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Transculturalismo e translinguismo na contemporaneidade1 1 Resenha de: MELLO, Ana Maria Lisboa de ; ANDRADE, Antonio (orgs.). Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019. 194 p.

Transculturalism and Translinguism in Contemporary Times

MELLO, Ana Maria Lisboa de; ANDRADE, Antonio. (Orgs.). Translinguismo e poéticas do contemporâneo . Rio de Janeiro: 7Letras, 2019. 194p.

Translinguismo e poéticas do contemporâneo tem todos os ingredientes para ser consulta obrigatória de pesquisadores, mestrandos e doutorandos nas áreas de Letras e Linguística, compreendendo estudos do contemporâneo, comparados, transdisciplinares e transculturais. Os autores têm todos grande competência em suas respectivas áreas, com grande número de artigos e livros publicados sobre o tema.

Na introdução, os organizadores explicam o que entendem por translinguismo:

o translinguismo, para além da visão autonômica de língua enquanto sistema, compreende as múltiplas imbricações enunciativas de naturezas diversas como uma dimensão constitutiva do discurso (p. 11).

Nessa medida, se depreende que os discursos que se criaram para construir as identidades nacionais implicaram em rasuras desse “continuum translíngue / transcultural” que será, portanto, o ponto de convergência da reflexão dos autores que integram o presente volume.

O livro é o volume inaugural da Coleção Novos Estudos Neolatinos, do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. Integram o coletivo 9 estudos, sendo o primeiro o do pesquisador Ottmar Ette que é catedrático de Literaturas Românicas da Universidade de Potsdam (Alemanha). O autor, cujo capítulo nesse coletivo tem por título: “As literaturas do mundo: condições transculturais e desafios polilógicos de um conceito prospectivo”, assina também o livro publicado recentemente no Brasil, pela editora da Universidade Federal do Paraná, Escrever entre mundos; literaturas sem morada fixa (2019ETTE, Ottmar. Escrever entre mundos: literaturas sem morada fixa. Curitiba: Editora da UFPA, 2019. ) e já é conhecido pelos leitores da revista Alea, pela entrevista concedida a Gerson Neumann e Carla Luciane Schöninger, publicada no Volume 21/3 (NEUMANN; SCHÖNINGER 2019NEUMANN, Gerson; SCHÖNINGER, Carla Luciane. Entrevista com Ottmar Ette. Alea. Estudos Neolatinos, v.2, n. 3, p. 229-237, 2019.), e por organizar com Elena Palmero González o Volume 18/2 (GONZÁLEZ; ETTE, 2016GONZÁLEZ, Elena Palmero; ETTE, Ottmar. Editorial. Alea. Estudos Neolatinos, v.18, n. 2, p. 177-178, 2016.), número que também incluiu seu artigo “Pensar o futuro: a poética do movimento nos Estudos de Transárea” (ETTE, 2016ETTE, Ottmar. Pensar o futuro: a poética do movimento nos Estudos de Transárea. Alea. Estudos Neolatinos, v.18, n. 2, p. 192-209, 2016.). Percebe-se pela leitura de todos esses textos sua paixão pelo “trans”, prefixo que significa a ultrapassagem, o ir além, preconizando o fato de que no encontro de dois objetos culturais não há supremacia de um e apagamento de outro, mas a criação de objetos culturais novos. Seu foco principal é nas literaturas que já foram chamadas de migrantes e que hoje preferimos chamar de transculturais, cujos autores pertencem a dois ou mais contextos culturais diferentes escrevendo, portanto, nos interstícios de seus patrimônios culturais, o que acontece muito frequentemente em países de forte imigração como o Canadá. O autor denomina estas literaturas de “sem morada fixa” devido aos atravessamentos culturais que ocorrem, na medida em que um elemento cultural fertiliza o outro, dando origem a uma produção literária rica, polissêmica e polimorfa. No capítulo “As literaturas do mundo: condições transculturais e desafios polilógicos de um conceito prospectivo”, o autor problematiza a questão do que viria depois de Goethe ter imortalizado o conceito de literatura universal. Ele propõe a denominação “literaturas do mundo”, apelativo que expandiria o conceito de “literatura universal”, ancorada e centrada no Ocidente, “ao prazer da percepção de uma diversidade, sobretudo, transcultural” (p. 26).

