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NORMATIVIDADE, GÊNERO E TEORIA PSICANALÍTICA. UMA REFLEXÃO SOBRE A CRIAÇÃO DE PALAVRAS NOVAS

Resumo:

O presente artigo aborda a questão da normatividade em psicanálise numa dupla perspectiva: por um lado, estabelece como essa questão é tratada numa interface multidisciplinar que convoca a psicanálise e os estudos de gênero. E, por outro, examina como uma nova leitura do caso Dora, estabelecida por psicanalistas, contribui para tal debate no interior dos estudos psicanalíticos. Por fim, descreve a importância da relação entre as noções de normatividade e de contingência tanto para a clínica quanto para a teoria psicanalítica.

Palavras-chave:
normatividade; gênero; sexualidade; Édipo; feminismo; caso Dora

Abstract:

The present article analyses the theme of normativity in psychoanalysis from a double perspective. It starts by examining how research has established multi-disciplinar studies of normativity that take into account findings from psychoanalysis and gender studies. It then demonstrates how a new psychoanalytical reading of Dora's case allows for a discussion on the theme from an exclusive psychoanalytical point of view. It concludes with a discussion on the relevance of the relationship between the notions of normativity and contingency for both clinical and theoretical studies on psychoanalysis.

Keywords:
normativity; gender; sexuality; Oedipus; feminism; Dora's case.

“Les mots qui vont surgir savent de nous des choses que nous ignorons d'eux.”

{As palavras que vão surgir sabem de nós coisas que delas ignoramos.}

René Char

“Neste momento, ela está lendo Virgínia Woolf, tudo de Virgínia Woolf, livro por livro. Está fascinada pela ideia de uma mulher como aquela, dotada de tamanho brilhantismo, tamanha singularidade e de tamanha dor; uma mulher tão genial e que ainda assim encheu com uma pedra seu bolso e atravessou um rio”. Ela é Laura Brown, uma dona de casa americana que vive em Los Angeles nos anos 50. Assim como Virgínia Woolf e Clarissa Vaughan, Laura é um personagem do romance As Horas, de Michael Cunningham (1998CUNNINGHAM, M. The hours. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 1998.). E, como elas, é uma mulher habitada por reflexões sobre as condições de vida das mulheres de seu tempo. Enquanto se ocupa das tarefas cotidianas, devaneia sobre como seria sua vida se fosse tão genial quanto a escritora que a comove. E se pergunta, enquanto empurra seu carrinho pelos corredores do supermercado,

se todas as outras mulheres não estão pensando a mesma coisa, em maior ou menor grau: aqui está a mente brilhante, a mulher das grandes tristezas, a mulher das felicidades transcendentes, que preferiria estar em outro lugar, que consentiu em executar as tarefas simples e essencialmente bobas como examinar os tomates, sentar-se sob um secador de cabelos, porque esta é sua arte e este é seu posto. (CUNNINGHAM, 1998CUNNINGHAM, M. The hours. New York: Farrar, Strauss and Giroux, 1998., p. 42, nossa tradução e nosso grifo)

A vida de Laura Brown é a vida tranquila de grande parte das americanas dos subúrbios prósperos dos Estados Unidos logo depois da Segunda Guerra. Mas a calma da vida em tempos de paz é perturbada por um mal-estar que se expressa como desejo de estar em outro lugar. É verdade que a guerra acabou e que o mundo sobreviveu, como ela diz. Mas também é verdade que, agora que “os homens que viram horrores para além do imaginável, que se comportaram com coragem e honra, voltam para suas casas para encontrar as janelas cheias de luz”, às mulheres como Laura cabe tomar conta dos lares. O que, em suas palavras, quer dizer “ter e criar filhos. Não apenas criar livros ou quadros, mas criar todo um mundo - um mundo de ordem e harmonia onde as crianças estão seguras (se não felizes)” (idem).

A obrigação de criar a ordem e harmonia, ao invés de criar livros e quadros, é o ponto central em torno do qual se organiza o sofrimento de Laura ao longo do livro. E é este sofrimento que a aproxima dos outros personagens de As Horas. Cada uma das mulheres descritas é habitada pela seguinte pergunta: a quem é permitido criar fora da ordem? Aos homens? Às pessoas que não sofrem de depressão? Às mulheres que não têm filhos? Ou às que os têm com maridos artistas? Nos desdobramentos da história de cada uma, essa questão se reformula diversas vezes e a partir de diferentes pontos, mas, a cada vez e para cada uma, faz ressoar um tema que interpela tanto a psicanálise quanto outros campos que estudam a sexualidade, como os estudos de gênero. Trata-se do tema da normatividade.

Inspiradas por esta cena literária, analisaremos no presente artigo a maneira como o estabelecimento de normas sociais associadas às diferenças entre os sexos suscita discussões entre psicanalistas e estudiosos do gênero. Com o intuito de construir uma reflexão psicanalítica sobre a normatividade, pensaremos esta noção numa dupla perspectiva: por um lado, estabeleceremos como essa questão é tratada numa interface multidisciplinar que convoca tanto as teorias feministas quanto a psicanálise. Por outro, examinaremos como uma nova leitura do caso Dora, estabelecida por psicanalistas, contribui para tal debate no interior dos estudos psicanalíticos. Estes dois pontos - as diferenças na problematização da ideia de normatividade entre a psicanálise e os estudos de gênero, e a utilidade da releitura de um texto canônico para a discussão deste tema - nortearão nossa travessia pelo campo formado neste encontro entre duas maneiras distintas de pensar a sexualidade.

