Acessibilidade / Reportar erro

O Primeiro Passo

Palavras-chave
Iniquidade de Gênero; Autoria; Publicações; Cardiologia

George Eliot e George Sand, romancistas do século XIX, eram pseudônimos de Mary Ann Evans e Amandine Aurore Lucile Dupin, respectivamente. Em comum, duas mulheres que para atingirem reconhecimento por seus textos, utilizavam nomes masculinos em suas obras, como bem relata Nodari em seu artigo publicado em 2021.11 Nodari S. Nomes e pronomes na Língua Portuguesa: a questão sexista no idioma e na academia. Rev Est Fem. 2021;29(3): e74197. doi: 10.1590/1806-9584-2021v29n374197.
https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v2...
Muito além do conhecimento histórico, analisar a disparidade de gênero na produção científica transcende a literatura e deve ser entendido como resultado de um processo de formação e desenvolvimento da sociedade. É inquestionável o modelo patriarcal, branco e com privilégios financeiros que, aliados a uma visão do “homem detentor da razão e a mulher detentora da emoção”,22 Oliveira-Ciabati L, Santos LL, Hsiou AS, Sasso AM, Castro M, Souza JP. Scientific Sexism: The Gender Bias in the Scientific Production of the Universidade de São Paulo. Rev Saude Publica. 2021;55:46. doi: 10.11606/s1518-8787.2021055002939.
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021...
ajudaram a construir o modelo de ciência que, de maneira equivocada, afastou as mulheres do campo científico.

Pensar este modelo como algo pertencente ao passado não é adequado. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2019, expõe uma realidade social que apresenta reflexos na formação da cientista.33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019 [cited 2022 Nov 7]. Available from: https://www.ibge.gov.br/
https://www.ibge.gov.br/...
As mulheres dispensam duas vezes mais tempo aos afazeres domésticos por semana em relação aos homens da mesma faixa etária (21,4 versus 11 horas), têm menor remuneração que seus pares do sexo masculino (77% da renda masculina), e naquelas com idade entre 25 e 49 anos que convivem no mesmo domicílio que uma criança de até três anos, o percentual de inserção no mercado de trabalho é menor que o dos homens na mesma situação (59,6% versus 89,2%).33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019 [cited 2022 Nov 7]. Available from: https://www.ibge.gov.br/
https://www.ibge.gov.br/...

Apesar do número crescente de mulheres na medicina e da formação universitária generalista mais jovem, a cardiologia ainda é uma especialidade com predominância masculina.44 Scheffer M. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP; 2020.,55 Burgess S, Shaw E, Zaman S. Women in Cardiology. Circulation. 2019;139(8):1001-2. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.118.037835.
https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.1...
Em 2020, a relação homem/mulher era 2,21, ao contrário de outras especialidades como dermatologia, pediatria e endocrinologia, com relações inferiores a 1.44 Scheffer M. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP; 2020. Este padrão observado no Brasil também é encontrado nos Estado Unidos66 Borrelli N, Brida M, Cader A, Sabatino J, Czerwińska-Jelonkiewicz K, Shchendrygina A, et al. Women Leaders in Cardiology. Contemporary Profile of the WHO European Region. Eur Heart J Open. 2021;1(1):oeab008. doi: 10.1093/ehjopen/oeab008.
https://doi.org/10.1093/ehjopen/oeab008...
e na Europa,77 Mehran R, Kumar A, Bansal A, Shariff M, Gulati M, Kalra A. Gender and Disparity in first Authorship in Cardiology Randomized Clinical Trials. JAMA Netw Open. 2021;4(3):e211043. doi: 10.1001/jamanetworkopen.2021.1043.
https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen....
com baixa representatividade global feminina na cardiologia ou em posições de liderança dentro da especialidade.

