prêmio de aquisição na I Bienal (19 1), na VII Bienal (1963ALMEIDA, Paulo Mendes de. Tarsila. In: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. VII Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1963. p. 91-96. Catálogo. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhJ4si . Acesso em: 3 ago. 2020.
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) e na XII Bienal (1973) a artista teve salas inteiramente dedicadas às suas obras, respectivamente, “Retrospectiva de Tarsila” e “Homenagem a Tarsila”.

TARSILA DO AMARAL: VIAJANTE, INVENTORA E POPULAR

Tendo feito considerações acerca da institucionalização da obra de Tarsila e do conjunto de exposições individuais e coletivas integradas pela artista, faz-se necessário adentrar aos discursos expositivos das mostras “Tarsila Viajante”, “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil” e “Tarsila Popular”, objetos de investigação deste artigo. Embora essa etapa da discussão conceda destaque a tais exposições por compreender que os discursos que delas emergiram legitimaram o trabalho de Tarsila, é preciso destacar a importância das exposições coletivas, também capazes de legitimar produções individuais, como a XXIV Bienal de São PauloFUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XXIV Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. Catálogos. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhJ4si . Acesso em: 27 ago. 2020.
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. Somam-se a essa iniciativa as exposições que fogem do escopo deste artigo, mas que não poderiam deixar de ser mencionadas: “Modernidade, art brésilien du 20ème siècle”, realizada no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris, exibida em 1987 e 1988, sob a curadoria de Aracy Amaral, Frederico Morais, Roberto Pontual e Marie Odile Briot; ou, ainda, “De la Antropofagia a Brasília 1920-19 0”, exibida no Instituto Valenciano de Arte Moderna, na Espanha, em 2001 e 2002, seguida de apresentação no Museu de Arte Brasileira da FAAP, em São Paulo, em 2002.

Quatro exposições dedicadas à artista, ainda que disponham do mesmo conjunto de obras, constituem-se como discursos distintos. Jérôme Glicenstein, em L’Art: une histoire d’expositionsGLICENSTEIN, Jérôme. L’art une histoire d’expositions. Millau: PUF, 2014. , sugere que, ao considerar a existência de discursos em uma exposição, o espectador passa a ser confrontado com uma série de questões: “Quem fala? Que posição ocupa? Em que ordem social está instaurado este enunciado?” Para o autor, o trabalho do curador, do cenógrafo e do museólogo revela relações mais complexas do que a simples justaposição de obras: o que se quer é a produção de sentido entre os diferentes objetos, o espaço expositivo, os textos de mediação e o espectador. Portanto, refletir sobre as exposições de arte conduz, segundo Glicenstein, à relativização da importância dos objetos em si e à observação da apresentação destes que são singulares e heterogêneos. Nesse sentido, o discurso apresentado pelo The Art Institute of Chicago e pelo MoMA contrasta com as leituras locais da obra de Tarsila do Amaral, que, por sua vez, também diferem entre si. No entanto, em que tais leituras se distinguem?

“Tarsila Viajante” traz a público desenhos inéditos da artista. Antes disso, a Pinacoteca do Estado de São Paulo exibira, em 1977, a mostra “Tarsila do Amaral: Desenhos e Estudos”, sob a curadoria de Aracy Amaral. Os treze desenhos, corpus da exposição, foram doados pela artista à instituição e marcaram sua primeira aparição solo na Pinacoteca, que já dispunha da obra “São Paulo” (1924), adquirida em 1929. Nesse sentido, a nova mostra empreendida pela instituição, curada por Regina Teixeira de Barros, com a consultoria de Aracy Amaral, destaca novamente a importância dos desenhos no conjunto da produção da artista. A partir da listagem de obras expostas, constatou-se que a produção sobre papel exibida por “Tarsila Viajante” correspondia a 70,9% do conjunto total de obras e, se antes eram vistos como meio de preparo para seus trabalhos, nessa mostra passam a ser lidos, também, como fotografias dos vários itinerários da artista.

Regina Teixeira de Barros escolhe como recorte para a exposição as diversas viagens efetuadas por Tarsila e seu consequente impacto no amadurecimento de sua obra. A curadoria propõe o seguinte percurso: Formação; Descobrimento do Brasil; Viagem ao Oriente Médio; Brasil Mágico; e Viagem à União Soviética. A primeira sala da mostra exibe, junto à maleta de viagem da artista, um mapa onde se veem os diferentes lugares visitados por Tarsila. Apesar do uso da cartografia, ela não problematiza a circulação de sua obra. Em texto publicado no catálogo, a curadora diz: “Assim como as viagens de Tarsila foram fundamentais para a compreensão do desenvolvimento de sua arte, sua contribuição para a concepção de um ideário moderno brasileiro não teria se concretizado não fosse ela mesma uma artista-viajante”.23 23 Barros (2008, p. 34). Essa afirmação posiciona a circulação nacional e internacional da artista como elemento primordial de sua produção.

