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Decisão mecânica ou biológica?

PONTO DE VISTA

Decisão mecânica ou biológica?

Max Grinberg

Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP, São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Max Grinberg Rua Manoel Antônio Pinto, 04/21A 05663-020 – São Paulo, SP E-mail: max@cardiol.br

Palavras-chave: Valvopatia, prótese valvar, bioética.

"As indicações do Oráculo de Delfos não deviam ser recebidas passivamente, os beneficiários tinham que viver a mensagem..."

Esclarecimento: no desenvolvimento do texto, os termos "cardiologia" e "cardiologista" consideram também a cirurgia cardíaca e o cirurgião cardiovascular.

I. Livro de cabeceira do leito

Destaque: "o estudo da Medicina principia com o paciente, continua com o paciente e finaliza com o paciente..." (William Bart Osler - 1849-1919).

Livros médicos altamente pedagógicos – coleção paciente – são editados na beira do leito; as folhas de rosto são precisamente os rostos dos pacientes. Há capítulos tão reveladores do ser humano, que o texto parece estar escrito com a própria caligrafia do autor-paciente; alguns deles se tornam livro de cabeceira, tal a empatia que envolve a relação médico-paciente.

Com a devida permissão, reproduzimos trecho de um livro sobre prótese-dependência que começou a ser escrito há mais de trinta anos por um portador de valvopatia aórtica. Ele convive, atualmente, com a sua quarta prótese e afirma que sempre teve ótima qualidade de vida "entre as operações": "nunca encarei a questão pelo lado de 'trocar uma doença por outra'; sempre ficou claro que eu era partícipe do processo de decisão e que seria melhor o que me desse um dia-a-dia o mais próximo possível do normal – trabalhar, ter e criar filhos, sustentar a família, poder fazer exercícios, ter vida sexual ativa, poder viajar, etc., etc., etc...; de certa forma o processo de 'escolha' nas quatro cirurgias que fiz foi dentro deste padrão de expectativa; entender o problema, obter as informações necessárias com o médico e, junto com ele, tomar a decisão melhor para minha qualidade de vida; da primeira vez, o peso das informações dos médicos foi muito forte, eu era jovem, com desconhecimento das variáveis, e fiz a cirurgia da valva aórtica sem muitas escolhas (ou talvez não me tenham sido expostas, à época, as alternativas de próteses); era mais ou menos me cingir à escolha entre os riscos da cirurgia versus os riscos da não cirurgia. Mas nas outras três vezes, para a retroca, as questões 'da vida mais próxima possível da normalidade' foram decisivas e, confesso, teve pouco a ver com a necessidade ou não de anticoagulação. Na segunda operação, por que tinha tido a experiência da 'vida normal' no período de uso da prótese de dura-máter, e, na terceira, quase que implorei, para receber uma prótese parecida com a anterior, por estar convencido que a prótese que usava era 'melhor' para este estágio a que me refiro de 'normalidade'; nunca cogitei de implantar uma prótese mecânica e não foi em função dos aspectos da anticoagulação; as decisões estiveram ligadas à experiência positiva anterior, àquilo que vivenciei, experiência que acreditava positiva e tipo de vida que levava. Já na última, aceitei muito bem as recomendações sobre a conveniência da prótese mecânica, pois me convenci, à luz das informações passadas, que tinha um coração já muito mexido e que o meu tórax não era um zíper, que poderia ser aberto ou fechado quando quisesse. Em outras palavras, nesta quarta operação pesou, e muito, a possibilidade de operar outra vez, sabe-se lá quando e em que estado, em contraponto a enfrentar a questão de TPs e uso de varfarina. Portanto, não se trata de que a prótese tal é melhor do que a outra, circunstâncias e valores pessoais valem muito, sobre as quais o médico pode, no máximo, alertar, orientar e dar opções. Acredito que as opções-decisões foram as mais adequadas por se enquadrarem na minha perspectiva de vida, naqueles momentos em que a vivenciava. Tem tudo a ver com a questão científica e os aspectos humanos e por isso a interação médico-paciente é crucial..."

