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DO SUJEITO CARTESIANO AO SUJEITO IDENTITÁRIO: SOBRE NATUREZA NARCÍSICA DO SOFRIMENTO

From the Cartesian subject to the identity subject: on the narcissistic nature of suffering

RESUMO:

O presente artigo tem um caráter especulativo. Ele tenciona apresentar a origem do sujeito identitário da psicanálise na filosofia cartesiana, ou mais precisamente no sujeito cartesiano. A minha tese é a de que Descartes funda o sujeito moderno na identidade dele com a consciência que o sujeito guarda para si mesmo de sua própria interioridade. Esse caráter identitário do sujeito cartesiano pode ser entendido em uma ótica psicanalítica, por meio da compreensão de que o ego tenta narcisicamente manter a sua própria integridade. Assim, sustento que Descartes inaugura em certo sentido o identitarismo por fornecer, com a sua compreensão de sujeito, a base que estrutura o ego na psicanálise, entendido como processo subjetivo de identificação consigo mesmo.

Palavras-chave:
Descartes; sujeito cartesiano; ego; narcisismo, identidade

Abstract:

My paper has a speculative character. It intends to present the origin of the identity subject in Cartesian philosophy. My thesis is that Descartes founds the modern subject in his identity with the awareness that he keeps to himself of his own interiority. This identity character of the Cartesian subject can be understood from a narcissistic perspective, at the center of which is the ego’s attempt to maintain its own integrity. Thus, I maintain that Descartes inaugurates, in a certain sense, the identitarianism.

Keywords:
Descartes; cartesian subject; ego; narcissism, identity

Introdução

Perto da confiança de um interlocutor íntimo e distante dos olhares inquisitores dos Deões e doutores da Faculdade de Paris (Sorbonne), a quem dirigiu as suas Meditações (1641) metafísicas, Descartes confidencia que o seu propósito ao escrever uma obra dedicada à metafísica era mais epistemológico do que propriamente metafísico (Carta de Descartes a Mersenne 28 de Janeiro de 1641 // seguindo a notação universal das obras completas de Descartes: AT, III, 297-298). A sua ideia era provar que o corpo se reduz às suas propriedades matemáticas da extensão. Com isso, ele conseguiria varrer para fora do âmbito científico o aristotelismo e conseguiria salvaguardar uma física focada em um tratamento estritamente quantitativo dos fenômenos naturais (Regras AT, X, p. 442 // O Mundo AT, XI, p.33, 39-40 // Princípios AT, VIII, p.78-79). Sobre isso, já escrevi muito. Meu ponto neste artigo é outro.

Ainda que Descartes tenha realizado um texto com vistas a fundamentar aquilo que seria a marca do século XVII, a saber, a física, ele termina, de forma não lateral, criando algo muito mais duradouro do que a física que esboçou em vários dos seus escritos e que encontraria nas Meditações o seu lastro epistêmico. Ele cria uma agenda de pesquisa; já iniciada com as inacabadas Regras para Direção do Espírito (1619-1628) e que ganhará as páginas das principais obras de filosofia dos séculos vindouros.

A criação, como ocorre várias vezes na história da filosofia, não tinha o seu planejamento pronto e acabado, mas vou mostrar que ela terminou por ser a base da noção de identidade com a qual o sujeito opera uma identificação consigo mesmo na psicanálise. Ou seja, o objetivo do presente artigo consiste inicialmente em mostrar como Descartes, ao inaugurar a compreensão do sujeito como aquele que tem posse sobre si mesmo, oferece as bases para o discurso identitário na psicanálise no qual o ego se identifica consigo mesmo. Em seguida, apresentarei as razões de como a identidade se converte, em termos psicanalíticos, em um mecanismo de defesa narcísico diante da acidentalidade (contingência) da existência e se funda na defesa da integralidade do ego. Assim, a minha tese é a de que, uma vez compreendida a identidade como a melhor forma de afirmação de si mesmo, ela se institui em termos psicanalíticos como mecanismo de defesa que mobiliza o que estiver ao seu alcance, inclusive a culpa, para manter a integridade do ego. Em certo sentido, o sujeito cartesiano é a base para o sujeito compreendido como ego na psicanálise.

O sujeito nas Meditações como proprietário de si

Em seu Meditações, Descartes inaugura a compreensão de que discurso do sujeito sobre si é uma imersão sobre o que consideramos ser nosso. É por isso que Descartes inicia seu processo de dúvida por aquilo que nos é mais próximo, diria imediato: os afetos. Assim, a veracidade dos afetos, se aquilo que sentimos corresponde a algo fora do âmbito da sensibilidade, importa menos do que a crença de que temos propriedade sobre os nossos sentimentos. Eles são nossos; privados. E essa capacidade de sentir nos é própria quando tomamos consciência enquanto a anunciamos discursivamente. Quando me narro, tenho certeza de que tenho certos sentimentos e que eles são meus.

Desse modo, o discurso tem um valor performativo para a afirmação de si mesmo, independentemente da veracidade do conteúdo por ele proferido. É por isso que o sujeito cartesiano é fundado não no que sente ou acredita, mas na propriedade sobre as suas ações de crer, sentir e pensar de modo geral. Na propriedade sobre seus afetos. Ninguém pode lhe dissuadir quanto à certeza de que eles são sua propriedade. Essa certeza anima o narrador das Meditações quando ele assere que não pode deixar de ser enquanto proferir o discurso sobre si mesmo, ainda que ele possa estar enganado sobre todas as outras verdades (o que de fato autoriza uma leitura performática do cogito como fez Hintikka, 2000HINTIKKA, J. Cogito ergo sum: inférence et performance. Révue de Méthaphysique et Morale, n.1, p. 3-13, 2000.). O único estado mental que não pode deixar de ser verdadeiro é a consciência de si. Em outras palavras, a dúvida pode pairar sobre todas as instâncias da primeira ordem, nossos sentimentos, por exemplo, visto que ela incide sobre a nossa relação com o mundo externo ou com os objetos de modo geral, mas não sobre a consciência dessas instâncias.