Dos cinco eixos da mostra, interessa aqui o de nome “Brasil Mágico”, no qual figura a justaposição das célebres obras A negra (1923), Abaporu (1928) e Antropofagia (1929). Elementos centrais na narrativa modernista, a tríade em questão é apresentada sob a perspectiva mais tradicional e canônica do modernismo brasileiro, produzida por Aracy Amaral. Um dos textos de mediação da exposição aponta que

A negra e Abaporu são alegorias da mulher e do homem que geraram os filhos desse Brasil mágico, denso e silencioso, onde o céu arde ao Sol poente e a terra se aquieta à luz d’A Lua. Feminino e masculino se complementam em Antropofagia - imagem que, conforme indicado pelo título, mescla elementos e funde simbologias anunciadas previamente em A negra e Abaporu, com as quais completa uma tríade.24 24 Barros (2008, p. 30-31).

Essa perspectiva enunciada pelos textos de mediação não problematiza a personagem central de A negra, alvo de disputa nos discursos seguintes. A obra, que desde 19 1 integra a coleção do MAM-SP e, a partir de 1963, a coleção do MAC-USP, traz, em primeiro plano, um corpo feminino, negro, radicalmente geometrizado e nu. Sua execução dá-se na Paris dos anos de 1920, período marcado pela crescente exploração de novas estratégias formais, alimentadas pela apropriação da visualidade de culturas não ocidentais. Assim, o primitivismo passou a ser a principal linguagem de negociação entre a artista e sua entrada no universo vanguardista.

O catálogo da exposição da Pinacoteca traz a foto de uma funcionária da família da artista que, posicionada ao lado da obra, sugere, sem qualquer discussão dos autores, algumas inferências (Figura 4). A posição da mão da mulher que figura em primeiro plano coincide com aquela encontrada em A negra, bem como em seu Autorretrato ou Manteau rouge (1923). A legenda da foto publicada no catálogo da exposição diz: “Fotografia de funcionária da família Amaral que integra o álbum de viagens de Tarsila”.25 25 Barros, op. cit., p. 31.

Figura 4
Reprodução do catálogo da exposição “Tarsila Viajante”. Fonte: Barros (2008BARROS, Regina Teixeira de. Tarsila viajante. In: AMARAL, Aracy; BARROS, Regina Teixeira de (Org.). Tarsila Viajante. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2008. p. 21-3 . Catálogo., p. 31).

A obra A negra, que também integrou a exposição “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil”, junto à Abaporu e Antropofagia, realizou uma importante operação na expografia. Porém, aqui, daremos enfoque ao espaço expositivo do MoMA.26 26 A obra A negra foi cedida pelo MAC-USP que, em contrapartida, recebeu Tour Eiffel (192 ), de Robert Delaunay, obra que integrara a coleção de Tarsila e que hoje pertence ao The Art Institute of Chicago. Em 3 de maio de 2018, o MAC-USP realizou o evento “A Torre Eiffel em São Paulo: Tarsila Colecionadora”, com a participação de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros. A mostra foi organizada em torno da tríade, disposta por ordem de execução, como evidencia o registro feito da visão central do espaço expositivo. O Art Institute of Chicago e o MoMA, aos cuidados de Luis Pérez Oramas e Stephanie D’Alessandro, realizaram a primeira mostra individual da pintora em solo estadunidense, que priorizou um conjunto de obras produzidas entre 1920 e 1930, e exibiu, entre pinturas e desenhos, documentos e fotografias da artista. Os curadores relembram ao espectador, em texto publicado no catálogo, como o imaginário estadunidense parecia familiarizar-se mais com o espetáculo de Carmen Miranda do que com as obras de Tarsila.

Unlike Miranda, Tarsila do Amaral (1886-1973) did not travel to the United States and, apart from a handful of exhibitions, her work has not been promoted in North America with nearly the same singularity or sustained attention. 27 27 D’Alessandro e Oramas (2017, p. 1 ).

As comparações entre Carmen Miranda e Tarsila do Amaral inauguram as reflexões propostas pelo catálogo da exposição e não se esgotam aqui. Destaca-se ainda a seguinte proposição:

Indeed, focused on the subject of Brazil and acting, especially in the case of Tarsila’s landmark 1928 canvas, Abaporu, as a standard for the nation’s modern artistic project, her works speak of and celebrate singularity as a marker of identification and powerful difference. In Brazil this made Tarsila, as she is known affectionately, the most popular and beloved artist of the twentieth century. By contrast, in the United States, her work was until recently unfamiliar that it seemingly had no place, so different that it appeared suspiciously close to the spectacle of Miranda. 28 28 Ibid., loc. cit.