Homem, mulher, sujeito

As reflexões da filósofa Judith Butler sobre as relações entre gênero e sexualidade servem como interessante instrumento teórico a partir do qual podemos pensar a questão da normatividade. Em Problemas de gênero, livro pelo qual ficou conhecida internacionalmente, Butler se propõe a questionar quem seria o “sujeito do feminismo”: de quem (e do que) estamos falamos quando identificamos alguém como mulher? Quarenta anos depois da afirmação de Simone de Beauvoir, de que “não se nasce mulher, torna-se”, Problemas de gênero (publicado pela primeira vez em 1990) sugere uma complexificação dos elementos presentes na famosa frase de Beauvoir. O que quer dizer não nascer mulher? E por quais processos um sujeito passa a ser (ou se torna) determinado por um gênero? Como diz Butler,

Ao invés de um significante estável que exige o consentimento daquelas que pretende descrever e representar, mulher, mesmo no plural, se tornou um termo problemático, uma fonte de angústia. (...) 'Ser' uma mulher certamente não define a totalidade de um ser; o termo não consegue ser exaustivo não porque existiria uma 'pessoa' ainda não determinada por um gênero que transcenderia a parafernália distintiva de seu gênero, mas sim porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consequente nos diferentes contextos históricos (...). (BUTLER 2005BUTLER, J. Trouble dans le genre. Paris: La Découverte, 2005., p. 62, nossa tradução e nosso grifo)

A passagem acima serve como introdução à argumentação de Butler em favor do que chama de uma política subversiva no feminismo (subtítulo de seu livro - “Feminismo e subversão da identidade”). Enquanto teórica inscrita na terceira onda do feminismo, Butler desloca o eixo da discussão política sobre as diferenças entre os gêneros. O tema central deixa de ser a importância da igualdade de direitos entre homens e mulheres - característica da segunda onda - e passa a ser a própria possibilidade de determinarmos qual conjunto de características servirão a definir o que entendemos como gênero. “Mulher” se torna um termo problemático porque, quando o pronunciamos - quando chamamos alguém de mulher -, o fazemos baseados em uma série de pressupostos que a autora deseja questionar.

Butler não se refere apenas à insuficiência da categorização baseada em características biológicas, ou seja, na ideia de que um sujeito poderia ser definido como mulher baseado em seus órgãos genitais, por exemplo. Também não se limita a tentar estabelecer uma grade de leitura sociocultural que permitiria delinear papéis e comportamentos “de mulher”. O tema central de Problemas de gênero é justamente a necessidade de repensarmos em termos “radicalmente novos”, como afirma a autora, as construções ontológicas da identidade para que possamos imaginar políticas de representação (tais como o feminismo) sobre novas bases. Dito de outra forma, o projeto de Butler em Problemas de gênero é o de criar condições para o surgimento de uma política feminista que não dependa de uma identidade “feminina” para ser eficaz.

Foi por se interessar pela limitação de toda afirmação identitária, no que se refere à criação de categorias determinadas pelo gênero, que Judith Butler se aproximou da psicanálise. Tal interesse é abordado numa entrevista de 1993, na qual Peter Osborne e Lynne Segal questionam a filósofa quanto à utilidade da teoria psicanalítica para sua teorização da categoria gênero. A pergunta, formulada logo após a publicação de Corpos que contam (seu trabalho sobre a materialidade do corpo), tinha como objetivo clarear a posição da autora quanto a seu interesse pelos textos psicanalíticos. Partindo de uma oposição comum feita por pesquisadoras feministas a partir dos anos setenta entre psicanálise e feminismo, Osborne e Segal tentavam entender se há ou não compatibilidade entre os pensamentos de Freud e Lacan sobre a sexualidade e a teoria de Butler do gênero como performatividade. Para a surpresa de muitos leitores (habituados à crítica feita por teóricas feministas à psicanálise), Butler afirma que considera a psicanálise como “o que melhor nos permite entender como são assumidas posições sexuadas”. E confirma que não acha que seja possível prestar conta (offer an account) de como a sexualidade é formada sem a psicanálise (OSBORNE, 1996OSBORNE, P. (ed.) A Critical Sens. Interviews with intellectuals. Londres: Routledge , 1996.).

E o que significa compreender “como são assumidas as posições sexuadas”? Esta é uma questão central nos primeiros trabalhos de Judith Butler, nos quais a filósofa analisa as relações entre as sexualidades e o gênero. Para nos mantermos dentro dos limites propostos por este artigo, destacaremos seu uso da teoria freudiana para explicar o modo como a perda de um objeto de amor participa da construção dos gêneros masculino e feminino. Este tema nos levará a uma discussão sobre a importância de determinados conceitos psicanalíticos para o desenvolvimento de sua reflexão sobre a constituição de um sujeito sexuado. Reiteramos, todavia, que se trata de uma questão mais vasta do que as que pretendemos abordar aqui. Permitimo-nos então nos referir a um trabalho de nossa coautoria que aprofunda esta discussão, Judith Butler et Monique David-Ménard: d'une autre à l'autre (BUTLER; DAVID-MENARD; SANTOS; CREVIER-GOULET; DEBS; POLVEREL, 2015BUTLER J.; et al. Judith Butler et Monique David-Ménard: d’une autre à l’autre. In Evolution Psychiatrique 2015;80(2): 317-330.).

Em relação à construção de um sujeito homem ou mulher, temos em mente seu livro sobre a vida psíquica do poder (La vie psychique du pouvoir, 2002), e a maneira como nele é tratada a relação entre a sujeição e criação de um sujeito. Butler se refere aos trabalhos de Hegel, Nietzsche, Althusser, Foucault e Freud para discutir a sujeição como simultaneamente o processo pelo qual nos submetemos a um poder ou a um discurso e o processo pelo qual nos tornamos sujeitos. O que quer dizer que, nas palavras de Butler, “a sujeição consiste em uma dependência fundamental de um discurso que não escolhemos, mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossas ações” (2002BUTLER, J. La vie psychique du pouvoir. Paris: Ed. Leo Scheer, 2002., p. 22, nossa tradução).