A denominação “literaturas do mundo” remete a Michel Le Bris e Jean Rouaud que propuseram, em 2007, em conjunto com uma série de escritores oriundos de diferentes países que optaram pelo francês como língua de escritura, a denominação de “Littérature-monde”, definida como “une littérature nouvelle, bruyante, colorée, métissée qui disait le monde en train de naître, la rumeur de ces grandes metrópoles où se télescopaient, se brassaient, se mêlaient les cultures de tous les continents” (2007LE BRIS, M.; ROUAUD, J. (Dir.). Pour une littérature-monde. Paris: Gallimard, 2007. , p. 32).

Os movimentos transmigratórios nos levam a refletir sobre o que Ottmar Ette chama de uma escrita-entre-mundos que certamente seguirá no século XXI seu curso, levando à rápida progressão do que o autor chama, com toda a pertinência, de literaturas sem residência fixa, “literaturas, portanto, que, diante do pano de fundo das migrações e transmigrações, desenvolvem, sob o signo de uma poética do movimento, formas de escrita literária que já não se conseguem apreender adequadamente por meio das categorias de uma história espacial, centrada tanto historicamente quanto culturalmente” (ETTE, 2019ETTE, Ottmar. Escrever entre mundos: literaturas sem morada fixa. Curitiba: Editora da UFPA, 2019. , p. 35).

O segundo capítulo, de autoria de Patrick Imbert, professor da Universidade de Ottawa, no Canadá, intitula-se “Textos plurilíngues e transcultura: o Canadá no contexto da globalização”. Há muitos anos Patrick Imbert vem refletindo sobre as Américas transculturais, título aliás de um de seus inúmeros livros sobre a temática do inter, multi e transculturalismo, como Les Amériques Transculturelles (2013IMBERT, Patrick. Les Amériques transculturelles. Col. Américana. Québec: Presses de l´université Laval, 2013. ). As férteis reflexões de Patrick Imbert se impõem no contexto multilíngue e transcultural do Canadá, onde autores vindos das mais diferentes nações do mundo repensam suas identidades no cenário bilíngue e multicultural canadense. Estabelecendo perspectivas comparatistas inter e transamericanas, o autor contribui de maneira decisiva para as reflexões como as da presente edição preocupadas em focalizar o multilinguismo e as poéticas da transversalidade que se engendram no âmbito das três Américas.

Ana Maria Lisboa de Mello, de modo muito oportuno, reflete sobre “Translinguismo e transculturalismo em Sergio Kokis”, escritor nascido no Brasil e radicado há várias décadas no Quebec. Kokis, com alguns de seus títulos publicados em português, nasceu no Brasil de pais originários da Letônia, tendo que deixar o Brasil quando da promulgação do Ato Institucional 5, radicando-se definitivamente no Quebec. Logo, sua inclusão no presente coletivo é muito pertinente por sua pertença e também por seu desapego a vários contextos culturais. A pesquisadora Ana Maria Lisboa de Mello, que foi várias vezes bolsista e professora convidada em universidades do Quebec e de outras províncias canadenses, faz leitura em filigrana do percurso de Kokis como exilado e a expressão de seus processos de re/des/construção identitários experimentados através da arte (pintura) e da literatura, para além de seu ofício de psicólogo.