Diante de tais afirmações, é possível interrogar-se sobre a efetividade de tais aproximações para a compreensão da obra de Tarsila. Por que Carmen Miranda explicaria melhor o desconhecimento da obra da artista que a predileção, nos anos de 1940, por Portinari?

Se “Tarsila Viajante” explora os diversos deslocamentos da artista, a “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art” interessa, sobretudo, seu contato com a capital francesa. A foto que saúda o espectador desde a entrada é a mesma escolhida pela curadoria da mostra exibida em 2008 em São Paulo: Tarsila vestida de Paul Poiret, ao lado de sua obra Morro da favela (1924). O retrato fora feito na ocasião de sua primeira mostra individual, realizada na Galerie Percier, em Paris. Os primeiros textos de mediação anunciam: “De São Paulo para Paris”. O curador, em suas primeiras palavras no audioguia, diz: “The exhibition follows Tarsila as she moves back and forth between her native São Paulo and Paris”. Nesse sentido, tais elementos são o prenúncio da perspectiva adotada pela curadoria, sua dignificação por meio de seu contato com Paris.29 29 Lima, op. cit., p. 204.

A divisão do espaço expositivo provocada pelo posicionamento das obras “A Negra”, “Abaporu” e “Antropofagia” não destaca temáticas particulares; ao contrário, orienta uma distribuição cronológica da produção de Tarsila, distinguindo-se, deste modo, de “Tarsila viajante”, que destacou temas particulares no conjunto de sua produção.

A obra A negra é concebida como a gênese da produção modernista brasileira: “[…] A negra is the story of Anthropophagy as well as, in many ways, Tarsila’s true invention of modern art in Brazil”.30 30 D’Alessandro (2017, p. 38). Carro chefe da exposição, a obra recebe, por meio do audioguia, três outras notas:

Brazil is a country with a large African-Brazilian population. This painting, A negra, which means “The Black Woman”, is an iconic work. It represents Tarsila’s growing recognition of the richness and diversity of her native country.

A negra evokes emancipation, racially and politically. The way this painting blends an international form of modern art with a black subject was a bold political position.

This painting is most likely based on a photograph of a servant she knew as a child. 31 31 Transcrição do audioguia disponível em: https://www.moma.org/audio/playlist/48/733.

A fotografia apresentada pelo catálogo da mostra “Tarsila Viajante” é mencionada rapidamente pelo documento. A obra A negra também é objeto da reflexão de Stephanie D’Alessandro em “A Negra, Abaporu, and Tarsila’s Anthropophagy”, publicado no catálogo da exposição estadunidense. A autora atribui importância à obra de 1923 e, por meio de uma série de eventos, por vezes não confirmados, procura traçar sua genealogia europeia: segundo D’Alessandro, A negra teria sido inspirada nas banhistas de Cézanne. Ademais, busca evidenciar as possíveis influências que a obra de Cézanne exerceu sobre Tarsila. Destacam-se as anedotas em torno de sua residência na capital francesa, localizada à rua Hégésippe Moreau, suposto antigo atelier de Cézanne, e as visitas a Ambroise Vollard, que dispunha da obra Les Grandes baigneuses (1900-1906) e, também, de uma foto do pintor diante dessa obra:

It is certain that among the canvases that Tarsila saw there was Cézanne intimate Bathers, as well as the photograph of the artist before his great Large Bathers (189 -1906; Barnes Foundation), which Vollard had published in his 1914 monograph. 32 32 D’Alessandro, op. cit., p. 40.

Mais adiante, o texto indica duas outras inspirações para Tarsila: Nu assis s’essuyant le pied (1921) e Grand nu à la draperie (1923), ambos de Pablo Picasso. D’Alessandro também sugere que Tarsila, em visita ao ateliê do pintor andaluz, teria se deparado com tais obras. De modo a sustentar sua hipótese, lança mão da crônica intitulada “Um mestre da pintura moderna”, publicada pela artista, em 1936, no Diário de S. Paulo, na qual tece comentários elogiosos à obra de Picasso. Para D’Alessandro, nessa visita ao ateliê, Tarsila poderia ter visto essas obras, uma vez que Picasso as manteve em sua posse, até Paul Rosenberg adquiri-las.