Ou seja: não existimos como sujeitos antes de sermos interpelados por um discurso que nos atribui um lugar na existência. Não nascemos como sujeitos quando nossa vida biológica se inicia, mas no momento em que alguém se dirige a nós como sujeito - “Ei, você aí!”, no exemplo clássico descrito por Althusser e citado inúmeras vezes por Butler. No entanto, e isso é o que interessa à autora, há um paradoxo instaurado nesta ideia de que a interpelação cria o sujeito porque, fundamentalmente, toda interpelação já se dirige a um sujeito. O discurso que inaugura o sujeito não é endereçado ao vazio; ele se refere a algo ou alguém cuja origem é pressuposta por aquele que interpela. The Psychic Life of Power tenta então reformular esta questão, qual seja: por que um sujeito responde a uma determinada interpelação? O que faz com que, no exemplo dado por Althusser, a pessoa a quem o vocativo “Ei, você aí!” é destinado se vire para responder?

O modo como Butler aborda o problema da origem do sujeito está diretamente ligado à sua compreensão da psicanálise como “o que melhor nos permite entender como são assumidas posições sexuadas”. Isso porque, desde a primeira edição de Problemas de gênero, a filósofa intenta afirmar que um sujeito não pode ser pensado separadamente da percepção que se tem da categoria sexual (homem, mulher) à qual ele ou ela pertenceria. O que quer dizer que a própria noção de um sujeito sexuado seria redundante, já que em seu ponto de origem - no momento em que passa a ser percebido como sujeito - todo sujeito já é sexuado, já é considerado por aquele que o interpela como ou homem ou mulher. Butler insiste em nos lembrar que ninguém nasce num mundo e só então se confronta com uma variedade de “opções de gênero” que deve, a partir desse momento, incorporar. Na verdade, o gênero opera como um dos elementos do conjunto de condições discursivas generalizadas endereçadas a toda pessoa desde antes de seu nascimento (“Está grávida? É menino ou menina?”) e que lhe serão continuamente repetidas ao longo de sua vida.

A teoria psicanalítica aparece então como um instrumento que auxilia Judith Butler a determinar quais coordenadas participam da cartografia da atribuição de um gênero a um sujeito. Em Problemas de gênero, seu interesse se dirige ao que descreve como uma “construção melancólica do gênero” (2005, p. 148) na obra de Freud: o modo como se relacionam a preservação do objeto de amor perdido e a escolha objetal heterossexual ou homossexual. A autora se refere a dois pontos da teoria freudiana para pensar o que chama de melancolia do gênero: (i) a ideia de que, na melancolia, o objeto perdido é novamente instalado dentro do eu - ou seja, um investimento (ou catexia) é substituído por uma identificação (FREUD 1923FREUD, S. Le moi et le ça (1923{1922d}).Paris: PUF, 1991. (Oeuvres complètes, 16)., p. 272); e (ii) a ideia de que esta identificação ao objeto que foi perdido seja talvez a única condição na qual o Isso pode abandonar seus objetos (p. 273). O que quer dizer que a identificação permite conservar de certa forma este objeto (perdido) no interior do Eu - como uma sombra que sobre ele continua a recair (FREUD, 1917FREUD, S. Deuil et mélancolie (1915{1917a}). Paris: PUF, 2005. (Oeuvres complètes, 13)., p. 268).

Segundo Butler, este processo de interiorização do objeto de amor perdido é pertinente para a formação do gênero porque o abandono das figuras parentais como objeto de amor - processo fundamental para a determinação das futuras escolhas objetais - é inaugurado pela interdição do incesto. Em seu trabalho, esta relação direta entre a escolha objetal e o incesto como tabu é criticada por se basear num modelo no qual a heterossexualidade é a norma e a homossexualidade, o desvio (o que Butler chama de “prevalência de uma matriz heterossexual”, em Problemas de gênero). Esta questão lhe importa porque seu projeto teórico é também fundamentalmente político, e lhe interessa saber de que maneira discursos normativos (ou heteronormativos) presentes na sociedade fazem aparições nas teorias. Mas esta visão crítica não a impede de continuar a se interessar pela possibilidade oferecida pelo instrumental teórico psicanalítico de analisarmos a dimensão inconsciente da sexualidade, como desenvolveremos na próxima seção.

Encontros interdisciplinares: o que os estudos de gênero provocam na psicanálise?

Referimo-nos, na seção acima, à surpresa dos leitores da entrevista feita por Osborne e Segal quanto ao interesse de Judith Butler pela psicanálise porque, apesar do crescente número de trabalhos que se referem à teoria psicanalítica para analisar problemáticas da vida sexual nos últimos vinte anos, a articulação entre estudos de gênero e psicanálise ainda provoca debates. Em um número recente do periódico francês Champ Psy, as psicanalistas Laurie Laufer e Andréa Linhares lançavam a pergunta: o que os estudos de gênero provocam na psicanálise? A noção de gênero, definida no trabalho em questão como “uma abordagem crítica que permite pensar as relações sociais entre os sexos como uma relação de poder”, toca as margens da teorização psicanalítica e nos convidam a pensar os temas essenciais ligados à (ou às) sexualidade(s) partindo de uma outra perspectiva. À sexualidade pulsional, infantil (polimorfa e perversa) e inconsciente tal como compreendida por Freud, os estudos de gênero opõem a noção de um sujeito que é sexuado através de formações discursivas.

Tal convite exige que analisemos a dissonância entre duas concepções do que constitui um sujeito sexuado - ou do que “sexua” um sujeito. É possível estabelecer um encontro interdisciplinar sobre questões ligadas à sexualidade quando partimos de definições distintas do próprio termo que pretendemos examinar, a saber, sexualidade? Dito de outra forma, como estabelecer um diálogo entre a noção de sexualidade tal como é pensada a partir dos textos freudianos (em sua relação constitutiva não apenas com os sexos, mas também - e mais importante ainda - com a sexualidade infantil), e a sexualidade que é problematizada pelos estudos de gênero (e que, especificamente no trabalho de Judith Butler, estabelece uma relação intrínseca com as formações discursivas que formam e orientam as diferenças sexuais)?