O narrador, presente no texto de Descartes, tem consciência de que imprime no mundo diferentes modalidades do seu pensamento, o que, em última análise, permite a ele se reconhecer naquilo que ele mesmo é: um sujeito que pensa. É o momento em que o narrador das Meditações se reconhece como uma coisa pensante cuja unidade permanece independente da modalidade do pensamento: se se trata, por exemplo, de uma afirmação, negação, dúvida etc. O parágrafo 9 da Segunda Meditação é incontornável porque é o momento em que o narrador realiza - toma consciência - a sua centralidade diante das diferentes modalidades discursivas sobre si e sobre o mundo: “Eu, eu sou coisa pensante, isto é, coisa que duvida, que afirma, que nega, que entende poucas e ignora muitas coisas, que ama, que odeia, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (Segunda Meditação, AT, VII, p. 28).

O sujeito se reconhece como aquele que sempre se refere a si mesmo quando o seu pensamento se refere ao mundo. A narrativa do mundo é, em última análise, uma narrativa de si porque o mundo só é apresentado por meio do sujeito. O sujeito narrador das Meditações cumpre uma função central no texto, que é instituir a unidade que desde sempre confere uma ordem para a narrativa ali arrolada. O que essa instituição ou fundação do sujeito consubstancializa é o caráter reflexivo do narrador das Meditações. Ainda que a demonstração da sua existência como sujeito pensante seja feita apenas na Segunda Meditação, o seu caráter autorreflexivo atravessa todo texto e está igualmente presente na decisão de redigi-lo e traçar um percurso narrativo sobre si mesmo.

Se, no plano epistemológico, a tese cartesiana é a de que podemos acessar as nossas propriedades essenciais a qualquer momento do tempo, elas estariam sempre disponíveis do mesmo modo, sendo necessário apenas um treinamento, meditação, da nossa atenção para nos afastarmos do mundo e mergulharmos em nós mesmos, no plano da compreensão pessoal, das propriedades que supostamente nos definem como pessoas e, tal como em geral pensa a psicanálise, vou argumentar agora que a reflexão cartesiana abriu caminho para um processo de reflexão ou mais precisamente de introspeção - um processo análogo ao das Meditações - por meio do qual reconhecemos no mundo aquilo que somos como imagem narcísica de nós mesmos. Assim, embora o mundo seja diverso, o nosso discurso lhe costura numa unidade egoica também quando estamos tratando de nossa subjetividade. Se o inconsciente é linguagem, como certa vez disse Lacan, é fundamental notar que o ego é igualmente linguagem, discurso, tal como Descartes já havia formulado.

Da autoreferência do sujeito cartesiano para o ego como critério subjetivo de identidade consigo mesmo

O processo de autoconhecimento pressupõe e funda um sujeito quando ele realiza um relato de si e se reconhece nesse relato como sendo ele mesmo. Assim, quando o sujeito pronuncia para si mesmo a decisão de realizar uma introspecção em sua interioridade, ele inicia o processo de identificação consigo mesmo na mesma medida que forma o seu ambiente interno; privado. O sujeito é fundado por Descartes como uma performance discursiva de si mesmo a respeito de si mesmo e em cujo foco está a identidade do sujeito consigo mesmo.

O sujeito é discurso. Mas não qualquer discurso. É um discurso autorreferente. Um discurso, portanto, identitário no qual se estabelece a identidade consigo mesmo por meio da compreensão de que temos posse sobre nós mesmos. O legado cartesiano é o de que não apenas temos uma interioridade, vasta interioridade, mas que ela pode ser identificada com aquela que discursa sobre si mesmo.

É o que ocorre nas Meditações quando o narrador decide suspender os objetos para os quais seus afetos se voltam, na esperança de referendar o que pode ou não lhe pertencer. Estar no seu interior. Ele decide o que considera privado e próprio à sua identidade. O sujeito se demarca na decisão de se reconhecer em todas as atividades do seu pensamento que são tomadas como expressões do seu pensamento. Com isso, instaura-se a abertura para a fantasia de que o sujeito, do ponto de vista de sua subjetividade, teria autonomia para decidir o que lhe pertence como estrutura identitária.

Nesses termos, a identidade cartesiana designa posse sobre mim mesmo. Uma posse discursiva sobre mim que confere um valor unitário a todas as minhas vivências tomadas como expressões de mim mesmo. Ela é o título de propriedade sobre si.

A narrativa constrói uma disponibilidade para canalizar as sensações para uma experiência unitária de si. A sensação de unidade, que experienciamos quando nos referimos a nós mesmos ao longo do tempo, é transformada em uma construção da narrativa de si que dá sentido a todas as vivências. A experiência da unidade de si é sobretudo da palavra. Mais do que um hábito que reúne sensações, como certa vez disse HumeHUME, D. Tratado da natureza humana. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000., a experiência de si é fabricada pelo discurso.

Por isso, a identidade nos oferta uma estabilidade quando discursivamente somos capazes de conferir um sentido privado - próprio a nós mesmos - a todos os acontecimentos do mundo, como se a variedade e diversidade desses acontecimentos guardassem, fantasmaticamente, uma relação com a nossa narrativa identitária de nós mesmos também em uma perspectiva subjetiva porque se encontram circunscritos a esta narrativa. Assim, discursamos sobre o nosso comportamento subjetivo como se todas as nossas ações ou pelo menos a maior parte delas estivessem conectadas conosco, porque articuladas e compiladas em uma mesma rede de significância.