Diante do resgate de uma patrilinearidade, impõem-se a questão: Em que tais especulações corroborariam a compreensão da obra da artista? O professor e pesquisador Gabriel Ferreira Zacarias,33 33 Zacarias (2017, p. 214). em “Picasso primitif”, examina a exposição de mesmo nome exibida, em 2017, pelo Musée du Quai Branly, em Paris: “Y a-t-il quelque chose de nouveau à dire sur le rapport de Picasso aux arts premiers?”. A questão posta pelo autor abre horizontes para essa discussão: Há algo de novo a ser dito sobre a relação entre o modernismo brasileiro e o europeu? O autor, em sua crítica, diz:

Cependant, avec une telle présentation, on peut toujours comprendre que la génialité de Picasso reste la mesure de toutes choses. L’intérêt de ces objets - d’histoires et de provenances si variées - ne résiderait en dernier ressort que dans leur possible parenté avec l’inventivité inépuisable du seul Andalou. Après tant de débats autour du virage global de l’art contemporain on voit combien il reste difficile de traiter de l’art moderne et notamment de ses “grands maîtres”, sans retomber dans de vieux présupposés. 34 34 Ibid., p. 215.

Para a exposição estadunidense, a genialidade e a patrilinearidade de Picasso e Cézanne ainda são critérios pelos quais o modernismo periférico, em especial a produção de Tarsila, são compreendidos. Desse modo, a instituição perde a oportunidade de exibir a produção da artista desde o ponto de vista de uma modernidade múltipla. Da mesma forma, a mostra esvazia-se do debate sobre as questões raciais. Com isso, urge pensar em novos modos de ver e exibir a obra A negra, o que terá compreendido a mostra subsequente, “Tarsila Popular”.

Sara Ruffino,35 35 Roffino (2018b). em “Why MoMA’s Exhibition of Towering Brazilian Modernist Tarsila do Amaral Misses the Mark”, diz:

D’Alessandro uses Tarsila’s words to further the idea of Anthropophagic consumption. She writes that it is “an example of the powerful process of accumulation, or continued ingestion, that was at the root of her conception of A negra as a bather.” In other words, D’Alessandro uses the figure’s physical distortion-done in the service of her forced labor-as a key to Tarsila’s aesthetic style. Had D’Alessandro instead considered what it might mean to view this painting through the layered racial and economic circumstances in which it was made, the conversation could have become more timely, relevant, and ultimately more revealing of the work itself. Yet this exhibition seems to have been planned in a bubble. Racial tensions may be dealt with differently in Brazil and the United States, but isn’t an exhibition of this sort the perfect opportunity to look at how and why they are different and what that has meant for their respective art histories?

A autora critica também a leitura estritamente formalista apresentada pela curadoria. Assim, o MoMA parece não ter oferecido respostas suficientes sobre esse debate, resumindo-se a relacionar a obra de Tarsila à de Cézanne, reafirmando a construção de uma modernidade eurocentrista. Dentre as críticas tecidas à exposição destacam-se, ainda, as proposições de Danielle Stewart36 36 Stewart (2018, p.E24). sobre o silêncio “ensurdecedor” das instituições diante das questões raciais:

After all, her first solo show, which debuted the famously bare-breasted Afro-Brazilian figure of A negra, was held in Paris. While it is unfair to judge Amaral’s racial preconceptions in accordance with twenty-first century standards, the pains with which the art historical community has skirted the subject, belie the rich dialogue surrounding Brazilian racial dynamics across other disciplines (especially history and sociology).

Diante dessas críticas, faz-se necessário observar a leitura efetuada pelo MASP por meio da mostra “Tarsila Popular”. Atento aos entraves postos pela exibição de A negra, a instituição realiza uma revisão que culmina com a publicação de uma coletânea de dez textos inéditos, no quais seis apresentam releituras da obra em diálogo com as pautas raciais. A instituição projeta também como vanguarda nessa reavaliação e, junto a uma programação anual que contemplou a mise-en-scène do trabalho de mulheres artistas ao longo do ano de 2019, oferece novas interpretações e discussões.

Algumas décadas se passaram sem que nossos críticos e historiadores dessem a devida atenção a narrativas populares, indígenas e afro-atlânticas na obra de Tarsila, mais interessados estavam nas referências e genealogias europeias e formalistas, em críticas e interpretações marotas. Talvez fosse necessário para elas naquele momento buscar tais referências para legitimar a artista. Hoje, após as grandes exposições da artista em Nova York e Chicago, em 2018, e com planos para outras em Londres e Paris, podemos nos voltar para outros assuntos.37 37 Pedrosa e Oliva (2019, p. 35).