Essa declaração vem ao encontro de um novo estado da arte na seleção do tipo de prótese valvar1; ele privilegia o impacto na qualidade de vida e, por isso, o alvo é móvel, desestimulando o uso de algoritmos. Dessa forma, a simplificação "preferem-se biopróteses após os 70 anos de idade e prótese mecânica em faixas etárias menores..."2 deve ser substituída pela apreciação mais abrangente "além dos endpoint mortalidade e morbidade relacionada à prótese, a seleção do tipo de prótese deve considerar endpoints da qualidade de vida pós-operatória..."1 .

Pesquisa recente constatou, para a posição aórtica, superioridade para bioprótese sobre a prótese mecânica (80% versus 70%) quanto ao "endpoint" grau de satisfação com a prótese-dependência. Os dados incluíram também o desejo pelo paciente de manutenção do mesmo tipo de prótese valvar em eventual reoperação3, como revelado antes.

O depoimento que personifica o alvo da nossa atenção a que se refere o artigo 2º do Código de Ética Médica traz lições sobre decidir pela qualidade de vida: a "visualização" da prótese pelo portador de valvopatia é essencial; a realidade interna pelos fatos análogos vivenciados aconselha uma escolha num primeiro estágio e um compromisso com ela subseqüentemente; a memória do paciente, como aspecto da prudência pela educação e pela experiência, é válida especialmente na retroca, em que o conteúdo do capítulo passado argumenta a "boa decisão" que o reproduzirá no capítulo futuro; o limite da recordação positiva como conselheira acontece quando o dever de informação do médico traz um argumento convincente para o paciente, a multiplicidade dos cenários; o da quarta cirurgia envolveu-o em representar outro papel, a ele mais ajustado. Note-se o valor do léxico, o pensamento-chave na motivação da decisão - zíper.

II. O navegador e o piloto

Destaque: Numa visão atual sobre decisões, o médico é o navegador e o paciente é o piloto4,5.

Ao sabor da beleza e da riqueza da língua portuguesa, a decisão mecânica, porque não personalizada, ou a decisão biológica, porque individualizada, comportam tanto o tipo de prótese mecânica quanto a biológica.

A substituição de uma parte do coração que nasceu consigo ambienta-se numa prioridade médica que se cerca de ambivalência por imperfeições com um preço a pagar. É ocasião que faz remoer sentimentos e elevar a sensibilidade do portador de valvopatia às ações de humanização. Segurar o cabo do martelo da decisão configura-se um gesto de antialienação, um símbolo da integração do método terapêutico aos valores de si próprio.

O núcleo desse martelo é o conhecimento científico universal que inclui sólidas experiências nacionais; ele, todavia, não se mostra tão compacto, há espaços carentes de randomização e de casuística mais homogênea para comparação, exigentes de tempo para preenchimento – cada novo modelo requer cerca de quinze anos; já o seu revestimento para o impacto, pretendemos que seja flexível o bastante para bem se adaptar às resistências naturais do ser humano e para ser complacente às configurações do sistema de saúde.

Quanto à modelagem do cabo, uma dúvida, a essência deste artigo: configurado para a mão do médico ou a do paciente?

As premissas para o cabo do martelo ser seguro pelo cardiologista são bem conhecidas; elas são "o melhor in vitro" reforçado ou anulado pelo in vivo das adaptações socioeconômicas. Para o paciente, elas são mais complexas, pois ele precisa vencer uma tendência à abdicação de decidir e combinar alguns predicados: capacidade – maior de idade com pleno juízo mental –; instrução – obter as noções necessárias –; compreensão – apreender os fundamentos para decidir –; persuasão – convencer-se da autorização; incoersão – livre de pressões quanto à autorização –; decisão – emitir a autorização.

Folheamos o álbum das experiências e deparamos com retratos que ora mostram o cabo do martelo decisório na mão do portador de valvopatia, talvez nem sempre bem esclarecido, ora na do cardiologista muitas vezes ambíguo ora na de ambos de modo compartilhado.

A questão heteronomia ou autonomia na tomada de decisão é para o portador de valvopatia uma verdadeira sobrecarga adicional à da pré-carga e da pós-carga. Diríamos que se trata de momento crucial da história natural da valvopatia no qual a necessidade de correção da sobrecarga hemodinâmica provoca uma sobrecarga humanodinâmica. E pode ser mais difícil lidar com essa, como retratou Fiodor Dostoievski (1821-1881) em Irmãos Karamázov: "porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher...".