Historicamente, este diálogo interdisciplinar não foi bem-sucedido. Como indica Michel Tort em seu livro sobre o fim do dogma paterno, podemos perceber três tempos das relações entre teóricos do gênero e psicanalistas (TORT, 2005TORT, M. Fin du dogme paternel. Paris: Aubier, 2005.). No primeiro, os pesquisadores (antropólogos, sociólogos, filósofos) consideram que os trajetos edipianos propostos pela teoria freudiana ortodoxa representam “decalques inconscientes de formas de dominação masculina”. Os psicanalistas, por sua vez, tomam uma de duas posições: insistem sobre o desconhecimento, por parte dos que criticam, da realidade da inveja do pênis e da importância do falo para a compreensão do inconsciente; ou então elaboram críticas aos pressupostos freudianos a partir de uma psicologia da mulher, como a que propõe Karen Horney.

Em um segundo momento, a partir dos anos 70, surgem psicanalistas feministas que tentam articular os dois discursos. Elas veem na psicanálise um instrumento útil mesmo se, até então, ele pudesse ter servido para descrever o funcionamento psíquico sem levar em conta o contexto histórico no qual acontece. É o caso dos trabalhos como o de Juliet Mitchell, psicanalista inglesa autora de Psychoanalysis and Feminism, em 1974, ou da francesa Luce Iragaray.

Por fim, com as mudanças trazidas pelas orientações epistemológicas pós-modernas ao fim da década de 80, estabelece-se uma nova relação entre os diferentes campos de saber que trabalham sobre (e com) a sexualidade, baseada na desconstrução de conceitos ligados aos sexos e à vida sexual. As mudanças ocorridas no território das sexualidades - tais como a separação entre sexualidade e reprodução, a maior e melhor ocupação do espaço publico pela mulher, a explosão do modelo de família nuclear (e os consequentes rearranjos na parentalidade), as políticas de visibilidade para a homossexualidade, e as novas questões sobre o corpo e sua materialidade suscitadas por transgêneros e intersexos - provocam, como diz Márcia Aran, “deslocamentos importantes nas referências simbólicas organizadoras da sociedade moderna, principalmente a partir do deslocamento das fronteiras entre homem (público) e mulher (privado), configurando um novo território para pensar a diferença sexual” (ARAN, 2009ARAN, M. A psicanálise e o dispositivo diferença sexual. Revista Estudos Feministas, v. 17, n. 3. Florianópolis: UFSC, 2009.).

Neste contexto, podemos dizer que trabalhos como os de Judith Butler estabelecem novas leituras críticas da psicanálise. Tais leituras focam na maneira única que esta tem de descrever os percursos subjetivos que compõem o que comumente entendemos por vida sexual - em oposição a leituras centradas na intenção de estabelecer um confronto direto com uma leitura (superficial) da teoria, ou seja, numa análise pontual de conceitos que se posiciona fora do “contexto das teorias gerais psicanalíticas”, segundo expressão de Juliet Mitchell (MITCHELL, 1974MITCHELL, J. Psychanalyse et Féminisme. Paris: Ed. Des femmes, 1974., p. 28). À pergunta de LauferLAUFER, L.; LINHARES, A. Ce que le genre fait à la psychanalyse. Champ Psy, n. 58, v. 35. Paris: L'Esprit du Temps, 2010, p. 7-8. e Linhares, “O que os estudos de gênero provocam na psicanálise?”, somamos seu contraponto: “E por quais vias a psicanálise provoca os estudos do gênero?”.

A referência à provocação não é vã. Provocar vem do latim provocare, chamar (“vocare”) para fora, fazer vir. Ao descrevermos as relações entre estudos de gênero e psicanálise em termos de provocações, atentamos para o fato de que tais relações são convites para que teóricos de ambos os campos pensem para fora dos limites tradicionais de suas disciplinas. Entendemos que os estudos de gênero inspiram os psicanalistas a manterem-se atentos às constantes e aceleradas expansões da noção de sujeito legítimo, ou de vida legítima, segundo um raciocínio desenvolvido por Butler em Défaire le genre {Desfazendo o gênero} (2006FREUD, S. Fragment d'une analyse d'hystérie (Dora) (1901{1905e}). Paris: Quadrige/PUF, 2006.) - famílias homoparentais, sujeitos transgêneros, casais poliamorosos, são alguns exemplos de novas configurações que interpelam o trabalho psicanalítico e que ganham a serem pensadas com material teórico diferente das referências clássicas aos trabalhos fundadores da psicanálise. Historicamente relegados a uma posição precária, desprovida do apoio institucional que, como descreve Butler, garante o reconhecimento como vida digna de ser vivida (idem, p. 31), tais sujeitos constituem hoje as novas fronteiras dos direitos civis. O que nos permite pensar que representam também as novas fronteiras do trabalho clínico.

Se, por um lado, os estudos de gênero provocam a psicanálise a expandir o alcance do que entendemos por vidas consideradas legítimas, por outro, a psicanálise reafirma para os estudiosos do gênero a importância da dimensão fantasmática da sexualidade, ou seja, de sua relação intrínseca com as experiências (sexuais) infantis. A orientação da discussão sobre sexualidade em torno da noção de “identidade de gênero” corre o risco de menosprezar o impacto das atividades polimorfas e perversas das crianças. Ao levar em conta isso que entendemos como a espessura temporal da sexualidade humana - numa expressão retirada dos trabalhos de Joel Birman (BIRMAN, 2001BIRMAN, J. Gramáticas do erotismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 19) -, a teoria psicanalítica complexifica a discussão sobre a construção da identidade. A referência ao tempo da sexualidade infantil - tempo para sempre presente na vida de qualquer adulto - transforma essa concepção de construção, já que exige considerarmos que tal trabalho de construção não se equipara a uma ação volitiva que “escolhe” entre várias possibilidades. A construção da identidade, como a construção de um sintoma, se faz em momentos decisivos da vida do sujeito, e responde a elementos de sua história amorosa que só se deixam compreender a posteriori. Esse aspecto da vida sexual é mais bem compreendido pelos estudos psicanalíticos do que por qualquer outro campo.