Além disso, “Tarsila Popular”, procurando dissociar-se da leitura mais canônica em torno da tríade, dissolve sua apresentação no interior da expografia. A divisão dos eixos da mostra (que não dispõem de títulos) parece ecoar a proposta de “Tarsila Viajante”. Dentre as seis subdivisões, destaca-se a primeira delas, em que se apresenta uma série de autorretratos. o espectador é recebido com uma justaposição da obra A negra e é confrontado com as asperidades formais entre as obras: a representação de si e a do outro. Essa apresentação também fora discutida, em 2017, pelo pesquisador Thiago Gil em Um boxeur na arena: Oswald de Andrade e as artes visuais no Brasil, em sua tese defendida em 2018.

Embora a curadoria tenha divergido em termos expográficos da mostra estadunidense e de “Tarsila Viajante”, evitando os pressupostos de uma velha leitura, A negra permanece um entrave. O texto “Is Brazil’s Most Famous Art Movement Built on Racial Inequality? A New Generation Argues ‘Yes’” apresenta entrevista de Rosana Paulino, artista contemporânea, que diz:

The problem with Anthropofagia in relation to black individuals is that it devours other cultures, including ours, and does not give us back something useful or even the real recognition of this swallowed black culture. We are only devoured.” she says. “Afro-Brazilian art, up until now, has been at the margin of a hegemonic system, while Anthropofagia is one of the narratives created by an urban elite in São Paulo. The place of blacks in this narrative is that of object of study, not that of partners in the construction of a common narrative. 38 38 Cf. Roffino (2018a).

Desse modo, ao promulgar um discurso de revisão histórica e revisitação da modernidade, o MASP não pode evitar o embaraço provocado pela exibição de A negra. O projeto expográfico desse primeiro eixo efetua, diante das correntes leituras do quadro, uma tentativa de solucionar e discutir a representação da negritude em Tarsila, evitada anteriormente. Contudo, a projeção desse discurso abre espaço para uma nova questão que concerne diretamente ao espaço expositivo. Embora o museu tenha consciência do debate apresentado e ofereça uma coletânea de textos que discutem sob diferentes prismas os embates da apresentação da obra, a discussão parece perder-se em meio à justaposição de “A negra” e Autorretrato ou Manteau rouge, além dos rasos textos de mediação.

Por fim, “Tarsila Popular” marcou o encontro do público com obras que não eram vistas no país há 2 anos, como A Cuca ou Abaporu, exibida pela última vez em em 2008, além de Pescador, inédita para o grande público. A mostra também se configurou como o maior escopo temporal já apresentado, abrangendo um recorte que se estendeu de 1920 a 19 0. A obra Batizado de Macunaíma, de 19 6, foi apresentada pela terceira vez ao público, suas exibições anteriores datam de 19 1 no contexto da retrospectiva “Tarsila 1918-19 0”, exibida pelo MAM de São Paulo e do Rio de Janeiro. A última sala da mostra do MASP exibiu Batizado de Macunaíma entre Abaporu e Antropofagia. A sinuosidade das figuras de sua fase áurea contrasta com a dureza dos ângulos retos presentes na obra de 19 6. Essa justaposição provoca estranhamento não apenas pela dimensão das telas - Batizado de Macunaíma é uma tela de grandes dimensões e parece evocar um tema heroico -, mas pela aproximação inabitual. Em “Tarsila populista”, Tadeu Chiarelli39 39 Chiarelli (2019). afirmou que, para o MASP,

parece não haver problemas em colocar lado a lado duas obras que, apesar das aparências, são a negação uma da outra. Assim agindo, a instituição naturaliza o artifício, agregando ao legado de Tarsila a ser celebrado e rememorado, aquilo que restou nos porões das instituições públicas ou mostrado com certo pudor em paredes particulares.

Para o crítico de arte, Batizado de Macunaíma é a manifestação de uma poética já rarefeita no conjunto da obra da artista. Expressão de um fim melancólico ou não, a estratégia de dissolução da tríade ganha aqui novos contornos e insere o espectador em contato com uma produção posterior da artista, menos notável, e evita, assim, o confronto com o reflexo de A negra, presente em Antropofagia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo examinou as leituras distintas que emergem de um conjunto de quatro exposições dedicadas a Tarsila do Amaral. O recorte apresentado priorizou a exibição da obra A negra, marco na produção da artista e peça-chave na construção da narrativa modernista brasileira. Ficou demonstrado que, apesar de disporem de um conjunto de obras similares, as exposições constituem-se como discursos distintos. O hiato entre as mostras “Tarsila Viajante” e “Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil” motivou a construção de um panorama de sua trajetória que examinou brevemente a institucionalização de seu trabalho, bem como suas mostras coletivas e individuais. Ainda que o Art Institute of Chicago e o MoMA assumam o olhar tardio frente à produção de Tarsila, as instituições não discutem seus porquês. Como se demonstrou, ao longo dos anos de 1940, Lincoln Kirstein não adquiriu nenhuma obra da artista - apenas em 2019, ano de exibição da mostra, a instituição integra à sua coleção A Lua, junto à doação de Estudo de composição [figura só] III, de 1930, doado por Max Perlingeiro dois anos antes.