É sempre um prazer ler os textos de Maria Bernadette Porto, professora da UFF e pesquisadora do CNPq, pelo seu profundo conhecimento das literaturas ditas migrantes do Quebec. Ela foi a pioneira no Brasil na introdução das literaturas francófonas do Caribe e do Quebec no curso de Letras da UFF, sendo, portanto, profunda conhecedora das temáticas fundadoras do presente coletivo: o translinguismo e a transculturalidade. Ao abordar a questão da hospitalidade linguística vale-se dos estudos de Franca Bruera, da ensaísta quebequense Lise Gauvin e dos estudos de Jacques Derrida, além de ter refletido em artigos anteriores sobre o mesmo tema baseada na obra de Simon Harel. O tema lhe é, pois, familiar e a autora amarra com a devida precisão os conceitos teóricos de “Hospitalidade e translinguismo literário ao do imaginário de autores francófonos da contemporaneidade”. Maria Bernadette Porto traz à tona a delicada questão da poética da ausência, através da obra da escritora argelina Leïla Sebbar, que lamenta não ter aprendido a língua de seu pai (árabe), mas tão somente a língua da mãe, o francês. Assim, a escritora irá escrever em francês através de uma língua ausente (o árabe). Conclui sua análise trazendo exemplos da escritora canadense de língua francesa e de origem chinesa, Ying Chen, para reforçar as noções de habitabilidade e de hospitalidade, tentando provar que é impossível escrever hoje de forma monolíngue.

O quinto capítulo traz uma valiosa contribuição de Elena Palmero González, professora titular da UFRJ e pesquisadora do CNPq, sobre “Escritas translíngues e comunidade literária hispano-americana”. Originária de Cuba e profunda conhecedora das literaturas hispano-americanas, Elena Palmero González problematiza nesse capítulo “a articulação linear e contínua entre literatura, língua e território, um eixo que continua sendo problemático na historiografia literária hispano-americana, indagando as possibilidades de uma literatura que, na sua errância, tende a apagar a origem única para favorecer a multiplicidade de enraizamentos” (p. 97-98). Essa temática perpassa de um modo ou de outro várias outras contribuições do livro. A pesquisadora vê nas perspectivas translíngues e transculturais, produzidas a partir de movimentos diaspóricos, alternativas ideais contra a permanência de modos tradicionais de pensar as literaturas americanas tendo por base as noções de “representatividade, origem e identidade”.

Já Antonio Andrade, no sexto capítulo intitulado “Portunhol, prática translíngue no discurso literário contemporâneo”, aborda o papel do portunhol “no processo de desconstrução de fronteiras linguístico-nacionais”, problematizando formas de relação com a alteridade. O texto reivindica a interpenetração das línguas em textos literários, inscrevendo-se, para citar Ottmar Ette, em “uma perspectiva transreal de reflexão” (p.16). Em sua proposta, o autor argumenta em favor do aproveitamento do entrecruzamento poético do espanhol, português e guarani que garantiriam aos textos as características de intertextualidade e heterogeneidade enunciativa, oportunizando processos criativos de crioulização. O capítulo apresenta uma importante bibliografia teórico-crítica e abundante exemplificação de recortes poéticos da literatura hispano-americana. Conclui afirmando que a “escrita em portunhol representa uma potência do translinguismo, enquanto vontade de se dizer a partir de um lugar linguístico discursivo que vem do outro” (p. 132).

O sétimo capítulo é assinado por Meritxell Hernando Marsal, da Universidade Federal de Santa Catarina, que disserta sobre “A ficção científica como contra-história: as vozes aimarás do futuro no romance De quando em quando Saturnina de Alison Spedding”. A proposta é apresentar o mundo ficcional da autora que propõe uma mistura de línguas: o castelhano andino, o aimará e o inglês/spanglish, o que configuraria um mundo ficcional transnacional, solicitando traduções constantes. Valorização da memória oral e da proliferação de vozes, propondo uma lógica inclusiva, através de um invólucro da ficção científica de caráter distópico.