Após a especialização, o caminho segue em direção à pós-graduação para a formação docente com a consequente e natural liderança em áreas de pesquisa. Novamente, o cenário não sofre alterações e as mulheres representam 46% do corpo docente superior.33 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019 [cited 2022 Nov 7]. Available from: https://www.ibge.gov.br/
https://www.ibge.gov.br/...
Este dado é, na prática, refletido no estudo de Oliveira-Ciabati et al., que demonstrou que mais de 60% da composição docente da Universidade de São Paulo é do sexo masculino, o que também contribui para o aumento da disparidade de gênero nas publicações.22 Oliveira-Ciabati L, Santos LL, Hsiou AS, Sasso AM, Castro M, Souza JP. Scientific Sexism: The Gender Bias in the Scientific Production of the Universidade de São Paulo. Rev Saude Publica. 2021;55:46. doi: 10.11606/s1518-8787.2021055002939.
https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021...

Neste contexto, o estudo publicado nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia é fundamental para o entendimento do meio acadêmico brasileiro.88 Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967. Nele, os autores abordam de maneira bastante elucidativa a disparidade de gênero nas publicações das revistas Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC Cardiol) e International Journal of Cardiovascular Sciences (IJCS), de 2000 a 2019.

Entre os 1555 artigos publicados nas revistas que representam as maiores fontes de estudos na cardiologia do país, os autores observaram que as mulheres apresentaram predominância apenas na primeira autoria e apenas na revista IJCS (53%), enquanto homens predominaram na primeira autoria nos ABC Cardiol (58%) e como autores seniores em ambas (75% no ABC Cardiol e 59% no IJCS).88 Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967. De maneira geral, sabe-se que a primeira autoria reflete o principal responsável pelo artigo em questão, enquanto o último autor, ou sênior, reflete o líder da linha de pesquisa responsável pelo trabalho mais abrangente, capaz de gerar outras publicações.

Outra observação feita pelos autores refere-se à evolução temporal da predominância de gênero nos campos autorais. Apesar de estarem sub-representadas nas revistas, entre 2000 e 2019, no ABC Cardiol, houve aumento na primeira autoria feminina dos artigos, de 12% para 44%. Enquanto última autoria, e, portanto, autoras seniores, o aumento foi mais modesto, de 16% em 2000 para 27% em 2019, na mesma revista.88 Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967.

Entre os fatores ressaltados pelos autores que podem contribuir para esta disparidade de gênero, estão a visão estereotipada de que apenas o homem representa o cientista de sucesso, e a maternidade.55 Burgess S, Shaw E, Zaman S. Women in Cardiology. Circulation. 2019;139(8):1001-2. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.118.037835.
https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.1...
,88 Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967. Embora o primeiro possa ser inconsciente e o segundo inerente ao gênero, ambos devem ser considerados na discussão sobre disparidade nas publicações cientificas e nenhum dos dois, isoladamente é consistente com os resultados observados.

O padrão notado no estudo88 Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967. não é exclusivo das publicações nacionais,77 Mehran R, Kumar A, Bansal A, Shariff M, Gulati M, Kalra A. Gender and Disparity in first Authorship in Cardiology Randomized Clinical Trials. JAMA Netw Open. 2021;4(3):e211043. doi: 10.1001/jamanetworkopen.2021.1043.
https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen....
e pode ser observado também em ensaios clínicos randomizados na cardiologia indexados no PubMed entre 2011 e 2020,99 Rai D, Kumar A, Waheed SH, Pandey R, Guerriero M, Kapoor A, et al. Gender Differences in International Cardiology Guideline Authorship: A Comparison of the US, Canadian, and European Cardiology Guidelines From 2006 to 2020. J Am Heart Assoc. 2022;11(5):e024249. doi: 10.1161/JAHA.121.024249.
https://doi.org/10.1161/JAHA.121.024249...
e em diretrizes do Colégio Americano (American College of Cardiology/American Heart Association – ACC/AHA), da Sociedade de Canadense (Canadian Cardiovascular Society – CCS), e da Sociedade Europeia de Cardiologia (European Society of Cardiology – ESC), entre 2006 e 2020.1010 Oliveira GMM, Tenorio M, Siqueira ASE. Science Gender Gap: Are We in theRight Path? Int J Cardiovasc Sci. 2022; 35(2), 148-151. Doi: 10.36660/ijcs.20220029.
https://doi.org/10.36660/ijcs.20220029...
Em ambos os estudos que avaliaram as publicações mencionadas, a sub-representatividade das mulheres se mantém, seja na autoria principal, seja como líder de pesquisa.