Verificou-se que os discursos que emergem das diferentes expografias ora reforçam a narrativa que tem em Aracy Amaral sua pedra angular, ora distanciam-se dela. “Tarsila Viajante”, e, em especial, a exibição da tríade - A negra, Antropofagia e Abaporu -, filiou-se às leituras nacionais mais tradicionais sobre a artista. No entanto, é necessário mencionar os méritos da mostra. Além da exibição de obras inéditas, “Tarsila Viajante” celebra o primeiro catalogue raisonné dedicado a artista. Já “Tarsila Popular”, em sua organização de eixos, parece ecoar o percurso proposto pela mostra curada por Regina Teixeira de Barros.

Por meio da vasta coletânea de textos produzidos para a ocasião da mostra, “Tarsila Popular” discute questões de raça e classe. Contudo, a expografia não desfruta da mesma amplitude, seja pelos textos de mediação, que não evocam em profundidade aspectos abordados em sua coletânea, seja porque a divisão de seus eixos remete à “Tarsila Viajante”, salvo poucas inversões. Por fim, a exposição do MASP exibe a artista sob a égide do gênero em um ano dedicado à exibição da produção de mulheres artistas. Sua reaparição no Brasil, depois de uma década sem mostras individuais e de sua passagem por solo estadunidense, dá-se sob a divisa “Histórias das Mulheres, Histórias Feministas”. Tarsila, ao passar a ser alvo das preocupações do centro hegemônico, também reaparece sob essa faceta: a artista seria a peça última para a compreensão do modernismo brasileiro inaugurado por Portinari. Assim, o Art Institute of Chicago e o MoMA respondem às demandas globais: maior visibilidade à produção artística de mulheres e mais artistas oriundos do Sul global.

No que concerne ao recorte interno das exposições efetuado nesta discussão, destaca-se a problematização de A negra. “Tarsila Popular” exibe a obra em seu primeiro núcleo. O esfacelamento da tríade impede, desse modo, que se construa a genealogia da produção da artista. Isso porque Antropofagia apresenta a fusão das duas figuras advindas de A negra e Abaporu. O percurso evolutivo exibido pelas mostras é, primeiramente, encontrado em “Tarsila Viajante” e, em seguida, na exposição estadunidense. O MASP, por sua vez, ao romper com a justaposição clássica das obras, coloca em evidência aspectos até então pouco evidenciados. O primeiro deles concerne ao contraste entre a representação que a artista faz de si mesma e a representação do outro - uma mulher negra. A estratégia também impede que o espectador, seduzido pela importância das três obras, adentre o espaço expositivo norteando-se por um discurso já consolidado. Finalmente, a mostra fricciona as asperezas formais de sua produção mais expoente, com aquela menos benquista pela crítica.

Diante das polêmicas suscitadas pela exposição estadunidense, a exibição de A negra junto a Abaporu e Antropofagia revelaria o que há de colonial na produção modernista branca do começo do século XX. Assim, faz-se necessário resgatar as afirmações de Herkenhoff em texto publicado no catálogo de “Tarsila popular”:

Tarsila, em depoimento, descreveu sua casa na fazenda São Bernardo: “Ligada à sede, a casa das donzelas (escravas virgens), depois da libertação foi assoalhada por d. Lydia” Na segunda metade do século 20, quase oitenta anos depois da Abolição, certas perspectivas do regime escravocrata e uma visão senhorial do mundo permanecem em sua fala sobre a escravidão… São modos do Brasil “cordial”.40 40 Herkenhoff (2019, p. 114).

As leituras do conjunto da obra da artista também se distinguem pelas posições entre centro e periferia. O Art Institute of Chicago e o MoMA, ao contemplarem Tarsila com sua primeira mostra individual, exercem o privilégio de torná-la conhecida e global, outorgando-lhe o epíteto de criadora do modernismo brasileiro. Vê-se, portanto, que o MoMA, em particular, instituição que antes não reconhecera a produção da artista, hoje atua na construção de discursos legitimadores.41 41 Simioni, op. cit., p. 49 . Contudo, a construção dessa narrativa hegemônica coloca em cena elementos desconectados da narrativa local, como o argumento a respeito de Carmen Miranda ou, ainda, o apego a uma genealogia europeia em detrimento das especificidades de produção do contexto brasileiro.

