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Melanoma em cavidade anoftálmica secundária a evisceração: relato de 2 casos e revisão da literatura

Malignant melanoma in anophthalmic socket post-evisceration: case reports and literature review

Resumos

Os autores relatam 2 casos de pacientes com melanoma em cavidade anoftálmica secundária a eviscerações ocorridas há 30 e 60 anos. Em ambos os casos a análise histopatológica mostrou que o tumor estava aderido a remanescentes esclerais. A implicação desses casos foi discutida no contexto das indicações de evisceração e enucleação.

Melanoma; Neoplasias uveais; Exenteração orbitária; Anoftalmia; Adulto; Relato de caso; Revisão


We report 2 cases of malignant melanoma in anophthalmic sockets of patients who had undergone eviscerations 30 and 60 years ago. The histopathologic analysis showed that the tumors were adherent to scleral remnants. The implications of these cases were discussed in the context of the indications of evisceration and enucleation.

Melanoma; Uveal neoplasms; Orbit evisceration; Anophthalmos; Adult; Case report; Review


RELATOS DE CASOS

Melanoma em cavidade anoftálmica secundária a evisceração - Relato de 2 casos e revisão da literatura

Malignant melanoma in anophthalmic socket post-evisceration - Case reports and literature review

Patricia Mitiko Santello AkaishiI; Valéria Mariano KitagawaII; Fernando ChahudIII; Antonio Augusto Velasco e CruzIV

IPós-graduanda no Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP

IIMédica residente no Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP

IIIMédico colaborador do Departamento de Patologia do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo - USP

IVProfessor associado

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Antonio Augusto Velasco e Cruz Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Hospital das Clínicas-Campus Av. Bandeirantes, 3900 Ribeirão Preto (SP) CEP 14048-900 E-mail: aavecruz@fmrp.usp.br

RESUMO

Os autores relatam 2 casos de pacientes com melanoma em cavidade anoftálmica secundária a eviscerações ocorridas há 30 e 60 anos. Em ambos os casos a análise histopatológica mostrou que o tumor estava aderido a remanescentes esclerais. A implicação desses casos foi discutida no contexto das indicações de evisceração e enucleação.

Descritores: Melanoma/cirurgia; Neoplasias uveais/cirurgia, Exenteração orbitária; Anoftalmia; Adulto; Relato de caso; Revisão [Tipo de publicação]

ABSTRACT

We report 2 cases of malignant melanoma in anophthalmic sockets of patients who had undergone eviscerations 30 and 60 years ago. The histopathologic analysis showed that the tumors were adherent to scleral remnants. The implications of these cases were discussed in the context of the indications of evisceration and enucleation.

Keywords: Melanoma/surgery; Uveal neoplasms/surgery; Orbit evisceration; Anophthalmos; Adult; Case report; Review [Publication type]

INTRODUÇÃO

Melanomas são tumores malignos derivados de melanócitos da crista neural. Essas células estão presentes na epiderme, derme, tecido conjuntival e uveal(1).

Os melanomas primários de órbita são extremamente raros pois a órbita é desprovida de melanócitos(2-5). Dessa maneira os melanomas orbitários são, em sua grande maioria, secundários a melanomas uveais ou conjuntivais(2,6). Em cavidades anoftálmicas, os melanoma orbitários são, em geral, decorrentes de recidiva de melanomas uveais de olhos previamente enucleados(7). Sabe-se que a recorrência orbitária após a enucleação ocorre em 3% dos casos dos melanomas restritos ao compartimento intra-ocular e em 18% dos casos nos quais há evidências histológicas de extensão extra-escleral(8). A recidiva orbitária pode ocorrer até 42 anos após a enucleação(9). Na ausência de história pregressa de melanoma, o diagnóstico da origem do tumor nas cavidades anoftálmicas é, às vezes, bastante difícil e depende dos achados clínicos e histopatológicos.