Ao se confrontar com a questão da relação entre os estudos de gênero e a psicanálise, Jean Laplanche foi categórico:

As feministas como um todo, incluindo as radicais (…) necessitam {da categoria} sexo para subvertê-la e “desnaturalizá-la” em gênero. Mas para isso seria necessário voltar a uma velha sequência sexo/gênero na ordem seguinte: sexo precedendo gênero, natureza precedendo cultura, mesmo se estamos de acordo quanto à ideia de “desnaturalizar” a natureza. Mas o risco disso é o de nos esquecermos do sexual freudiano, do “sexual” {sexual, e não sexuel no texto original}. (LAPLANCHE, 2007LAPLANCHE, J. Sexual. La sexualité élargie au sens freudien, Paris :Quadrige/PUF, 2007, p. 161, nossa tradução)

Para Laplanche, o “sexo” que é simbolizado pelo “gênero” não é o sexo da biologia, mas, sim, o sexo de uma anatomia fantasmática, marcada pelo que chama de “animal humano” (idem). É por essa razão que um encontro interdisciplinar não é possível: porque os estudos de gênero, bem como seus predecessores, os estudos feministas, não dão conta da dimensão inconsciente da sexualidade humana. Segundo Laplanche, os diferentes campos de estudo que se interessam pela sexualidade se interessam ou pelo sexo, ou pelo gênero. Sexo (sexe) é descrito pelo autor como uma “categoria dual”, que se refere à reprodução sexuada e à capacidade humana de simbolizar a partir da experiência com os duos presença/ausência e fálico/castrado. Gênero (genre) é uma categoria plural, baseada na dualidade masculino/feminino, mas não restrita a ela, já que engloba “o que não está na natureza”, como o uso da língua e a evolução dos costumes. A teoria psicanalítica é a única que se interessa pelo que Laplanche chama de sexual: o “resíduo inconsciente do recalque-simbolização do gênero pelo sexo” (ibidem, p. 153).

Mas esta posição não é a única entre psicanalistas e pesquisadores que se referem aos textos psicanalíticos em seus trabalhos. Como citado anteriormente, autores comumente associados aos estudos de gênero, como Judith Butler, reconhecem a importância e a utilidade dessa visão “expandida” (élargie) da sexualidade, como a descreve Laplanche. Ainda que estejam cientes da especificidade da práxis analítica, não se privam de tentar entender de que formas temáticas próprias a seu campo (como a relação entre a normatividade e as diferenças de gênero, por exemplo) podem ser pensadas em relação a outras práticas. Segundo Butler, é evidente que existem diferenças entre o trabalho psicanalítico e o trabalho de análise dos efeitos sociais das normas. No entanto, “o normativo é suspenso, posto nos bastidores da cena analítica, para justamente poder ser reintroduzido em cena pelo analisando. O roteiro normativo pode ser reproduzido, em todas suas complexidades, dentro das sessões {...} A norma sempre está presente. Devemos colocá-la de lado, mas ela está sempre presente e é isso que exige prática: colocá-la 'de lado', suspendê-la” (BUTLER et al., 2015BUTLER J.; et al. Judith Butler et Monique David-Ménard: d’une autre à l’autre. In Evolution Psychiatrique 2015;80(2): 317-330.).

De modo coerente com sua concepção da impossibilidade de pensarmos um sujeito separado das formações discursivas que o constituem, Butler também não concebe uma fala que possa se produzir “de fora” das normas. Ainda que seja o trabalho do analista criar as condições para “tornar os trajetos subjetivos inéditos mais vivíveis sem fazer recomendações”, como diz David-Ménard no mesmo texto, Butler considera a hipótese de que certos conflitos normativos possam ressoar no interior do consultório como tais. O que quer dizer que a filósofa considera que questões de gênero, de raça e de classe podem influir sobre os modos de escuta dos psicanalistas. Esta vasta questão é abordada no texto supracitado, e também num outro trabalho de nossa autoria (ver SANTOS, 2013SANTOS, B. Entre a penumbra do consultório e as normas sociais. Considerações sobre a homossexualidade como questão. In: Revista Percurso, 51:2. São Paulo: Ed. Sedes Sapientae, 2013, p.45-54.).

Normatividade e o caso Dora

O trabalho dos psicanalistas belgas Philippe Van Haute e Tomas Geyskens oferece uma contribuição original a este debate sobre a questão da normatividade do discurso psicanalítico que marca a relação entre a psicanálise e os estudos de gênero. Em A Non-Oedipal psychoanalysis, livro publicado pela Leuven University Press em 2012 (e com tradução para o português em andamento), Van Haute e Geyskens argumentam em favor de uma leitura do caso Dora que questiona o lugar tradicionalmente atribuído ao Complexo de Édipo nos comentários desta análise.

Como citamos acima, desde muito cedo, a (falsa) ideia de que a psicanálise justifica com argumentos subjetivistas uma diferença transcendental de sexos afastou cientistas sociais, filósofas e teóricas feministas das pesquisas em psicanálise. Já em 1975, Gayle Rubin (antropóloga cultural e autora do clássico The traffic in women) chegou a afirmar que a psicanálise era “quase uma teoria feminista” (“psychoanalysis is a feminist theory manquée”, RUBIN 2010RUBIN, G. Le marché aux femmes. Economie politique du sexe et systèmes de sexe/genre (1975). In: RUBIN, G. Surveiller et Jouir. Anthropologie politique du sexe. Paris: EPEL, 2010, p. 54., p. 54): ela dispõe de um sistema de conceitos que permite examinar de que forma significados culturais se impõem a diferenças anatômicas, mas se orienta por formulações teóricas que permitem legitimar atitudes excludentes. O “quase” feminista refere-se então à dimensão normativa que os múltiplos discursos psicanalíticos historicamente puderam assumir - podemos citar os recentes debates em torno da adoção por casais de mesmo sexo, do “casamento para todos”, na França, ou em torno da despatologização da transexualidade, no Brasil, como exemplos recentes de momentos de tensão no interior dos círculos analíticos e entre psicanalistas e teóricos de outras disciplinas.