Por fim, a desigualdade de gênero encontrada nas publicações científicas tem origem multifatorial e inter-relações complexas, refletindo provavelmente o comportamento da sociedade. Iniquidades existentes anteriores à formação no ensino superior, desigualdades de renda e oportunidades devido à estereótipos inconsistentes, maternidade, dupla jornada de trabalho e sexismo estrutural, são apenas alguns entraves no sinuoso caminho da mulher até a autoria ou liderança científica. Para mudar este cenário, é preciso reconhecer o problema, e desta forma, a contribuição do estudo88 Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967. é essencial. O caminho em direção a equidade é longo, mas o primeiro passo foi dado.88 Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967.

  • Minieditorial referente ao artigo: Disparidade de Gênero na Autoria Principal e Sênior em Periódicos Brasileiros de Cardiologia

Referências

  • 1
    Nodari S. Nomes e pronomes na Língua Portuguesa: a questão sexista no idioma e na academia. Rev Est Fem. 2021;29(3): e74197. doi: 10.1590/1806-9584-2021v29n374197.
    » https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n374197
  • 2
    Oliveira-Ciabati L, Santos LL, Hsiou AS, Sasso AM, Castro M, Souza JP. Scientific Sexism: The Gender Bias in the Scientific Production of the Universidade de São Paulo. Rev Saude Publica. 2021;55:46. doi: 10.11606/s1518-8787.2021055002939.
    » https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2021055002939
  • 3
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2019 [cited 2022 Nov 7]. Available from: https://www.ibge.gov.br/
    » https://www.ibge.gov.br/
  • 4
    Scheffer M. Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP; 2020.
  • 5
    Burgess S, Shaw E, Zaman S. Women in Cardiology. Circulation. 2019;139(8):1001-2. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.118.037835.
    » https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.118.037835
  • 6
    Borrelli N, Brida M, Cader A, Sabatino J, Czerwińska-Jelonkiewicz K, Shchendrygina A, et al. Women Leaders in Cardiology. Contemporary Profile of the WHO European Region. Eur Heart J Open. 2021;1(1):oeab008. doi: 10.1093/ehjopen/oeab008.
    » https://doi.org/10.1093/ehjopen/oeab008
  • 7
    Mehran R, Kumar A, Bansal A, Shariff M, Gulati M, Kalra A. Gender and Disparity in first Authorship in Cardiology Randomized Clinical Trials. JAMA Netw Open. 2021;4(3):e211043. doi: 10.1001/jamanetworkopen.2021.1043.
    » https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2021.1043
  • 8
    Mesquita CT, Lacerda AG, Frantz EDC, Alves VPV, Amorim LEO, Coutinho BA, et al. Gender Disparity in First and Senior Authorship in Brazilian Cardiology Journals. Arq Bras Cardiol. 2022; 119(6):960-967.
  • 9
    Rai D, Kumar A, Waheed SH, Pandey R, Guerriero M, Kapoor A, et al. Gender Differences in International Cardiology Guideline Authorship: A Comparison of the US, Canadian, and European Cardiology Guidelines From 2006 to 2020. J Am Heart Assoc. 2022;11(5):e024249. doi: 10.1161/JAHA.121.024249.
    » https://doi.org/10.1161/JAHA.121.024249
  • 10
    Oliveira GMM, Tenorio M, Siqueira ASE. Science Gender Gap: Are We in theRight Path? Int J Cardiovasc Sci. 2022; 35(2), 148-151. Doi: 10.36660/ijcs.20220029.
    » https://doi.org/10.36660/ijcs.20220029

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2022
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br