No presente trabalho apresentamos 2 casos de melanoma em cavidades anoftálmicas após eviscerações ocorridas, por causas desconhecidas, há 30 e 60 anos. Discutimos as prováveis origens do melanoma e os dados da literatura sobre o assunto.

RELATO DE CASOS

Caso 1:

Paciente do sexo masculino, 64 anos, apresentou massa em cavidade anoftálmica esquerda há 5 meses, com crescimento progressivo e sangramento da lesão. O olho esquerdo foi eviscerado na infância devido à perda visual associada à inflamação de causa desconhecida. Ao exame apresentava massa endurecida e protrusa em órbita esquerda. A tomografia computadorizada de órbitas revelou massa lobulada, hiperdensa, com calcificações periféricas, erodindo parede medial, assoalho e teto da órbita esquerda, invadindo seios paranasais (Figura 1). Foi submetido à biópsia incisional que revelou tratar-se de melanoma maligno com padrão celular misto, constituído por células epitelióides e fusiformes. Não havia evidências sistêmicas de metástases. Realizou-se, então, exenteração orbitária esquerda. A avaliação histopatológica do material demonstrou que o tumor foi completamente ressecado e apresentava nítida adesão escleral. Após 4 meses nova investigação sistêmica mostrou nódulos pulmonares de origem metastática.


Caso 2:

Paciente do sexo feminino, 58 anos, apresentava história de glaucoma absoluto em olho direito, tendo sido submetida à evisceração há 30 anos devido à dor ocular. Há 3 anos notou o aparecimento de um nódulo endurecido e violáceo em cavidade direita. Procurou serviço oftalmológico onde foi solicitada tomografia computadorizada de órbitas demonstrando massa ocupando assoalho de órbita direita (Figura 2). Foi encaminhada ao nosso serviço em fevereiro de 2000 onde observamos massa escurecida preenchendo a órbita eviscerada e estendendo-se para pálpebra inferior. O exame do olho contralateral era normal e a gonioscopia mostrava um seio camerular amplo. Foi submetida à biópsia que mostrou células neoplásicas melanocíticas de padrão celular misto com predomínio de células fusiformes. Foi realizado estudo imunohistoquímico com positividade difusa para anticorpos anti HMB45, proteína S100 e vimentina e negatividade difusa para desmina e AE1AE3. A investigação sistêmica foi negativa para metástases e a paciente foi submetida à exenteração orbitária com remoção total do tumor. Após 3 anos de seguimento não há sinais de recidiva ou metástases.


COMENTÁRIOS

A presença de melanoma em cavidades anoftálmicas secundárias a eviscerações nos remete a um tema recorrente na literatura oftalmológica: as indicações para evisceração e enucleação.

Na evisceração a anatomia orbitária é preservada pois cirurgia é restrita ao compartimento intra-ocular. Isso traz vantagens cosméticas e funcionais como a manutenção da motilidade e menor redução do volume orbitário(10).

A enucleação é uma cirurgia mais complexa na qual o conteúdo orbitário é envolvido. A secção do nervo óptico, na sua porção orbitária, produz uma continuidade potencial com a cavidade craniana através do espaço subaracnoideo(10). A maior manipulação tecidual causa mais atrofia da gordura orbitária e conseqüente perda de volume da cavidade(10-11). No entanto, com a melhora das técnicas cirúrgicas e fixação dos músculos extra-oculares ao implante, este efeito estético negativo pode ser minimizado com resultados bastante semelhantes aos da evisceração(12).

Há algumas indicações absolutas para cada procedimento mas freqüentemente a escolha depende da preferência do oftalmologista. As indicações absolutas para enucleação são neoplasias intra-oculares que não podem ser tratadas por métodos alternativos conservadores ou em casos de traumatismos extensos com grande perda tecidual e possibilidade de desenvolvimento de oftalmia simpática. A evisceração é o procedimento de escolha nos casos de endoftalmite, devido ao risco de disseminação da infecção intra-ocular para os tecidos orbitários e meninges(10,12-13).