Descartes parece abrir o precedente para que a fantasia de domínio do mundo, que o sujeito acredita que tem, possa fundar a fantasia de que o ego tem domínio sobre si quando discursa sobre si mesmo. O narrador das Meditações - é bom lembrar - primeiro acredita que se domina porque compreende como sendo seu tudo aquilo que lhe afeta. São os seus afetos e, por último, o seu corpo que são postos em suspensão quando o sujeito se autoriza a suspender todas as coisas materiais por meio da dúvida metafísica (FORLIN, 2004FORLIN, E. O papel da dúvida metafísica na constituição do cogito cartesiano. São Paulo: Humanitas, 2004.). O sujeito não decide sobre a natureza do mundo, mas decide a forma como esse mundo é representado e, nesta representação, ele confere uma ordem ao mundo.

Na medida em que o sujeito narra para si o mundo, ele se põe, nas Meditações, como o centro do mundo e identifica no mundo aquilo que é o seu espelho. O mundo se torna desencantado e sem sentido próprio, pois apenas possui um sentido relativo à ordem narrativa do discurso. O mundo em si é algo desconhecido; na realidade, ele não é sequer tão relevante, uma vez que conhecemos no mundo apenas aquilo que projetamos nele como a nossa própria imagem. Assim, quando falamos do mundo estamos falando de nós mesmos como sujeito pensante e, com isso, reforçando a nossa própria identidade.

Com essas breves considerações a respeito da fundação do sujeito moderno, tenciono levantar a seguinte a hipótese sobre a qual vou me demorar um pouco: a identidade se configura como uma dimensão importante do narcisismo. Acredito que essa noção de identidade, lastreada e fundada pelo sujeito cartesiano, fortalece a crença de que controlamos nossos afetos, estamos imunes às surpresas, próprias da acidentalidade da existência, e podemos alimentar a ilusão de que damos conta de tudo aquilo que se refere - fantasmaticamente - a nós mesmos.

A identidade como mecanismo de defesa

É ao narcisismo que é preciso atribuir, a título final,

a nossa resistência à verdade

quando ela nos faz parecer perdidos

numa natureza privada

desse centro apaixonado por ele próprio

Ricoeur, 1969RICOEUR, P. O conflito das interpretações. Portugal: Ed. Rés, 1969., p. 186

Para realizar as Meditações, o sujeito, fundado por Descartes, realiza o exercício do autocontrole que pressupõe, por seu turno, um sujeito que deseja se controlar e que ao mesmo tempo se funda no próprio exercício do controle de si. Desse modo, ainda que o desejo pelo controle de si não pressuponha um efetivo controle de si ou mesmo a possibilidade do controle de si - ele é fantasmático -, a posição narcísica nos conduz a acreditar que podemos imprimir a nossa marca (sempre pessoal) em tudo aquilo que tocamos por meio da palavra. Isto é, por meio de um discurso responsável por conferir um sentido comum a todas as nossas vivências. O ponto é que a própria ideia de controle de si pressupõe um si-mesmo e simultaneamente é o desejo de se controlar que funda a própria vontade de identidade. Nessa perspectiva, o sujeito cartesiano é também um sujeito de desejo. Um ser desejante. Um “eu” desejante, para ser preciso, uma vez que o texto é narrado na primeira pessoa. Descartes identifica o sujeito pensante ao eu que deseja se conhecer. O eu tem consciência de que deseja na mesma medida em que deseja a própria consciência de si.

Para retomar o percurso das Meditações, é um eu que controla os seus afetos, os põe em suspensão, para imergir na interioridade de si mesmo. Por meio dessa imersão, funda a própria identidade como aquele que é capaz de empreender uma meditação - introspecção sobre si mesmo - independente do mundo. O processo de autoconhecimento pressupõe e funda um eu quando ele realiza um relato de si e se reconhece nesse relato como aquele que profere a si mesmo. É o que Descartes assevera nas Meditações por meio do narrador do texto que se dá conta de que, ao discursar sobre si, é forçado a se reconhecer como aquele que existe. No original em latim, a conclusão é: ego sum, ego existo. Assim, sempre que o eu se pronuncia (quoties a me profertur) ele se põe como centro de sua própria existência. Em Descartes, portanto, há uma coincidência entre eu, ego e sujeito, visto que o eu é fundado por Descartes como uma performance discursiva de si mesmo que acompanha todas as representações, discursos, do sujeito. O sujeito é fundado na ação de pensar.

Nessa perspectiva, é possível perceber a presença de uma estrutura narcísica, visto que há uma circularidade no raciocínio cartesiano, na qual o sujeito ou “eu” sempre se volta para si mesmo. Há um eu desejante, que deseja domínio sobre si mesmo e que concomitantemente se reafirma como o centro do mundo. O mesmo eu que deseja é o que se encanta por si mesmo. Mas, afinal, o que deseja esse eu cartesiano? A minha aposta é que ele deseja manter a sua integralidade.

O narcisismo opera com a compreensão de que o controle sobre mim mesmo, transcrito na identidade que supostamente guardo comigo mesmo, converte-se em um controle sobre o modo como o mundo. Com efeito, o que está em foco aqui é a compreensão de que a fantasia do controle (a vontade de controlar a existência lhe ofertando garantias contra a sua acidentalidade constituinte) se dá no plano discursivo. Ela se dá na narrativa que fazemos de nós mesmos.

