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Não apenas, mas em vez disso

RESENHAS

Não apenas, mas em vez disso

Regina Herzog

Psicanalista; professora do Programa de Pósgraduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ; rherzog@marlin.com.br

O carvalho e o pinheiro: Freud e o estilo romântico.

Ines Loureiro

São Paulo: Escuta: Fapesp, 2002. 376 p.

O livro — fruto de um trabalho acadêmico — nos coloca, de saída, uma indagação: qual a pertinência, nestes tempos pós-modernos, de um debate sobre a relação entre o Romantismo e a Psicanálise quando ambos parecem remeter a problemáticas consideradas superadas? Em outros termos, haveria ainda lugar para essa discussão quando não temos mais a esperança romântica de alcançar a totalidade e quando a instância simbólica que sustenta o desejo vem sendo questionada por todos os lados?

Entretanto, a discussão se torna atual pelo modo singular como Ines Loureiro escolhe encaminhar a questão: em lugar de descrever ou explicar o que seja o Romantismo, propõe-se a pensar o “estilo romântico”, enfatizando nele não um anseio pela totalidade, mas principalmente o seu vigor revolucionário. Quanto à psicanálise, a autora não a reduz a um sistema de idéias ou a um saber datado, mas a torna viva através do movimento de criação de Freud frente à sua época. Dessa maneira é trazida para o centro da discussão uma imagem de homem em processo de esfacelamento e que, nos dias de hoje, se configura como um tema privilegiado pela própria psicanálise.

Postulando uma não-identidade entre Romantismo e Psicanálise, e tendo como programa de trabalho “o cotejamento da obra freudiana com as aspirações próprias ao estilo romântico”, Ines trabalha os temas fundamentais da psicanálise, temas que nos perturbam; dentre eles, a questão do monismo, da filosofia da Natureza, da especulação, do racionalismo versus irracionalismo.

Para desenvolver esta argumentação, o livro é dividido em três partes. A primeira consiste no levantamento da vasta bibliografia existente acerca das relações entre Freud e o Romantismo. Tarefa de fôlego não só devido à amplitude de textos sobre o assunto, como também pela diversidade de perspectivas encontrada entre os comentadores. Conforme assinala em sua exposição, a ausência de uma noção explícita e bem delimitada de Romantismo dificulta estabelecer diferenças e aproximações entre os dois domínios.

Essa dificuldade, no entanto, não se constitui em obstáculo na construção de sua hipótese central, a saber: a de que Freud não é nem um romântico nem um homem das Luzes, mas um pensador híbrido. Ao mesmo tempo, considera imprescindível circunscrever uma noção de Romantismo que lhe permita operar junto ao pensamento freudiano.

Garimpando nessa literatura os elementos necessários para construir uma noção “clara, ampla e operacionalizável” com a qual possa trabalhar, a autora delimita a noção de “estilo romântico”, empreendimento ao qual se dedica na segunda parte do livro. Ao escolher os autores que possibilitam a “própria (des)- montagem do universo romântico”, seu procedimento confere consistência à argumentação. Sem descartar as múltiplas e diversas formulações sobre o Romantismo, Ines recorre à lógica do ‘não apenas, mas em vez disso’ para positivar as divergências e chegar à noção de ‘estilo romântico’ através da qual vai estabelecer um diálogo com a teoria freudiana. Essa lógica consiste em trabalhar com as várias figuras do Romantismo, “que se somam e se sucedem, sem se anular, mesmo sendo incompatíveis entre si”. O que desemboca na afirmação do Romantismo “como um estilo de experienciação de si e do mundo”.

Essas duas partes, ainda que preparatórias para a questão maior do livro, merecem nossa atenção. Trata-se de uma pesquisa cujo valor é inestimável, sobretudo porque, recusando-se a fazer uma exegese nos moldes tradicionais, estabelece um confronto com as diversas perspectivas, posicionando-se criticamente a todo o momento. Este diálogo com os vários comentadores do Romantismo ganha um colorido no modo como é empreendido: com um tom irônico — quem sabe bem no estilo romântico — Ines cria uma atmosfera leve que em muito facilita nossa leitura.

A terceira parte focaliza a questão tecida ao longo do texto — Freud e o estilo romântico. Para poder confrontar Romantismo e teoria freudiana, uma primeira estratégia é colocada em prática: em lugar de optar por apresentar conceitos da Psicanálise afins aos do Romantismo, prefere partir de ‘temas-chave’ da obra freudiana, dando relevo às posições de Freud, às suas ‘convicções filosóficas’, idéia que toma emprestado de Jankélévitch. Tal opção de, além da obra, inserir o homem, não é nada simples posto que, com essa estratégia, sempre se corre o risco de confundir um e outro, quando não se acaba caindo na armadilha de uma interpretação psicanalítica dos motivos que levam o homem a produzir uma obra. Ines, no entanto, não se perde neste campo e cumpre a tarefa com maestria, o que certamente se deve ao seu rigor metodológico.

Abordando, nos capítulos que compõem esta última parte, “a escrita, a concepção de ciência e a crítica dos valores” em Freud, o livro alcança seu objetivo maior: o de conferir a Freud a condição paradoxal de ‘iluminista sombrio’, acompanhando Yovel; porém, vai além deste comentador ao mostrar como Freud herda e converte noções capitais do Romantismo, fazendo a psicanálise derivar para uma “ética da finitude, ou ainda, da renúncia às ilusões”. Hoje, num mundo esfacelado, onde valores e ideais parecem ter perdido qualquer razão de ser, essa derivação ganha consistência. Parafraseando a autora, este legado faz de Freud ‘não apenas’ um homem do seu tempo, mas ‘apesar disso’ um homem lançado no futuro.

A originalidade do trabalho reside, justamente, no modo singular de pensar a relação entre Romantismo e Psicanálise. Através dela a autora nos apresenta a possibilidade de romper o limite que o mundo nos impõe, abrindo uma trilha diferenciada do paradoxo romântico, qual seja: “o desejo de unidade e totalidade” e “a consciência de que este anseio é impossível”. Uma trilha que esca- pa, melhor ainda, que implode o binômio otimismo/pessimismo e que, de modo irônico, aposta na criação de múltiplos prazeres — “episódicos, limitados e fugazes”, como diz Ines, “mas nem por isso menos valiosos”.

Recebido em 28/4/2003.

Aprovado em 19/5/2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2003
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