Uma maneira de questionar quão normativa é a teoria psicanalítica tem sido então a de estabelecer “exegeses recíprocas” entre textos psicanalíticos e textos críticos da psicanálise, num exercício que pretende delimitar o que se pode e o que não se pode fazer com a psicanálise, como formula a antropóloga Rita Segato. A autora aponta para importância “de produzirmos e estabelecermos um diálogo, quase uma confrontação, entre textos oriundos de tradições diferentes. E, ao fazemos com que um fale com o outro, identificar por quais afinidades conversam e o que os distancia” (SEGATO 2003SEGATO, R. Antropología y psicoanálisis: posibilidades y límites de un diálogo. In: Série Antropologia, 330. Brasília: Universidade de Brasília, 2003., p. 12). Exemplos de alguns trabalhos interessantes neste sentido são os já citados artigos de Márcia Aran, sobre a questão da transexualidade, e os de Laurie Laufer, sobre as políticas do sexual. Pensamos também nos diálogos entre Monique David-Ménard e Judith Butler sobre gênero e sexualidades (DAVID-MENARD, 2009DAVID-MENARD, M. (dir) Sexualités, genres et mélancolie. Paris: Campagne Première, 2009.).

Mas Van Haute e Geyskens estão interessados em contribuir para esta discussão por outro viés. Sem se centrarem na oposição entre as teorias estruturadas pela categoria de gênero e as teorias psicanalíticas, os autores pretendem questionar a questão da normatividade a partir de casos clínicos freudianos. O que quer dizer examinar o caso Dora e a clínica da histeria por uma perspectiva patoanalítica. O termo patoanálise, cunhado pelo psicanalista belga Jacques Schotte, se refere ao entendimento da relação existente entre os estados patológicos e os estados sãos de um sujeito. Em suas palavras: “As diferentes formas de morbidez psiquiátrica de certo modo nos mostram, explicitamente, o que permanece invisível como articulação estrutural de diferentes momentos da vida dita sã de espírito” (SCHOTTE 1990SCHOTTE, J. Szondi avec Freud: sur la voie d'une psychiatrie pulsionnelle. Bruxelles: Editions De Boeck, 1990., p. 44). Trata-se de uma perspectiva orientada pelo princípio freudiano do cristal, ou seja, norteada pela compreensão de que toda patologia não é oposta, mas sim contígua, à normalidade: o eu se cliva em “fragmentos”, cujas delimitações já se encontravam na própria estrutura do que se rompeu, como afirma Freud na conferência sobre a decomposição da personalidade psíquica (FREUD, 1932{1933FREUD, S. Nouvelle suite des leçons d'introduction à la psychanalyse. XXXIe leçon (1932{1933a}).Paris: PUF, 1996. (Oeuvres complètes, 19).a}). Consequentemente, a definição de categorias tais como histeria, neurose obsessiva ou paranoia não se restringem à designação de sujeitos doentes postos em oposição a sujeitos saudáveis. Elas indicam pistas para o entendimento da relação entre subjetividade e cultura, entre história pessoal e contexto social. Esta visão, defendida no texto de Van Haute e Geyskens, difere assim de uma leitura mais estruturalista da psicanálise. Ela pensa a questão da histeria de um modo diferente do proposto, por exemplo, por Lacan em seu seminário sobre as Formações do Inconsciente (1957-1958), quando este discute como a histeria é uma estrutura primordial na relação entre homem e significante.

O que interessa Van Haute e Geyskens é seguir uma trilha delimitada pelos trabalhos de Freud. Especificamente em relação a Dora, Van Haute e Geyskens indicam como, seguindo o abandono da teoria da sedução, Freud se interessa pela importância que tem uma disposição histérica no desenvolvimento de seus sintomas histéricos. O que significa, para os autores, definir se a histeria seria consequência de um trauma ou de uma disposição. Van Haute e Geyskens nos chamam a atenção para os dois tempos da construção do trauma de Dora, que, se não introduzem a sexualidade na vida de uma criança (até então “assexuada”), atualizam e transformam uma disposição (sexual e histérica) que já existe. Assim sendo, não é a natureza do trauma que faz Dora adoecer, mas, sim, o fato de que Dora, alguém com uma disposição histérica, tem uma experiência traumática.

Esta importância dada à disposição no trabalho de Van Haute e Geyskens serve para fundamentar sua contestação da importância classicamente atribuída ao complexo de Édipo pelos estudiosos do caso Dora. O ponto central para o qual apontam Van Haute e Geyskens é o de que, ao explicarmos a histeria - ou qualquer outra psiconeurose - tendo como ponto de apoio o trauma, estamos nos submetendo ao pensamento neurótico que, como bem descrevem os autores, se apoia em uma dupla ilusão: a ilusão da responsabilidade pessoal (“alguém em algum lugar é responsável por eu ser como sou: meu pai perverso, minha mãe louca, minha educação excessivamente, ou não suficientemente, severa etc.”) ou a ilusão conjectural das possibilidades passadas (“se isso tivesse sido diferente, ou se eu não tivesse feito aquela escolha..., quem sou hoje seria diferente”). Já a ideia de uma disposição retira de tais ilusões o seu poder. Em seu lugar, coloca a compreensão do caráter imprevisível e contingente das vicissitudes da pulsão. Para os autores, a dinâmica da histeria de Dora no texto freudiano não é explicada nem graças ao trauma, nem graças ao Complexo de Édipo. Ela se constrói na articulação entre quatro fatores: a disposição histérica, a predisposição à bissexualidade, o que Freud chama de recalque orgânico e a força da pulsão sexual.

