Acessibilidade / Reportar erro

Colecistectomia em cirróticos: convencional ou laparoscópica?

Cholecystectomy in cirrhotic patients: open or laparoscopic?

EDITORIAL

Colecistectomia em cirróticos: convencional ou laparoscópica?

Cholecystectomy in cirrhotic patients: open or laparoscopic?

Paulo Roberto Savassi-Rocha; Marcelo Dias Sanches

Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da UFMG

DESCRITORES – Colecistectomia laparoscópica. Cirrose hepática.

HEADINGS – Cholecystectomy laparoscopic. Liver cirrhosis.

O primeiro relato de colecistectomia feita através de laparoscopia foi apresentado em uma reunião cirúrgica alemã, em abril de 1986, por Mühe (Böblingen, Alemanha), que havia realizado a operação em setembro de 1985. Apesar de ter sido grande conquista, não mereceu muita atenção da comunidade cirúrgica. Dois anos após, Mouret, um ginecologista francês, realizou uma colecistectomia laparoscópica (CL) que inspirou os cirurgiões franceses Dubois e Perissat, em 1988, a elaborarem, independentemente, a técnica para a CL.

Nestes quase 20 anos, a CL se firmou como padrão ouro no tratamento da colecistolitíase. Historicamente, as contra-indicações incluíam obesidade, gravidez, colecistite aguda, extremos de idade, doenças cardiovasculares e cirrose hepática. Atualmente, a CL tornou-se o procedimento de escolha também para estes grupos de pacientes, com exceção dos portadores de cirrose hepática.

No início, a cirrose hepática foi considerada uma contra-indicação absoluta para a CL devido, principalmente, ao risco de sangramento transoperatório(21). Este risco está ainda mais aumentado se co-existirem hipertensão porta e/ou distúrbios hemorrágicos.

Entretanto, a colecistectomia convencional (CC) nesses pacientes, também acarreta alto índice de complicações, que incluem sangramento transoperatório, infecção de sítio cirúrgico, infecção pulmonar e descompensação da cirrose, dentre outras. Diversos estudos revelam taxas de mortalidade de 7% até 83% para a CC em cirróticos graves. Entretanto, a cirrose por si só não contra-indica a cirurgia. O risco da CC no cirrótico está diretamente relacionado com a gravidade da doença hepática, sendo a hipertensão porta um fator agravante. Por outro lado, cirróticos com função hepática preservada e sem hipertensão porta têm baixo risco operatório com mortalidade semelhante a dos indivíduos não-cirróticos.

A taxa de mortalidade para a CL em pacientes não-cirróticos está em torno de 0,1%. Analisamos 16 estudos da literatura que avaliam a CL em cirróticos, totalizando 566 pacientes (552 - Child A/B, 4 - Child C) com mortalidade operatória global de 0,35% (2 casos Child A/B)(1, 2, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 17, 18, 19, 20, 22). O trabalho apresentado por FONTES et al.(6) nesta edição dos ARQUIVOS de GASTROENTEROLOGIA, também nos mostra que é seguro operar pacientes cirróticos Child A/B, desde que compensados clinicamente.

YERDEL et al.(22) compararam prospectivamente a CL (sete casos) e a CC (sete casos) em cirróticos e relataram vantagens da primeira em relação à segunda. Estas incluem menor sangramento transoperatório, menor incidência de complicações pós-operatórias e menor tempo de permanência hospitalar. Concluíram que, ao contrário do que se acreditava anteriormente, a cirrose por si só não é uma contra-indicação à CL.

FERNANDES et al.(5) realizaram estudo retrospectivo comparando os resultados da CL em cirróticos Child A/B (48 casos) e não-cirróticos (187 casos). Não encontraram diferenças em relação ao tempo operatório, permanência hospitalar e mortalidade. Entretanto, os cirróticos apresentaram maior necessidade de hemotransfusão (0,156 vs 0 unidades de concentrado de hemácias), e maiores taxas de conversão (8,3% vs 0%) e de incidência de complicações (12,5% vs 4,2%).

