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Charles-Ferdinand Ramuz: história de um mal-entendido

Charles-Ferdinand Ramuz: história de um mal-entendido

Pierre Guisan* * Doutor em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professor de Língua e Literatura Francesa.

Romancista suíço de "expressão francesa", como dizem os dicionários, nascido e falecido em Lausanne, Charles-Ferdinand Ramuz (1878-1947) produziu uma obra considerável, mal divulgada e em grande parte sequer publicada. Gozou de grande notoriedade entre os anos 1920 e 1950 e, desde então, caiu em relativo esquecimento. A literatura de língua francesa é dominada por uma capital, Paris, centro legitimado e estruturante da cultura. Ai de quem dela se afasta, e recusa a submissão aos ritos e às modas que condicionam a publicidade de toda obra...

Talvez se explique assim, em parte, a marginalização surpreendente de quem esteve no centro de um círculo de amigos, artistas ou escritores como Paul Valéry, André Gide, Igor Stravinsky, Bernard Grasset, entre muitos outros. Reconhecimento por ter ousado perturbar a ordem da mítica pureza da língua francesa, subvertendo a sua elegância, traindo o ideal clássico que ainda permanecia firme, realizando uma revolução com aquilo que considerava ser uma mera matéria-prima, a do artista-escritor, comparável à revolução impressionista.

Pela recusa dos compromissos, pelo afastamento voluntário do cenário parisiense dos debates intelectuais e estéticos, o isolamento de Ramuz se torna patente após a sua morte física, porém fica a importância da obra, que "torce o pescoço da sintaxe", para fazer da língua a ferramenta obediente que melhor servirá a vontade do artista, livre de ora em diante da ditadura castradora da "bela" língua.

O resto do que foi dito a respeito de Ramuz geralmente não passa de uma série de estereótipos errôneos, de preconceitos, de bobagens: não, ele não é escritor da terra, ele não é escritor "suíço" – a Suíça é uma mera abstração sem realidade para ele. Longe de ser regionalista, está à procura de uma expressão universal. As coisas lhe são matéria-prima à espera de serem moldadas pelo artista, meras ferramentas, que, por meio dele, alcançarão o seu significado cósmico: a silhueta dos homens curvados no trabalho do solo, a crueldade da natureza, a rudeza da frase, a rugosidade das palavras. O "país", tal como o define, é uma construção que delimita um quadro de instrumentos, a exemplo daqueles de que faz uso o pintor. Simples matérias-primas, como os volumes, as cores, as formas geométricas, as pastas e os pincéis; ou como os sons, os ritmos, as harmonias e as dissonâncias. O que Ramuz chamará país se limitará a uma íngreme orla lacustre, a parte do lago Léman situada entre Lausanne e os Alpes, cuja peculiaridade é ser uma construção humana, já que é inteiramente formada por terraços artificiais onde se cultivam os vinhedos, numa luta incessante contra a natureza inimiga do homem. Ritmo do país, dissonâncias, daí as profundas afinidades que o ligam a Cézanne ou a Stravinsky. Com este, aliás, Ramuz colabora na composição desta obra curiosa, meio poema, meio ópera: A história do soldado.

Se Ramuz não se reconhece como escritor suíço, há, entretanto, uma especificidade da paisagem literária suíça: a ausência quase absoluta do gênero romance até o surgimento de Ramuz – e de Blaise Cendrars, vale acrescentar. Uma razão fundamental para tal lacuna pode certamente ser encontrada no esforço coletivo dos artistas e escritores do século XIX na busca de uma identidade coletiva da jovem nação (a Suíça, como estado nacional federal, data de 1848), que a todos mobiliza, em particular no uso e na glorificação da natureza como mito identitário, já que a língua não poderia preencher esse papel em uma nação plurilíngüe, ao contrário dos outros países europeus, em que a língua – dita nacional – constituiria o alicerce do nacionalismo emergente. A Suíça, para Ramuz, não passa afinal de uma conveniência circunstancial oportunista, realidade política sem contrapartida cultural nem lingüística.