Normatividade e contingência

Ao enfatizar a importância da contingência da disposição, em oposição ao determinismo da causalidade edípica na histeria de Dora, Van Haute e Geyskens nos oferecem um argumento em favor de uma visão menos normativa da psicanálise. Segundo afirmam os autores, (i) a diferença entre a histérica Dora e qualquer sujeito não-histérico não está na experiência de um trauma sexual (que poderia ter sido evitado), mas, sim, em uma constituição libidinal que determina uma disposição histérica; e (ii) tal disposição está presente, em maior ou menor grau, em todos os sujeitos - podendo inclusive ser percebida em outras construções subjetivas que não o sintoma histérico (como a fabricação literária, por exemplo). Como consequência, as fronteiras entre uma “histeria normal” e uma patologia se tornam menos evidentes (VAN HAUTE; GEYSKENS, 2012VAN HAUTE, P.; GEYSKENS, T. A non-Oedipal psychoanalysis? A clinical anthropology of hysteria in the works of Freud and Lacan. Leuven: Leuven University Press, 2012., p. 119). Segundo Van Haute e Geyskens, essa ideia é fundamental para que entendamos a importância filosófica da psicanálise: “A originalidade filosófica do trabalho de Freud - e da psicanálise por extensão - consiste no papel central que o princípio do cristal tem e na reconsideração fundamental da relação entre normalidade, cultura e patologia que dele deriva” (idem, p. 23).

Dito de outra forma: entre o que faz com que um sujeito adoeça e o que o torna um ser singular, a relação é de continuidade, e não de ruptura. E, mais importante ainda, este “tornar doente” é construído por elementos cuja relação com os sintomas é contingente. O que quer dizer que a articulação de fatores que torna doente não é apenas aleatória, como poderíamos entender numa primeira concepção da palavra contingente. Ela é também delimitada por sua ligação intrínseca com aquilo que permite que o sujeito se transforme, e que se faz compreensível na relação de transferência. Contingente aqui não significa o oposto de pré-determinado, mas, sim, a possibilidade de transformação própria às relações que nos constituem, como definido nos recentes trabalhos de Monique David-Ménard - pensamos, por exemplo, em sua descrição da contingência como “a maneira como o registro objetal pode se formar na transferência quando reorganiza os circuitos destruidores que o sustentavam até então”. O que, segundo a autora, quer dizer que “a transferência comuta o destrutivo da repetição em criação simultaneamente pulsional e significante” (DAVID-MENARD, 2011DAVID-MENARD, M. Eloges du hasard dans la vie sexuelle. Paris: Hermann, 2011., p. 78).

Esta compreensão da noção de contingência se aproxima da leitura feita por Lacan do lugar atribuível à tuché na constituição do trauma. Lacan traduz o termo tuché - a fortuna ou o acaso, em grego - como “encontro do Real” (LACAN, 1964LACAN, J. Tuché et Automaton (1964). Paris: Seuil, 1973. (Séminaire XI. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse)., p. 64) - encontro que só pode ser um desencontro essencial, um evento que se produz só uma vez e lança a repetição (na forma do retorno de significantes que insistem em tentar assimilar o inassimilável desta experiência primordial). A tuché se refere ao acidental que participa à construção do evento traumático e que só pode ser compreendido a posteriori. Ela é o imprevisível com o qual cada sujeito responde ao (des)encontro com o real. E é uma resposta que depende de como o sujeito se inscreve na linguagem, resposta radicalmente singular e que resiste a qualquer tentativa de universalização.

É nesse sentido que a noção de contingência contribui para a afirmação de visões menos normativas no interior do saber psicanalítico. Ela permite pensar a clínica como espaço onde, através da transferência, se estabelece uma nova relação transformada (e transformadora) com as normas. Ou seja: a clínica como um espaço onde, ao trabalharmos (com) aquilo que é inteligível sem ser concebido de maneira determinista, tornamos possíveis movimentos inéditos dentro do regime de normas.

Ao nos referirmos a tais movimentos inéditos, temos em mente a ideia de produção do novo prometida pelo discurso analítico. Essa é, afinal, a razão de ser da cura: a construção do singular que cada um tem a dizer. E esse singular se produz através de transformações mínimas daquilo que em análise se repete. É o que diz Freud em seu artigo de 1914 sobre a técnica psicanalítica, Recordar, repetir e elaborar, quando descreve a importância da transferência para que o trabalho de vencer as resistências se dê. Segundo o texto freudiano, não é suficiente que o analista possa indicar (ou nomear) a resistência. A intervenção analítica eficaz comporta um tempo de perlaboração que permite ao analisando superar a resistência pela continuação do trabalho analítico. E a fabricação do “fragmento de experiência real” que é a transferência participa deste tempo. Nas palavras de Freud, “a partir das reações repetitivas exibidas na transferência, somos levados ao longo dos caminhos familiares até o despertar das lembranças, que aparecem sem dificuldade, por assim dizer, após a resistência ter sido superada” (FREUD, 1914FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (1914). Rio de Janeiro: Imago, 1996. ((Ed. standard brasileira das obras completas, 12), p. 170). Ou seja: pela transferência - através da experiência da transferência -, o analisando percorre de maneira inédita os caminhos que lhe são familiares.

A construção deste inédito é passível de redefinir, para cada sujeito em análise, sua relação com o sistema de normas que o constitui. É também para isso que fazemos análise. Como bem descreve o psicanalista inglês Adam Phillips em um trabalho sobre as relações entre a psicanálise e a poesia, dirigimo-nos à psicanálise pelo mesmo motivo porque nos dirigimos à poesia: em busca de palavras melhores (PHILLIPS, 2001PHILLIPS, A. Promises, Promises. Essays on literature and psychoanalysis. New York: Basic, 2001.). Palavras melhores: mais adequadas para dizer aquilo em que nos tornamos. E mais precisas quando descrevem aquilo que ainda estamos fabricando no processo analítico. “As palavras que vão surgir sabem de nós coisas que delas ignoramos”, diz René Char no verso que serve de epígrafe a este artigo. Se seguirmos o raciocínio de Phillips, podemos afirmar que elas sabem também coisas que ignoramos de nós.