A fantasia de domínio do mundo tem raiz na fantasia do domínio sobre si e tem o seu assento no discurso do sujeito sobre si mesmo. O narrador das Meditações - é bom lembrar - primeiro acredita que se domina porque compreende como seu tudo aquilo que lhe afeta. Depois de ter consciência dos seus limites numéricos e temporais, que formam a geografia do si-mesmo, ele tem certeza de que o mundo é aquilo que não depende de sua vontade. A certeza sobre o mundo é do sujeito que sabe o que não lhe pertence ou aquilo que não lhe é privado. Nesse sentido, no plano epistêmico, por assim dizer, a certeza é dele. No plano pessoal também, porque o mundo só tem sentido naquilo que o sujeito significa como imagem afetiva de si. É a experiência subjetiva da afetação que importa para o sujeito cartesiano e narcísico.

Nessa perspectiva, a submissão do mundo à esfera do nosso desejo é uma forma de contornar a nossa existência - que é também mundo e, por conseguinte, contingente - com a narrativa de que tudo que se apresenta para mim é reflexo identitário de mim mesmo. De certa forma me pertence. Em uma posição narcísica, o mundo fala a língua do meu desejo sem necessariamente se conformar plenamente ao meu desejo, ou, mais gravemente, sem sequer precisar se conformar ontologicamente ao que desejo, visto que desejo que o mundo seja um reflexo de mim, ainda que ele seja independente de mim. Basta que discursivamente eu consiga articular a diversidade do mundo em função do que projeto sobre ele como traço mais próprio do meu desejo, isto é, da minha própria identidade.

A narrativa de si ou do sujeito sobre si mesmo, com a qual o narcisismo se constitui e para a qual ele também é o seu lastro mais fundamental, é caracterizada, de um ponto de vista subjetivo, pela convicção de que a nossa relação com o mundo não apenas está grávida de sentido (está repleta, por assim dizer, de sentidos latentes quando não fantasmaticamente intrínsecos ao que vivenciamos), como se faz nessa atribuição de sentido. É uma narrativa que tenta dar sentido a todas as nossas vivências dentro de um mesmo quadro de propriedades identitárias. Com essa narrativa, o ego endossa uma compreensão unilateral de si mesmo que transforma a diversidade de experimentações do mundo em um reforço de minha própria identidade. Prossigo fantasiando, do ponto de vista subjetivo (como procede analogamente o narrador das Meditações), que todas as minhas vivências se encontram costuradas no interior de uma mesma narrativa capaz de atravessar a minha existência de modo mais ou menos uniforme e independente do modo como o mundo me afeta. Essa é a base da noção de identidade do ego consigo mesmo. Trata-se, portanto, de uma base claramente cartesiana.

Guardamos a fantasia de que podemos controlar as nossas vivências no nível discursivo. Isto é, nós não apenas desejamos controlar nossas vivências, como efetivamente fantasiamos que controlamos o que em nossas vivências nos permite nos reconhecer como nós mesmos. Sedimenta-se, assim, a experiência da continuidade entre meu desejo de autocontrole e a fantasia de que exerço de algum modo esse autocontrole. O controle do ego sobre o mundo é lastreado por um processo de doação de sentido, no qual todas as nossas vivências migram para um campo repleto de significações, propósitos e destinações.

É na tessitura de uma rede de significados que se forma subjetivamente a estrutura defensiva do ego. Ela se constitui por meio da produção de excesso de sentido para bloquear a consciência da acidentalidade da existência. Nessa perspectiva, a identidade encerra um mecanismo específico de defesa que consiste na resistência à assimilação da dimensão acidental da existência pelo inflacionamento de sentidos de nossas vivências. Ela opera como se toda a nossa existência estivesse repleta de significados; mais gravemente: um mesmo significado, disponível na forma de uma biografia e independente de nossa vulnerabilidade em face da acidentalidade do mundo.

A crença na onipresença de significações e sentidos em nossa existência mineraliza a convicção de que podemos firmar as fronteiras do nosso ego na centralidade narrativa que assumimos quando discursamos sobre o mundo. Assim, a multiplicidade do feixe de diferentes sensações e vivências que nos atravessam converte-se, pela projeção narcísica, em uma narrativa que as padroniza com vistas a decalcar a imagem que tomamos como a nossa identidade. Cada vivência, independente do grau de acidentalidade que comporta, reafirma e homologa a comunhão entre o ego e a imagem do ego a respeito de si mesmo.

Mesmo as narrativas dos outros sobre nós são decantadas pela nossa tentativa de manter a sensação de que somos os mesmos. Assim, apesar das indiscutíveis influências da cultura, da raça, da política etc., tendemos a acreditar fantasmaticamente - esse é o ponto central do meu artigo - que somos um sujeito idêntico a si mesmo, tal qual o sujeito das Meditações de Descartes. Acreditamos também que o mundo conspira sempre em favor da identidade instituída por nós - sem dúvida pela mediação do outro e com o outro - para nós mesmos.

Em geral, assumimos uma compreensão subjetiva de nós mesmos como sendo a nossa expressão mais própria, a nossa identidade, ainda que seja intangível o modo como essa compreensão se institui enquanto tal no horizonte do tempo. Não conseguimos recuperar - nem mesmo por meio de um processo psicanalítico - a instituição da identidade porque ela não é passível de um mapeamento exaustivo; capaz de lhe determinar uma origem (BUTLER, 2015BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Editora Autêntica 2015.). A formação da identidade se inscreve, por um lado, em certos traços de personalidades que atribuímos a nós mesmos como nossos ao longo da nossa existência e a partir dos quais nos relacionamos com o mundo. Por outro lado, pela construção de uma narrativa que vai paulatinamente costurando todas as nossas vivências em uma espécie de cartografia responsável por colocá-las todas em um mesmo plano de propósitos. A identidade é também narrativa, claro. Mas, uma vez instituída, a identidade pode ser acessada em qualquer momento do tempo por meio de um exercício de introspecção. Um exercício de imersão na interioridade do si-mesmo que Descartes chamava, como mostrei, de meditação e, com isso, ele fundava não apenas o sujeito moderno, mas também a própria noção de identidade do ego consigo mesmo.