Como é que o portador de valvopatia apreciaria o direito à liberdade de ajustar escolha e prioridade de compromisso, envolver-se no sim e descartar-se do não, quando ao buscar os fundamentos, cioso da prudência quanto ao seu futuro – porque, de fato, as implicações não são exatamente imediatas, elas se manifestam meses ou anos depois do ato operatório –, o seu cardiologista, que é o experiente do cotidiano, quem detém a memória do análogo, não dispõe das etiquetas resposta cientificamente certa, resposta cientificamente errada?

A indeterminação que é sentida pelo paciente fica evidente na seguinte consulta publicada no Heart Forum da Cleveland Clinic há alguns anos: "sou um homem de 36 anos que vai ser submetido à substituição da valva aórtica, em Londres. O cirurgião recomendou uma prótese mecânica, mas admitiu que outros proporiam a cirurgia de Ross, mas que ele entende ser de maior risco e com vantagens apenas conceituais. Quais são as desvantagens da varfarina? Coumadin é o mesmo? Terei que reduzir o consumo de álcool? Ela faz barulho? Eu tenho sono leve. Isto pode soar trivial, mas está me incomodando de verdade. Alguns já me disseram para escolher um homo-enxerto que dura 20 anos e outros que eu não devo temer reoperação. Estou inseguro..."

De fato, esse paciente não está pronto para enxergar a decisão diante de si; os esclarecimentos do seu médico parecem estar insuficientes quanto a certos pormenores, mas especialmente para o conscientizar de que não há decisão perfeita, o que existirá será a "excelente" dentre as possíveis para a circunstância.

Ao encalço de respostas sobre quem é que deve segurar o cabo do martelo decisório, sensibilizou-nos o conceito de médico-navegador e paciente-piloto4. Assim, o cardiologista é quem dá as coordenadas de navegação, e o portador de valvopatia é quem exerce a pilotagem da decisão sobre a prótese valvar. Nessa composição, ninguém abdica de seus valores, ambos permanecem soberanos da beira do leito, cada qual ao seu modo.

A seqüência informar-opinar-decidir-concordar-agir fica, então, distribuída: as duas partes primeiras, essencialmente, para o médico, a terceira para o paciente e as duas últimas novamente para o médico. A pretensão é a individualização da conduta, educar o paciente quanto às circunstâncias, elevar a sua adesão ao tratamento pelo compartilhamento e reduzir a probabilidade de insatisfações por má comunicação.

Encontramos a pertinência da comparação num texto sobre a função clássica de navegador6: "o navegador é a pessoa responsável pela orientação segundo normas preestabelecidas e pela identificação dos pontos críticos. Dessa forma, é importante o navegador conhecer as normas com riqueza de detalhes e ter capacidade para interpretações confiáveis; "atrasar" ou "não indicar" uma referência de perigo pode resultar num evento indesejado. Ao navegador não é permitido o erro. Quaisquer dúvidas que o piloto tenha sobre a qualidade da navegação resultarão em prejuízos a decisões de condução. Portanto, cabe ao navegador, acima de tudo, passar SEGURANÇA ao piloto..."

Quando afirmamos o direito de opinião sobre prótese valvar ao portador de valvopatia, assumimos o nosso respeito ao ditado: cada cabeça uma sentença; fornecemos a matéria-prima para forjar o martelo – compartilhamento das informações – e o paciente é quem bate – tomada de decisão.

A nossa expertise aconselha sobre o que há para ser feito e se deve ser feito (expectativa), enquanto os valores do paciente fundamentam se ele permite ser feito (vontade). Acatamos, dessa maneira, o paradigma bioético antropológico que a aproximação a cada pessoa deve ser sempre individualizada quando ela se encontra na situação de paciente.

Vale ter em mente a distinção entre o EU-ISSO, proposto pelo filósofo austríaco Martin Buber (1878-1965), que corresponderia, no caso, à preocupação do cardiologista com o coração deficiente pela valvopatia e com a prótese terapêutica, e o EU-TU, que representaria o cardiologista apoiar o paciente na comparação e na decisão e, a seguir, torná-la realidade clínica. A complementaridade ajuda a enxergar uma síntese da relação navegador-piloto na beira do leito: nada só por mim, nada sem mim.