Tais circunstâncias o deixam ainda mais livre para inovar tanto na escritura quanto na composição da sua obra. Os anos durante os quais permaneceu em Paris foram bem aproveitados, apesar de ele não ter levado ao fim o seu projeto de tese sobre Guérin. Familiarizou-se com a efervescência cultural da capital, conhecendo os meios artísticos e literários e por eles se fazendo conhecer, mas a 1ª Guerra Mundial o obrigou a voltar à terra natal. Ao considerar que o seu período de formação havia terminado, e que o afastamento da "cidade-luz" seria necessário para o amadurecimento e a originalidade de sua obra, estabelece-se definitivamente em Lausanne. Os contatos, porém, mantêm-se e desfilam os visitantes durante esse período que separa as duas guerras mundiais. Chega o tempo da criação prolixa, da disciplina do trabalho, da exigência e das inovações estéticas. Longe de constituir um refúgio protegido das turbulências, a morada de Ramuz é um lugar de encontro e de intercâmbio, à imagem da Suíça "Romande" da época, onde as margens cosmopolitas do lago Léman acolhem, de Genebra a Montreux, passando por Lausanne, a intelligentsia artística, literária e política dos tempos. Ramuz não cede, porém, às modas, e inventa o seu modo de expressão que, confundido às vezes com o regionalismo, pretende usar o "país" e os seus personagens – camponeses, "paysans" – em um projeto universal, assim como o fez o Classicismo, utilizando-se de "heróis", personagens portadores da tragédia humana.

A pintura – de Cézanne em particular – e o cinema têm papel essencial em sua busca de uma estética moderna. As minuciosas anotações do Louvre1 1 Cf. Ramuz, C.-F. Notes du Louvre. Lausanne: Plaisir de Lire, 1999. dão testemunho do seu fascínio por uma forma de arte para a qual sempre lamentou não ser dotado – ao contrário da esposa, cujo talento de fato ele sufocou. O cinema surgiu como uma revelação, de modo que os textos parecem quase indicações de roteiros de filmes. Aliás, a filmografia relativamente considerável que se baseia na sua obra revela a facilidade de adaptação dos textos para o cinema, já que o ponto de vista do narrador se parece quase sempre com o do homem da câmera. Ramuz, além de ter participado algumas vezes de filmagens das suas obras como figurante, chegou a preconizar – meio brincando – o emprego de telas de cinema compridas, no sentido vertical, nas cenas de montanhas! De fato, ele demonstra ser um dos primeiros romancistas de língua francesa a tirar proveito das técnicas do cinema: o cenário se anima e se move, enquanto o sujeito – a câmera – parece imóvel.

Volumes, cores e movimento: o caráter pictórico e cinematográfico da obra romanesca de Ramuz parece reduzir os personagens a tipos. Os homens são geralmente vítimas das forças do mundo, de uma natureza implacável. O autor não deixa de retomar assim a grande tradição clássica, na qual o homem é reduzido a mero instrumento do destino, configurando a visão trágica da condição humana, joguete da crueldade das forças da natureza. Estamos, portanto, muito longe de qualquer obra de exaltação romântica ou regionalista da natureza. As suas narrativas sempre encenam a degradação progressiva, numa visão pessimista do triunfo da destruição, por meio da qual se revela esta verdade eterna: a beleza não existe no mundo. Apenas de maneira fulgente e efêmera, através de uma fresta precária, é possível ter uma breve visão do que a beleza poderia ser. O solo, a montanha, o lago e os vinhedos são elementos de uma paisagem depurada que de certo modo constituem os verdadeiros atores da tragédia humana.

Haveria de comentar ainda a obra ensaística de Ramuz, considerável, pioneira e pouco conhecida. Nela se refletem o rigor, a disciplina e a vontade inovadora que norteiam a escrita do ficcionista. A tarefa do escritor é construir uma língua nova, que chamará de língua-gesto, em oposição à língua-signo. A aventura da linguagem passa por ousadias feitas de rigor: Charles-Ferdinand Ramuz foi um desses aventureiros, que não poderíamos deixar de apresentar aqui.

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    Doutor em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professor de Língua e Literatura Francesa.
  • 1
    Cf. Ramuz, C.-F.
    Notes du Louvre. Lausanne: Plaisir de Lire, 1999.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
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