O capítulo a seguir, de autoria de Pablo Gasparini, professor livre-docente da USP, também comenta uma obra literária: Vivir entre lenguas de Silvia Molloy. Trata-se de um trabalho de grande originalidade sobre o sotaque, a partir da história da palavra Shibbolet, que foi utilizada como um truque para reconhecer quem não era daquela região e que, portanto seria um inimigo. Assim, milhares foram mortos, na verdade, pela incapacidade de perceberem o próprio sotaque, pois, ao pronunciarem de modo diferente, revelavam suas identidades. O estudo leva o autor a concluir que poderíamos “imaginar o ensaísta como aquele que consegue ouvir a própria língua como outra e dessa maneira pode tornar-se ouvinte de seu próprio shibbolet” (p. 173). Com maestria, o autor nos ensina a saber reconhecer o que o sotaque deixa transparecer de nossos afetos e que devemos aprender a nos distanciar das afiliações territoriais em que ele se inscreve para poder detectar e “se dizer a partir dos desdobramentos e incongruências dessas inscrições” (p. 173).

Por fim, o último capítulo, de Marcelo Diniz, professor da UFRJ, aborda a questões de tradução: “Mais um rondó: notas sobre tradução, o lúdico e a metalinguagem”. Abordando temas como leitura, intertextualidade e tradução, analisa redes dialógicas que ligariam escritores de diferentes épocas e geografias, como Gregório de Matos, Lope de Veja, Glauco Mattoso; Haroldo de Campos, Julio Cortázar; Vincent Voiture, Geral Guinness, concluindo pela existência de uma tendência transversal, “podendo a tradução ser tomada segundo a prática da produção da diferença” (p. 188).

Ao finalizar a leitura, vemos que os organizadores cumpriram com sua proposta de colocar em debate as noções de translinguismo e as poéticas do contemporâneo. Impõe-se a noção de Silviano Santiago de entre-lugar para entender a escrita translíngue “como o lugar da performatividade estética em que a intersecção de línguas/culturas leva a pensar o discurso não como instância homogênea, mas como produzido a partir de um entre-lugar” (os organizadores, p.18). Os conceitos de Homi K. Bhabha de passagem intersticial (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. , p. 22), de Mary Louise Pratt, de zonas de contato (1999PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Florinaópolis: Edusc, 1999. ), de in-between, de Walter Mignolo (2000MIGNOLO, Walter D. Local histories/global designs. Princeton University Press, 2000. ) e de Silvia Spitta (1995SPITTA, Silvia. Between two waters: narratives of transculturation in Latin America, Houston: Rice University Press, 1995. ) ou, ainda, de lugar intervalar, de Édouard Glissant (1981GLISSAT, Édouard. Le discours antillais. Paris: Seuil, 1981. ), dariam conta igualmente do trabalho de constituir os alicerces teóricos desse fascinante estudo das narrativas da transculturação nas Américas.

Referências

  • BHABHA, Homi K. O local da cultura Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
  • ETTE, Ottmar. Escrever entre mundos: literaturas sem morada fixa. Curitiba: Editora da UFPA, 2019.
  • ETTE, Ottmar. Pensar o futuro: a poética do movimento nos Estudos de Transárea. Alea. Estudos Neolatinos, v.18, n. 2, p. 192-209, 2016.
  • GLISSAT, Édouard. Le discours antillais Paris: Seuil, 1981.
  • GONZÁLEZ, Elena Palmero; ETTE, Ottmar. Editorial. Alea. Estudos Neolatinos, v.18, n. 2, p. 177-178, 2016.
  • IMBERT, Patrick. Les Amériques transculturelles Col. Américana. Québec: Presses de l´université Laval, 2013.
  • LE BRIS, M.; ROUAUD, J. (Dir.). Pour une littérature-monde Paris: Gallimard, 2007.
  • MIGNOLO, Walter D. Local histories/global designs Princeton University Press, 2000.
  • NEUMANN, Gerson; SCHÖNINGER, Carla Luciane. Entrevista com Ottmar Ette. Alea. Estudos Neolatinos, v.2, n. 3, p. 229-237, 2019.
  • PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Florinaópolis: Edusc, 1999.
  • SPITTA, Silvia. Between two waters: narratives of transculturation in Latin America, Houston: Rice University Press, 1995.
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    Resenha de: MELLO, Ana Maria Lisboa de ; ANDRADE, Antonio (orgs.). Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019. 194 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
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