A maior casuística individual de CL em cirróticos publicada na literatura é a de YEH et al.(20). Compararam, retrospectivamente, a CL em cirróticos Child A/B (226 casos) e não-cirróticos (4.030 casos). Não houve diferença em relação ao tempo operatório, incidência de conversão, morbidade pós-operatória e permanência hospitalar. Entretanto, a incidência de sangramento transoperatório foi maior nos cirróticos (54,1 mL vs 30,1 mL), como também foi maior a taxa de mortalidade (0,88% vs 0,01%).

A taxa de conversão para a cirurgia convencional durante a CL em cirróticos varia na literatura de 0% a 9,5%, com média de 7,2%. As taxas de 0% são encontradas somente nas séries com casuística muito pequena, o que pode refletir um viés. A taxa de conversão na série de YEH et al.(20) (226 casos) foi de 4,4%, indicando que a taxa global de conversão pode diminuir com a experiência adquirida na realização de CL em cirróticos.

Embora a CL seja segura em pacientes com cirrose não-avançada, diversos cuidados devem ser tomados, pois esses pacientes apresentam alterações relacionadas não só com o fígado, como também com a hipertensão porta(3, 14, 15, 16).

Em primeiro lugar, o lobo hepático direito costuma estar endurecido e/ou aumentado de tamanho, impedindo que ele se dobre quando tracionamos a vesícula biliar em sentido cranial. Tal fato impossibilita a exposição adequada do triângulo de Calot. Quando isto ocorre, devemos apreender a vesícula na sua porção central ao invés de apreendê-la no infundíbulo. Deste modo, conseguimos tracionar a vesícula e expor o triângulo de Calot sem precisar dobrar o lobo hepático direito. Outras vezes, o lobo caudado e/ou o segmento lateral esquerdo são proeminentes, dificultando a visão do hilo hepático. Nestes casos, podemos usar afastadores de fígado introduzidos através de outros portos. Por fim, todo o fígado pode estar diminuído de tamanho, situando-se em posição mais cranial do que o costume, sendo necessária a colocação dos portos em posição mais cranial do que a habitual, sempre evitando a linha mediana para não perfurar o ligamento falciforme.

Em relação à hipertensão porta é importante suturar a abertura musculoaponeurótica decorrente da colocação dos portos para que não ocorra extravasamento de ascite no pós-operatório. Em relação ao primeiro trocater, este deve ser introduzido fora da região umbilical devido ao risco de sangramento grave decorrente da recanalização da veia umbilical. Preferencialmente, devemos introduzi-lo à esquerda do umbigo. Antes de se iniciar a dissecção da vesícula biliar, é de extrema importância observar se há sinais de hipertensão porta na confluência desta com o leito hepático, pois lesão destes vasos é causa de sangramento volumoso. Nestes casos, alguns autores recomendam, inclusive, a conversão para a cirurgia convencional.

Podemos concluir que a CL em pacientes cirróticos é segura naqueles classificados como Child A ou Child B sem hipertensão porta significativa. Possui vantagens em relação à cirurgia convencional, desde que alguns cuidados sejam tomados visando evitar, principalmente, sangramento transoperatório com suas conseqüências.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Angrisani L, Lorenzo M, Corcione F, Vincenti R. Gallstones in cirrhotics revisited by a laparoscopic view. J Laparoendosc Adv Surg Tech A. 1997;7:213-20.

2. Bende J, Csiszar M. Laparoscopic cholecystectomy in patients with liver cirrhosis. Orv Hetil 1997;138:481-2.

3. Clark JR, Wills VL, Hunt DR. Cirrhosis and laparoscopic cholecystectomy. Surg Laparosc Endosc Percutan Tech 2001;11:165-9.

4. D'Albuquerque LA, Miranda MP, Genzini T, Copstein JL, Oliveira e Silva A. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patients. Surg Laparosc Endosc 1995:5:272-6.