LIVROS, ARTIGOS E TESES

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  • SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. De excluídas à consagradas: notas sobre inserções femininas no campo artístico brasileiro. In: ENCONTRO SOBRE A PESQUISA EM ARTES, 8., Campinas, 2020. Anais… Campinas: [s. n.], 2020a.
  • SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras. São Paulo: Edusp , 2008.
  • SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; FETTER, Bruna. Brazilian Female Artists and the Market: A Very Unique Encounter. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 10 , p. 241-2 , 2016.
  • STEWART, Danielle. Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil. Luso-Brazilian Review, New York, v., n. 2, p. E22-E24, 2018.
  • ZACARIAS, Gabriel Ferreira. Picasso Primitif. Marges: Revue d’Art Contemporain , Vincennes, v. 2 , p. 214-21 , 2017.

SITES

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    » https://bit.ly/3E8Bcyt
  • ROFFINO, Sara. Is Brazil’s Most Famous Art Movement Built on Racial Inequality? A New Generation Argues ‘Yes’. Artnetnews, New York, 13 mar. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3LWxV82 Acesso em: 3 ago. 2019.
    » https://bit.ly/3LWxV82
  • ROFFINO, Sara. Why MoMA’s Exhibition of Towering Brazilian Modernist Tarsila do Amaral Misses the Mark. Artnews, New York, 1 mar. 2018b. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3JySwxE Acesso em: 8 jun. 2019.
    » https://bit.ly/3JySwxE
  • 2
    “Presenças solares” é um termo cunhado no texto “Modernas em museus: uma consagração tardia” (SIMIONI, 2019SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Modernas em museus: uma consagração tardia. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André. História das mulheres, histórias feministas: antologia. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand . p. 483-499. 2019., p. 496).
  • 3
    Para a Cidade Luz, também se dirigia Anita Malfatti. A trajetória das artistas em Paris, em 1922, é analisada pela professora e pesquisadora Maria de Fátima Morethy Couto (2008COUTO, Maria de Fátima Morethy. Caminhos e descaminhos do modernismo brasileiro: o ‘confronto’ entre Anita e Tarsila. Esboços, Florianópolis, n.19, p.12 -1 0, 2008.) em “Caminhos e descaminhos do modernismo brasileiro: o ‘confronto’ entre Anita e Tarsila”.
  • 4
    Amaral (2003 [197 ]AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Edusp, 2003 [197]., p. 309).
  • 5
    Cardoso (2019CARDOSO, Renata Gomes. As exposições de arte latino-americana no Riverside Museum de Nova York em 1939 e 1940: trâmites da organização da seção brasileira. MODOS: Revista de História da Arte, Campinas, v. 3, n. 1, p. 9-24, 2019., p. 13).
  • 6
    Ibid.
  • 7
    Simioni (2020aSIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. De excluídas à consagradas: notas sobre inserções femininas no campo artístico brasileiro. In: ENCONTRO SOBRE A PESQUISA EM ARTES, 8., Campinas, 2020. Anais… Campinas: [s. n.], 2020a.).
  • 8
    Nastari (201NASTARI, Danielle Misura. A gênese da coleção brasileira do MoMA: a década de 1940, Portinari e artistas seguintes. 2016. Dissertação (Mestrado em Estética e História da Arte) - Museu de Arte Contemporânea, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. , p. 85).
  • 9
    Ibid., p. 181.
  • 10
    Amaral (2003AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Edusp, 2003 [197]., p. 381).
  • 11
    Magalhães (2019MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Como a Bienal ajudou o Brasil a formar seu primeiro acervo de arte moderna internacional. In: MAGALHÃES, Ana Gonçalves (Org.). Um outro acervo do MAC USP. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2019. p. 9-19., p. 15).
  • 12
    Silva (2020SILVA, Mariana Leão. Maria Leontina, Tarsila do Amaral, Prunella Clough e Germaine Richier: mulheres artistas e prêmios de aquisição na Primeira Bienal de São Paulo. 2020. Dissertação (Mestrado em Estética e História da Arte). Museu de Arte Contemporânea, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020., p. 13 ).
  • 13
    Ibid., loc. cit.
  • 14
    Simioni (2019SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Modernas em museus: uma consagração tardia. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André. História das mulheres, histórias feministas: antologia. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand . p. 483-499. 2019.).
  • 15
    Ibid., p. 493).
  • 16