Em olhos que perderam as funções visuais e tornaram-se dolorosos a evisceração é preferida pela maioria dos autores quando é possível afastar a hipótese de um tumor maligno intra-ocular(10,13). Quando não é possível descartar a presença de um tumor intra-ocular através de observação fundoscópica direta ou métodos diagnósticos complementares como a ultra-sonografia ocular ou tomografia computadorizada, a enucleação, com análise histopatológica do globo ocular, deve ser realizada.

No primeiro caso descrito não há dados que permitam concluir qual foi a indicação da evisceração. É provável que, neste caso, o melanoma tenha se desenvolvido a partir de melanócitos residuais da cavidade eviscerada. É um fato extremamente raro e somente 1 caso semelhante foi previamente relatado, com o desenvolvimento de melanoma, envolvendo remanescentes esclerais, 63 anos após evisceração(14).

O segundo paciente apresentou glaucoma agudo unilateral que não respondeu ao tratamento clínico, levando à perda visual. Há grande probabilidade de que o glaucoma, neste caso, tenha sido secundário a um melanoma uveal não diagnosticado. A evisceração realizada neste caso foi totalmente equivocada pois não houve investigação da patologia básica. Em glaucomas que se desenvolvem unilateralmente, sem antecedente traumático ou vascular, é mandatório investigar-se a presença de neoplasia intra-ocular(15-16).

A apresentação clínica do melanoma uveal é variável e pode causar quadros de glaucoma neovascular, glaucoma de ângulo estreito, facomórfico ou uveítico(15-16). Nestes casos, quando a avaliação detalhada do fundo de olho é inviável devido ao comprometimento dos meios transparentes, o diagnóstico presuntivo é feito através de métodos de imagem. Somente o exame histopatológico do olho enucleado pode confirmar o diagnóstico de melanoma. A enucleação é o tratamento de escolha para tumores grandes (maior que 16 mm de extensão), localizados próximo ao corpo ciliar(7).

Embora a enucleação não esteja associada à prevenção de metástase ou mesmo ao aumento da sobrevida em relação às terapias conservadoras(17), ela é, evidentemente, uma opção superior à evisceração, pois previne a extensão extra-escleral do tumor evitando, assim, a necessidade de procedimentos mais mutilantes como a exenteração. Mesmo assim, estima-se que a ocorrência de melanoma metastático, após a enucleação, ocorra em 35% dos casos em 5 anos, 48% em 10 anos, 54% em 15 anos e 40% em 25 anos(18). Aproximadamente 95% das metástases de melanomas uveais são hepáticas(1). A recorrência do tumor na órbita ou no olho contralateral já foi descrita após 28(19), 40(20) e até 42 anos(9) após a enucleação.

Tumores uveais menores em olhos que mantém suas funções visuais, sem sinais de crescimento, podem ser tratados conservadoramente com outras modalidades terapêuticas tais como fotocoagulação com laser, termoterapia, radioterapia com placas, radioterapia com feixe externo e, mesmo, observações periódicas(18).

Em resumo, a opção entre evisceração e enucleação deve ser cuidadosamente avaliada, respeitando-se as indicações absolutas para cada procedimento. A possibilidade de desenvolvimento de melanoma uveal em cavidades evisceradas, embora rara, deve ser considerada.

Recebido para publicação em 22.03.2004

Versão revisada recebida em 15.07.2004

Aprovação em 23.07.2004

Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia, Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP.

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  • Endereço para correspondência
    Antonio Augusto Velasco e Cruz
    Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Hospital das Clínicas-Campus
    Av. Bandeirantes, 3900
    Ribeirão Preto (SP) CEP 14048-900
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Abr 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Aceito
      23 Jul 2004
    • Revisado
      15 Jul 2004
    • Recebido
      22 Mar 2004
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