5. Fernandes NF, Schwesinger WH, Hilsenbeck SG, Gross GW, Bay MK, Sirinek KR, Schenker S. Laparoscopic cholecystectomy and cirrhosis: a case-control study of outcomes. Liver Transpl 2000;6:340-4.

6. Fontes PRO, Mattos AA, Eilers RJ, Nectoux M, Pinheiro JOP. Colecistectomia laparoscópica em cirróticos. Arq Gastroenterol 2002;39:212-6.

7. Friel CM, Stack J, Forse A, Babineau TJ. Laparoscopic cholecystectomy in patients with hepatic cirrhosis: a five-year experience. J Gastrointest Surg 1999;3:286-91.

8. Gugenheim J, Casaccia M Jr, Mazza D, Toouli J, Laura V, Fabiani P, Mouiel J. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patient. HPB Surg 1996;10:79-82.

9. Jan YY, Chen MF. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patients. Hepatogastroenterology 1997;44:1584-7.

10. Lacy AM, Balaguer C, Andrade E, Garcia-Valdecasas JC, Grande L, Fuster J, Bosch J, Visa J. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patients. Indication or contradiction? Surg Endosc 1995;9:407-8.

11. Leone N, Garino M, De Paolis P, Pellicano R, Fronda GR, Rizzetto M. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patients. Dig Surg 2001;18:449-52.

12. Morino M, Cavuoti G, Miglietta C, Giraudo G, Simone P. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhosis: contraindication or privileged indication? Surg Laparosc Endosc Percutan Tech 2000;10:360-3.

13. Pezzolla F, Lorusso D. Morbidity after video-laparoscopic cholecystectomy in cholelithiasis associated with liver cirrhosis. A case-control study. Ann Ital Chir 1997;68:837-40.

14. Poggio JL, Rowland CM, Gores GJ, Nagorney DM, Donohue JH. A comparison of laparoscopic and open cholecystectomy in patients with compensated cirrhosis and symptomatic gallstone disease. Surgery 2000;127:405-11.

15. Radu H, Osian G, Vlad L, Vieru V, Mutelica L. Comparative study of accidents and complications of laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic and non cirrhotic patients. Rom J Gastroenterol 2002;11:13-7.

16. Saeki H, Korenaga D, Yamaga H, Mawatari K, Orita H, Itasaka H, Yano K, Maekawa S, Muto Y, Ikeda T, Sugimachi K. A comparison of open and laparoscopic cholecystectomy for patients with cirrhosis. Surg Today 1997;27:411-3.

17. Sleeman D, Namias N, Levi D, Ward FC, Vozenilek J, Silva R, Levi JU, Reddy R, Ginzburg E, Livingstone A. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patients. J Am Coll Surg 1998;187:400-3.

18. Tuech JJ, Pessaux P, Regenet N, Rouge C, Bergamaschi R, Arnaud JP. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patients. Surg Laparosc Endosc Percutan Tech 2002;12:227-31.

19. Urban L, Eason GA, ReMine S, Bogard B, Magisano J, Raj P, Pratt D, Brown T. Laparoscopic cholecystectomy in patients with early cirrhosis. Curr Surg 2001;58:312-5.

20. Yeh CN, Chen MF, Jan YY. Laparoscopic cholecystectomy in 226 cirrhotic patients. Experience of a single center in Taiwan. Surg Endosc 2002;16:1583-7.

21. Yerdel MA, Tsuge H, Mimura H, Sakagami K, Mori M, Orita K. Laparoscopic cholecystectomy in cirrhotic patients: expanding indications. Surg Laparosc Endosc 1993;3:180-3.

22. Yerdel MA, Koksoy C, Aras N, Orita K. Laparoscopic versus open cholecystectomy in cirrhotic patients: a prospective study. Surg Laparosc Endosc 1997;7:483-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2003
  • Data do Fascículo
    Out 2002
Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas de Gastroenterologia e Outras Especialidades - IBEPEGE. Rua Dr. Seng, 320, 01331-020 São Paulo - SP Brasil, Tel./Fax: +55 11 3147-6227 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretariaarqgastr@hospitaligesp.com.br