Portanto, a sensação de unidade, que experienciamos quando nos referimos a nós mesmos ao longo do tempo, é fruto da construção da narrativa que dá sentido a todas as vivências. A experiência da unidade de si é sobretudo da palavra. Fantasma. Com o discurso da identidade, as nossas vivências, que incluem uma relação contingente com o mundo duplamente contingente, passam a ser fantasiadas como fatos que ocorrem por razões mapeáveis; através de um discurso totalizante sobre si. A identidade funciona como um filtro que decanta o mundo para que ele seja refletido pela minha ótica. Para que o mundo reforce a minha identidade. É nesse sentido que o narrador das Meditações, quando afirma as propriedades do mundo, reforça as suas próprias propriedades, assim como o ego reforça a si mesmo quando discursa sobre o mundo. Afinal, a existência do mundo, do ponto de vista da minha narrativa, é apenas para reforçar a minha própria imagem. Autoimagem narcísica de nós mesmos. Ele só apresenta aquilo que meu desejo de identidade consente.

Essa perspectiva anima a seguinte leitura do clássico mito de Narciso, que proponho aqui na tentativa de tornar mais claro o meu empreendimento. A personagem que dá nome ao mito, cuja narrativa, sabemos, também varia historicamente, se demora sobre a contemplação de si. O ponto central é que a sua imagem lhe confere segurança de quem não encontra nada fora de si que possa demovê-lo de sua identidade (o mais belo). Tudo que está fora de Narciso é “eco” do que ele mesmo afirma. Narciso se vê cercado por si mesmo porque o seu discurso ecoa apenas a identidade que ele guarda para si. Quando contempla a sua imagem, Narciso assegura-se de sua identidade. Ele reconhece no mundo apenas si mesmo. O mundo não lhe afeta. Do sofrimento que se lhe abate, sabemos, ele sequer se dá conta. Ele morre afogado na identidade de si.

A identidade de Narciso funciona como um narcótico (palavra cuja origem compõe o nome de Narciso) que entorpece a sua percepção para que ele possa recolher-se dentro de si, na imagem de si que ele acredita controlar muito bem. Não raro, a identidade funciona como um entorpecente, no sentido de nos blindar diante de outros caminhos possíveis de singularização. É como se o que viesse de fora não nos afetasse. A imagem de si seria a camada protetora diante do mundo. Mas é possível que a identidade possa nos proteger, sobretudo quando ela se inscreve, como no caso de Narciso, em uma narrativa de sofrimento da qual muitas vezes sequer temos consciência? Aqui cabe a seguinte pergunta: o sofrimento pode ser compreendido como uma estrutura de resistência identitária?

Sofrimento como traço identitário

Outro ponto importante das Meditações de Descartes é o acento sobre a memória. Embora a memória seja tomada como uma das fontes dos erros em alguns dos seus textos, nas Meditações ela não está em questão, uma vez que a Segunda Meditação se inicia a partir de onde Descartes parou; segundo ele, no dia anterior. E assim se segue em todas as meditações. Sem a confiança mínima na memória, o narrador das Meditações não conseguiria avançar um dia sequer porque estaria precisando sempre repartir do início. A memória, não é preciso argumentar tanto, é crucial para o processo de identificação consigo mesmo e nas Meditações Descartes a pressupõe como o que garante uma unidade narrativa no tempo.

É evidente que a memória é também um processo narrativo, mas estou me referindo à memória que certas narrativas assumem como sendo a forma mais própria de definir aquele que narra a sua própria memória. Estou me referindo à memória a qual acesso para me reconhecer como o mesmo. Trata-se da memória que está presente nas Meditações e que é entendida com acúmulo de experiências de um mesmo sujeito. Ela é quem orienta a compreensão de que retemos algo a cada vez que nos referimos a nós mesmos. O narrador das Meditações começa cada meditação - que no tempo cronológico corresponde, cada uma, a um dia - sempre recuperando aquilo por meio do qual ele se reconhece como o mesmo. Sem a memória, entendida como a capacidade de manter alguns resíduos imagéticos de si mesmo, não há como o narrador do texto prosseguir no sentido de avançar uma compreensão de si. Para que ele permaneça o mesmo, é necessário que a sua memória seja um espelho cristalino do seu discurso.

Não se trata, portanto, de qualquer memória. É quando ela é entendida como o não esquecimento, segundo a acepção de Paul RicoeurRICOEUR, P. Finitud y culpabilidad. Madri: Taurus, 1982.. Essa forma de memória renova a impressão de que nos mantemos os mesmos no tempo por possuímos a seleção clara dos “fatos” e a sua interpretação correspondente. Ela nos constitui enquanto a mesma pessoa ao longo de nossa história. O sujeito é o mesmo em toda narrativa das Meditações. É inabalável. A lembrança, nesses termos, funciona apenas como processo de reforço identitário de si mesmo. Em outras palavras, ela não conhece outro destino a não ser a afirmação da identidade. A memória, neste caso, passa a ser o espelho do mesmo enredo que compõe a imagem que elegemos, nem sempre de forma consciente, como a nossa imagem mais própria. É assim também que vários relatos são entornados na clínica psicanalítica.