Palavras melhores

O exercício de pensarmos a normatividade como um tema psicanalítico nos leva ao encontro da questão da produção de palavras.

Por um lado, temos a produção de novas palavras (ou melhores palavras, como diz Phillips). Enquanto sujeitos formados por um sistema de normas que designa - de modo mais ou menos eficiente - a maneira como somos reconhecidos pelos outros sujeitos, contamos com a possibilidade de encontrarmos espaços onde tal sistema possa ser ressignificado. A cura analítica, orientada pela intenção contra-intuitiva de permitir que se produzam palavras imprevistas, é um destes espaços.

Por outro lado, temos a produção do novo pelas palavras. É talvez esta a questão que permita melhor aproximar as maneiras como a psicanálise e os estudos de gênero examinam a normatividade. Ambos os campos de saber partem do princípio de que somos seres da linguagem, ou seja, habitantes de um mundo no qual não apenas existe linguagem, mas um mundo que é sustentado pela linguagem - a linguagem é o que nos permite ser, diria Lacan: “a palavra ser {être} não tem nenhum sentido fora da linguagem” (LACAN, 1972LACAN, J. Du discours psychanalytique. In: Lacan in Italia (1972). Milão: Ed. Salamanca, 1982.). Enquanto seres da linguagem, somos sujeitos cujas vidas mudam através das palavras. Este fato é um elemento fundamental do trabalho analítico: a certeza de que se trata de uma experiência de fala e de linguagem que permite a transformação de sintomas.

Ele é também um dos pontos centrais que sustenta a discussão em torno da ideia de reconhecimento da identidade nos trabalhos de gênero. Um dos trabalhos citados por Butler em sua reflexão sobre a construção das identidades de gênero parte da questão: Sou esse nome? {Am I that name?} (ver BUTLER, 1993BUTLER, J. Bodies that matter. Londres: Routledge, 1993.). A interrogação reflete a capacidade que um nome (ou uma palavra) tem de evocar múltiplos significados e o problema da representação por categorias associado a esta polissemia - “mulher”, que mulher?; “Identidade”, qual identidade? A autora sugere então a importância de ações (políticas e teóricas) que expandam o alcance de categorias legítimas. Ou, dito de outra forma, de ações que ampliem as possibilidades para que mais vidas sejam reconhecidas como vidas vivíveis. Citamos aqui um exemplo pontual desta ampliação, já que esta discussão ultrapassa os limites do que podemos abordar no presente trabalho. Trata-se da definição de “casamento”. O código civil vigente em 1916 no Brasil determinava, em seu artigo 233, que o marido era o chefe da sociedade conjugal e que contava com a colaboração da mulher para exercer sua função. Com a Constituição Federal de 1988, a igualdade entre homens e mulheres no casamento passou a ser assegurada pelo artigo 266 (cujo parágrafo cinco afirma que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher). Em 2002, a instauração do novo código civil eliminou a referência ao gênero na definição do casamento. O artigo 1.511 diz que o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Finalmente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo passou a ser legal em 2011, e, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça passou uma resolução que obriga todos os cartórios do país a celebrar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Isso quer dizer que, de um ponto de vista legal, a ampliação da categoria casamento passou a tornar mais vidas conjugais possíveis. À transformação da palavra corresponde uma transformação no nível de vulnerabilidade a que estão expostas duas pessoas do mesmo sexo que vivem juntas. Sua vida conjugal, agora considerada legítima face ao Estado, é menos precária - e então mais vivível, nos termos de Judith Butler.

Na adaptação cinematográfica do romance As Horas, dirigida por Stephen Daldry (2002), o personagem de Laura Brown (interpretado por Julianne Moore) descreve para Clarissa Vaughan (interpretada por Meryl Streep) a decisão de abandonar sua família. Ambas se encontram cinquenta anos depois da cena que citamos no início deste artigo, quando a jovem Mrs. Brown lia compulsivamente os livros de Virgínia Woolf e desejava “estar em outro lugar”. Laura Brown conta para Clarissa que um dia, após ter passado a tarde sozinha em um hotel lendo Mrs. Dalloway, e contemplando a ideia de se suicidar, ela tomou uma decisão. “Decidi abandonar minha família depois do nascimento do meu segundo filho. E foi o que fiz. Uma manhã me levantei, preparei o café da manhã, fui até a estação e entrei em um trem. Deixei apenas um recado”. Nos subúrbios de Los Angeles em 1951, as possibilidades de movimento dentro do regime vigente de normas eram certamente restritas para mulheres como Laura Brown. Em seu caso específico, a condição para a criação de uma vida vivível foi partir e nunca mais contactar seu marido ou seus filhos. A exigência excessivamente rígida de ordem e harmonia que caracterizava sua vida familiar não permitia o surgimento de um imprevisível que reorganizasse os circuitos destruidores das relações objetais, como dizíamos acima. Assim, criar os filhos e criar (n)a vida lhe pareciam duas coisas incompatíveis. O romance de Cunningham não indica quais caminhos Laura Brown pôde seguir em sua vida longe das obrigações familiares. Mas sabemos que acompanhava à distância a carreira literária do filho abandonado. Ao terminarmos a leitura de As horas, nos perguntamos: quão diferente precisaria ser o mundo para que a vida de Laura Brown lhe parecesse (mais) possível? Esperamos que discussões como a que propomos, sobre a normatividade e o papel que pode assumir a psicanálise na reformulação de relações que parecem tornar a vida mais vivível, possam contribuir para essa transformação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2015
  • Aceito
    03 Dez 2015
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