    Ibid., loc. cit.
  • 17
    Simioni (2019SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Modernas em museus: uma consagração tardia. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André. História das mulheres, histórias feministas: antologia. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand . p. 483-499. 2019., p. 494).
  • 18
    Ibid., loc. cit.
  • 19
    Ibid., p. 495).
  • 20
    Simioni e Fetter (201SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; FETTER, Bruna. Brazilian Female Artists and the Market: A Very Unique Encounter. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 10 , p. 241-2 , 2016. ).
  • 21
    Lima (2020LIMA, Nerian Teixeira de Macedo. Tarsila global: releituras de sua obra. 2020. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2020., p. 82).
  • 22
    Pollock (2011POLLOCK, Griselda. A modernidade e os espaços da feminilidade. In: MACEDO, Ana Gabriela; RAYNER, Francesca. Género, cultura visual e performance. Famalicão: Húmus, 2011.).
  • 23
    Barros (2008BARROS, Regina Teixeira de. Tarsila viajante. In: AMARAL, Aracy; BARROS, Regina Teixeira de (Org.). Tarsila Viajante. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2008. p. 21-3 . Catálogo., p. 34).
  • 24
    Barros (2008BARROS, Regina Teixeira de. Tarsila viajante. In: AMARAL, Aracy; BARROS, Regina Teixeira de (Org.). Tarsila Viajante. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2008. p. 21-3 . Catálogo., p. 30-31).
  • 25
    Barros, op. cit., p. 31.
  • 26
    A obra A negra foi cedida pelo MAC-USP que, em contrapartida, recebeu Tour Eiffel (192 ), de Robert Delaunay, obra que integrara a coleção de Tarsila e que hoje pertence ao The Art Institute of Chicago. Em 3 de maio de 2018, o MAC-USP realizou o evento “A Torre Eiffel em São Paulo: Tarsila Colecionadora”, com a participação de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros.
  • 27
    D’Alessandro e Oramas (2017D’ALESSANDRO, Stephanie; ORAMAS, Luis Pérez. Tarsila do Amaral: Devouring Modernist Narratives. In: ORAMAS, Luis Pérez; D’ALESSANDRO, Stephanie (Ed.). Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil . New York: Museum of Modern Art , 2017. p. 16-26., p. 1 ).
  • 28
    Ibid., loc. cit.
  • 29
    Lima, op. cit., p. 204.
  • 30
    D’Alessandro (2017D’ALESSANDRO, Stephanie. A negra, Abaporu and Tarsila’s Anthropophagy. In: ORAMAS, Luis Pérez; D’ALESSANDRO, Stephanie (Ed.). Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil. New York: Museum of Modern Art, 2017. p. 38- ., p. 38).
  • 31
    Transcrição do audioguia disponível em: https://www.moma.org/audio/playlist/48/733.
  • 32
    D’Alessandro, op. cit., p. 40.
  • 33
    Zacarias (2017ZACARIAS, Gabriel Ferreira. Picasso Primitif. Marges: Revue d’Art Contemporain , Vincennes, v. 2 , p. 214-21 , 2017., p. 214).
  • 34
    Ibid., p. 215.
  • 35
    Roffino (2018bROFFINO, Sara. Why MoMA’s Exhibition of Towering Brazilian Modernist Tarsila do Amaral Misses the Mark. Artnews, New York, 1 mar. 2018b. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3JySwxE . Acesso em: 8 jun. 2019.
    https://bit.ly/3JySwxE...
    ).
  • 36
    Stewart (2018STEWART, Danielle. Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil. Luso-Brazilian Review, New York, v., n. 2, p. E22-E24, 2018., p.E24).
  • 37
    Pedrosa e Oliva (2019PEDROSA, Adriano; OLIVA, Fernando. Tarsila Popular . In: PEDROSA, Adriano; OLIVA, Fernando (Org.). Tarsila Popular . São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 2019. p. 30-37. Catálogo., p. 35).
  • 38
    Cf. Roffino (2018aROFFINO, Sara. Is Brazil’s Most Famous Art Movement Built on Racial Inequality? A New Generation Argues ‘Yes’. Artnetnews, New York, 13 mar. 2018a. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3LWxV82 . Acesso em: 3 ago. 2019.
    https://bit.ly/3LWxV82...
    ).
  • 39
    Chiarelli (2019CHIARELLI, Tadeu. Tarsila Populista. ARTE!Brasileiros, São Paulo, 12 jun.2019. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3E8Bcyt . Acesso em: 27 ago. 2020.
    https://bit.ly/3E8Bcyt...
    ).
  • 40
    Herkenhoff (2019HERKENHOFF, Paulo. As duas e a única. In: PEDROSA, Adriano; OLIVA, Fernando (Org.). Tarsila Popular. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 2019. p. 98-11 . Catálogo., p. 114).
  • 41
    Simioni, op. cit., p. 49 .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2021
  • Aceito
    02 Fev 2022
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