Mesmo quando a imagem relatada de si é marcada por sofrimento, tendemos igualmente a hipertrofiar a memória: deixá-la inscrita em um processo contínuo de reafirmação desse sofrimento. O sofrimento ganha sentido quando começa a conferir um enredo narrativo a diversos fatos acidentais costurando-os como se fossem resultado de uma mesma trama de fatalidades inexoráveis. Uma espécie de destinação própria de quem sofre.

A narrativa de sofrimento oferece, especialmente no caso dos neuróticos, o conforto da sedimentação de uma compreensão de si que evita lidar com a acidentalidade da existência. O sofrimento narra a monotonia do mesmo e varre fantasmaticamente para longe a dimensão contingente por meio da qual a vida se desenlaça. Sofrer, em alguns casos, é menos perigoso do que viver.

A narrativa do sofrimento se reveste de uma forma de opacidade em relação a novas experiências e tenta, por conseguinte, capitular tudo que nos acontece para um mesmo enredo; sobre o qual acreditamos colocar o nosso comportamento nos limites do nosso autocontrole. Ou seja, o sofrimento funciona muitas vezes como uma tentativa, não necessariamente consciente, de estar em controle da situação no sentido de se fantasiar a possibilidade de um sentido unitário para diversas acidentalidades que atravessam a nossa existência.

O sofrimento dá discursivamente previsibilidade a tudo que toca. Ele tenciona controlar fantasmaticamente o tempo quando narra as minhas vivências como se elas tivessem sempre um elo comum e fossem, no sentido radical, minhas. Ou melhor, nos faz crer que controlamos o tempo porque nos legaria apenas um espelho da nossa imagem.

Com a narrativa do sofrimento, fantasiamos a possibilidade de relativizar o tempo, lhe conferir outro ritmo, para que ele se desenlace como a afirmação de nossa própria identidade. Em outras palavras, o sofrimento, quando narrado como marca identitária, nos habilita a fantasiar a capacidade de antecipar e prever discursivamente todas as ações, enquadrando-as em uma mesma imagem de nós mesmos. Assim, o sofrimento garante o conforto psíquico da continuidade do tempo, mais radicalmente; da inexorabilidade dessa continuidade e, por conseguinte, da almejada estabilidade em torno da identidade. O tempo, neste caso, é entendido como a expressão do nosso narcisismo.

Notadamente, para que a continuidade do tempo se perpetue como uma fantasia narcísica de si, que projeta a sua sombra sobre a rede de acidentalidades que nos perpassa, é essencial que a narrativa identitária promova uma espécie de paralisia da memória. Ela precisa que o passado seja sedimentado em alguma base para enlaçar diferentes expressões do vivido, tomando-as como um ordenamento comum de escolhas. Minhas escolhas, claro. É sobre essa base que se pode trilhar um caminho de continuidade, por meio do qual as vivências são coadunadas em uma rede comum de sentidos. Assim, ainda que as vivências variem no tempo, o discurso sobre elas mantém um núcleo em virtude do qual nos identificamos com nós smesmos.

Nesses termos, o excesso de memória designa uma compulsão por uma narrativa que tenciona se instituir como o elo essencial entre diferentes momentos no tempo. Isto é, seu propósito é desfazer a aparente descontinuidade do tempo por meio de reafirmações, repetições, de um mesmo ego. Tanto a narrativa de sofrimento quanto outras formas de narrativa identitárias portam a mesma pretensão de hipertrofiar a memória com um mesmo conjunto de vivências e interpretações que lhe são aderentes para resguardar a unicidade da compreensão de si.

Assim, o sofrimento que paralisa a memória é também um mecanismo que pretende garantir um controle do tempo. A paralisia por repetição é um excesso de atribuição de sentido às vivências como se fosse efetivamente possível conferir sentido uniforme a tudo que vivemos por meio de uma narrativa que costura todas as nossas vivências em um enredo comum. É a vontade de controle que se debruça sobre a dimensão acidental da existência para lhe aprisionar no nosso ego e dar à existência a medida de nossa suposta individualidade. Aliás, só pode haver divisão, a divisibilidade que é negada no termo indivíduo, se houver tempo. Em outras palavras, a afirmação da individualidade implica, nesses termos, a negação do tempo; pelo menos no plano fantasmático.

É o desejo de poder traduzido na vontade de domínio sobre tudo, mas especialmente sobre nós mesmos. Notadamente, mesmo as narrativas de sofrimento perduram como desejo de determinação de si, na forma de uma unidade de propriedades que orienta as nossas ações para elas se performarem por meio da reafirmação discursiva de nós mesmos. A compulsão pela repetição, presente no sofrimento, revela-se como uma forma aguda de empoderamento, de posse sobre si mesmo, por meio da qual conferimos um sentido a todas as vivências acidentais que atravessam a nossa existência. Como se todas as nossas ações nos remetessem ao mesmo sofrimento.

Por isso, o desconforto inequívoco do sofrimento é de algum modo compensado pela fantasia de controle e certeza de si como expressão identitária. O pertencimento a si mesmo, ainda que na forma do sofrimento, conjuga-se com a vontade de controle, como uma antecipação do tempo que dá ao vivido o peso de esperar apenas aquilo que considera o seu espelho. O pertencimento a si mesmo funciona como uma espécie de destinação e funde o passado, o presente e o futuro em um mesmo tempo. Tempo de sofrimento. Isto é, como se fosse possível antecipar o tempo por meio da narrativa que, no presente, retoma o vivido como a expressão identitária de uma mesma ordem de sofrimento. Fantasiamos que o tempo transcorre ao sabor do nosso ansioso desejo de deixar as vivências no esteio do mesmo caminho; caminho supostamente monolítico que é inscrito em um sofrimento inexorável.

Por essa ótica, o sofrimento pode ser compreendido como o desejo ansioso de controle do tempo que se constitui pela continuidade da mesma narrativa capaz de conferir uma mesma rede de sentidos a tudo que nos toca. Ou seja, o passado é encarado como uma descontinuidade superficial em face de uma continuidade estrutural do tempo que reafirma, por meio de uma mesma narrativa, a própria continuidade do sujeito. Tanto o estado de sofrimento quanto outros estados, que mobilizam outros afetos, se inscrevem na sedimentação de uma base narrativa comum responsável por tornar não acidental o conjunto disperso de nossas vivências.

É por essa razão que podemos afirmar que o sofrimento é uma espécie de adesão incondicionada a si mesmo, mas calcado em uma ilusão narcísica anterior, qual seja, a de que controlamos o mundo porque ele espelha a nossa centralidade narrativa. Esse controle se sustenta nas nossas narrativas, que concatenam a dispersão acidental da existência em uma base comum. Essa base está assujeitada ao nosso desejo de sermos os mesmos ao longo do tempo. Desse modo, embora a origem do sofrimento seja dificilmente mapeável de forma exaustiva, é possível compreender por que ele se mantém, especialmente no caso dos neuróticos compulsivos.

O sofrimento serve de lastro narrativo identitário cuja segurança conforta por nos conectar a uma compreensão de si, na qual a acidentalidade da existência é desfocada e que, com isso, poderíamos fantasmaticamente estar livres da impermanência que a tudo devora. Antes a certeza do sofrimento, que nos fornece mecanismo de controle de si por nos oferecer a sensação de que estamos blindados em face da acidentalidade da existência, do que assumir e reconhecer que não controlamos a existência no sentido de que sempre há algo que nos escapa. Com efeito, preferimos, de modo inconsciente, claro, a culpa narcísica, decorrente da compreensão de que podemos dar conta de tudo (da fantasia da onipotência), a levar em consideração, no seu sentido radical, a acidentalidade da existência.

Assim, quando acompanhado da culpa, o sofrimento fortalece a crença de que é possível tecer uma transcrição de nossas vivências, chanceladas por nosso desejo. Ele se conjuga com a culpa para traçar um enredo que superfatura o ego porque converte todas as nossas vivências em um quadro de significação no qual nenhuma vivência está isenta de um significado, ou melhor, de uma interpretação que lhe confira sentido. O mundo, como uma totalidade fenomênica, me pertence porque posso conferir sentido a todas as minhas vivências; como se elas pudessem ser colocadas dentro de um processo de destinação. Vou mostrar agora que a culpa reforça a onipotência do ego.

Culpa como uma determinação identitária

Acredito que a culpa, quando entendida como uma compulsão a se vincular a uma falta (falha) e permanecer mobilizado por ela, promove um incremento em nosso narcisismo. Ela o expande. Assim, se, em um primeiro momento, a culpa pode se apresentar como o reconhecimento de uma falta, pelo menos de uma falta pontual, ela, quando assume a forma de uma compulsão à repetição, se mostra como uma engrenagem do próprio narcisismo porque, por meio dela, reconheço que sou a partir do momento que traço o que me falta. Isto é, quando reconheço que algo me falta endosso a minha própria identidade e delimito o que está fora dela, vinculando-me cada vez mais a mim mesmo.

Nesse sentido, a própria falta pressupõe um domínio sobre si mesmo capaz de reconhecer o que me falta. Eu determino a natureza do que me é estranho pelo reforço da minha própria identidade. Assim, tenho tanta consciência de mim que sei que algo me falta. No entanto, gostaria de sublinhar que a culpa não é a tomada de consciência da impossibilidade constituinte de me possuir ou de ter pleno controle sobre mim mesmo, mas, sim, o desejo de que nada me falte. Nesse contexto, a culpa como uma compulsão à repetição é o desejo do ego por sua própria plenitude.

Ao invés de apontar para o reconhecimento de que nunca somos capazes de ter controle pleno sobre todas as nossas ações, a culpa, nos termos que coloco aqui, é uma compulsão a se vincular a uma falta cujo objetivo é não fazer o ego colapsar. Ela é uma demanda por mais controle ou pela obediência irrestrita ao imperativo do hipercontrole de si diante do reconhecimento de uma falta. Com a culpa, fica patente a vontade de controle operando o desejo de que nada nos escape porque tudo é, em última instância, passível de uma narrativa que incorpora a centralidade do nosso ego. Assim, manter-se preso à culpa se torna uma forma de reafirmar constantemente o próprio ego a partir do que lhe falta.

A culpa se apresenta inicialmente como o sintoma de algo estranho ao que estou familiarizado e termina por reforçar o que considero que me é familiar e me constitui identitariamente. Ela instala uma aparente dualidade entre o estranho e o familiar com vistas a reforçar o que me é familiar. Tenho consciência de que meu leitor e minha leitora, mais ligados à área de psicanálise, devem ter acionado a lembrança do pequeno texto de Freud, O estranho (1915FREUD, S. O narcisismo (1915). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.). Sim, é uma lembrança que me parece imediata e incontornável.

Nesse texto, Freud, após longa investigação sobre a etimologia da palavra ‘estranho’ em várias línguas, reconhece que o estranho decorre “de algo familiar que foi reprimido”. A dualidade entre o estranho e o familiar, nos termos de Freud, caminha junta no mesmo sujeito. Essa intuição é interessante para o meu propósito. Sem precisar me comprometer com a tese do conteúdo recalcado como marca do estranho, presente na noção de estranheza aludida por Freud, gostaria de avançar no sentido de ratificar que, sim, o que consideramos estranho não é algo que escapa das fronteiras por meio das quais resolvemos, pelas mais variadas razões, nos definir, mas se refere a algo que urge ser controlado. Algo que rigorosamente não deveria ser tomado como estranho.

Nesses termos, é que o estranho termina revelando, na forma da culpa, o resíduo do narcisismo, a sua última trincheira, porque, diante do que foge de nosso horizonte de expectativa identitária, diante do que nos escapa, a culpa nos reconduz paradoxalmente a continuar com a crença de que somos os mesmos e que poderíamos ter controle sobre todas as ações que a nossa narrativa identitária referencia como nossa. A culpa não aponta para a incapacidade estrutural de controlar a nossa existência, mas, pelo contrário, reafirma a vontade de controle como o vetor fundante do ego quando nos exige uma retratação sem limites diante de uma falha que muitas vezes reside apenas no âmbito fantasmático.

Assim, continuamos no registro do narcisismo porque não aceitamos a que uma falta seja decorrente da impermanência que nos constitui, visto que, por meio da culpa, expandimos o desejo de termos controle total sobre as nossas ações. Quando a falta é tratada fantasmaticamente como algo absolutamente evitável ou que poderia simplesmente nunca ter ocorrido, ela termina por se inscrever no ego como uma dívida que não podemos pagar porque não temos poder de evitar a acidentalidade da existência e, com ela, as nossas falhas. É dívida que me conecta comigo mesmo porque hiperinflaciona o desejo por controle.

A culpa desautoriza que qualquer coisa nos escape; que fuja do nosso controle. A culpa transforma a falta estrutural, a impossibilidade de controlar plenamente a nossa existência e que nos leva invariavelmente a cometer erros ao longo de nossas vidas, em uma falha estritamente pontual e completamente evitável que poderia ter sido evitada, caso tivéssemos procedido bem na tarefa de termos o pleno controle de nossas ações. Ela faz sombra sobre um aspecto essencial de nossa existência - a sua acidentalidade constituinte - para nos manter conectados com a imagem identitária que guardamos fantasmaticamente de nós mesmos e que é protegida pela culpa por meio da qual reafirmamos o nosso próprio ego. A culpa que poderia ser entendida como um indicativo de que o que nos falta é a possibilidade de controle pleno sobre nós mesmos nos conecta, paradoxalmente, a nós mesmos no desejo por mais controle.

Isso ocorre porque a culpa inflaciona o desejo pelo poder que supostamente poderíamos ter sobre as nossas escolhas. Ela lança seus tentáculos sobre todas as nossas narrativas, no sentido de atribuir a elas a capacidade de construir um elo causal que reúne todas as nossas ações no interior de um mesmo propósito de controle de si. Culpabilizar-se é reforçar positivamente a ilusão de que nos controlamos plenamente e possuímos nossas ações como se elas fossem plenamente planificadas.

A culpa integra ações, que poderiam se dispersar nos caminhos do imponderável, para o interior de uma mesma unidade narrativa em que nada escapa como estranho a nós mesmos. Ela funciona como uma espécie de padrão de normalidade que incorpora as anomalias, descontinuidades próprias da existência, para dentro de nós mesmos: para dentro do que consideramos o nosso interior. Assim, a culpa que aparece primeiramente como uma ferida narcísica diante da plena falta de controle sobre si, visto que algo nos escapou, torna-se um prolongamento do narcisismo por não apenas pressupor que deveríamos ter dado conta do que se apresentou como estranho, como também por fazer da estranheza uma forma de me familiarizar comigo mesmo; com a minha identidade.

Por conseguinte, o estranho se transforma em familiar com o sofrimento. Ou seja, ao invés de assumirmos rupturas de comportamento, de expectativas, de compreensões de nós mesmos que impedem a sedimentação da identidade, sofremos, mas asseguramos que o que nos faltou reforça, por um lado, a nossa identidade e, por outro, o nosso desejo por mais controle. Com a culpa, o que era estranho passa a reforçar o próprio discurso identitário e mantém acesa a fantasia, iniciada nas Meditações de Descartes, da indivisibilidade do ego; como se fossemos, portanto, um narrador uniforme de nós mesmos idênticos ao longo do tempo.

REFERÊNCIAS

  • BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Editora Autêntica 2015.
  • DESCARTES, R, Meditações São Paulo: IFCH/UNICAMP, 1999.
  • DESCARTES, R. Œuvres de Descartes ADAM, C.; TANNERY, P.. 12v. 2ed. Paris: Vrin, 1986.
  • FORLIN, E. O papel da dúvida metafísica na constituição do cogito cartesiano São Paulo: Humanitas, 2004.
  • FREUD, S. O estranho (1915). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • FREUD, S. O narcisismo (1915). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • HINTIKKA, J. Cogito ergo sum: inférence et performance. Révue de Méthaphysique et Morale, n.1, p. 3-13, 2000.
  • HUME, D. Tratado da natureza humana Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000.
  • NIETZSCHE, F. Vontade de potência (1988). Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.
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  • RICOEUR, P. O perdão pode curar? [online]1996. Disponível em: Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/paul_ricoeur_o_perdao_pode_curar.pdf Acesso em: jun. 2009.
    » http://www.lusosofia.net/textos/paul_ricoeur_o_perdao_pode_curar.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2021
  • Aceito
    05 Jan 2023
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