III. O real ainda não Harken

Destaque: "idéias ousadas são como as peças de xadrez que se movem para a frente; podem ser comidas, mas podem começar um jogo vitorioso..." (Johann Wolfgang von Goethe - 1749-1832).

Um dos objetivos da cardiologia, o substituto valvar ideal há de chegar7,8. Ele trará hemodinâmica e hemocompatibilidade semelhantes às humanas numa prótese mecânica que não forma trombo ou numa bioprótese que não calcifica. A comunicação no momento de bater o martelo sobre o tipo de prótese valvar resultará altamente beneficiada.

Enquanto a prótese valvar ideal se demora nos laboratórios, não merecedora ainda do certificado de aprovação assinado por Harken7, esperança que uma futura geração não muito distante formule a pergunta progressista de todos os tempos como é que podia ser daquela forma?, sete entre dez operados por valvopatia trocam estenose ou insuficiência valvares incapacitantes por um abre-e-fecha postiço, numa certa proporção (quatro próteses biológicas para uma mecânica - dados do InCor).

O real disponibilizado dá conta de produzir a beneficência classes I ou II-A9 que almejamos pela reprogramação do fluxo intracardíaco; quando removemos a valva lesada do caminho do sangue para que ele passe por uma prótese valvar, o fisiopatológico remodela-se inversamente, marcha a ré na direção do fisiológico.

A demanda mundial por próteses valvares provoca crescente implicação econômico-financeira; o mercado dos Estados Unidos da América estimou faturar "worldwide" mais de um bilhão de dólares em 200510. Cada portador de valvopatia é ínfimo na manifestação da prótese como bem material e supremo na sua manifestação como bem da humanidade.

Mesclamos a baixa, a média e a alta tecnologia para o exercício da cardiologia. Não é suficiente. Gostaríamos de ter mais e poder prevenir e tratar melhor as cardiopatias. As justificativas para os limites atuais, não as vemos como ponto final. São ponto e vírgula do momento que evoluirá.

Em prol da beneficência, sentimo-nos estimulados a transcender; na busca do ainda mais útil e mais eficaz somos impelidos pelo simbolismo mitológico das asas do caduceu de Hermes – não importa o quanto herético esse seja11,12; para a conotação proética, o que importa é a presença das asas, inexistentes no bastão de Esculápio. Apenas a sabedoria da serpente não basta quando é o paciente o nosso convidado para o vôo.

Dédalo conseguiu chegar ao destino, Ícaro não, apesar de pai e filho terem usado a mesma cera para colar as asas; Ícaro, no entusiasmo da ambição, esqueceu os conselhos do pai sobre o Sol e elevou-se tanto que a cera derreteu. Lembremos que ética pode ser conceituada como os limites que devem ser impostos na busca da ambição.

Assim, o alcance dos nossos vôos da ponte aérea entre ciência e humanismo está sob o controle da ética – é vedado ao médico constitui caput de 77% dos artigos do Código de Ética Médica brasileiro. Plano de vôo aprovado, o cardiologista pode fazer decolar a capacidade de realização, sobrevivência profissional e sobrevida para o paciente.

O vôo inaugural da tecnologia em prótese valvar aconteceu em 11 de setembro de 1952, na Georgetown University. O artefato era de plexiglas com bola interna e foi usado para o tratamento de insuficiência aórtica. O implante foi feito na aorta descendente após a artéria subclávia de uma mulher de 53 anos pelo próprio autor do projeto, o cirurgião americano Charles Anthony Hufnagel (1916-1989). A paciente beneficiou-se do pioneirismo por oito anos, sem tomar anticoagulante. A prótese de Hufnagel produzia um som característico que era audível a cerca de um metro de distância, quando o paciente abria a boca.

O desenvolvimento da circulação e oxigenação extracorpórea abriu o caminho para a substituição valvar. Em 21 de setembro de 1960, o paciente Philip Amundson, 52 anos de idade, portador de insuficiência mitral reumática ganhou dez anos de vida após receber o implante da primeira prótese valvar comercialmente disponível, a prótese de Starr (Albert Starr-1926) – Edwards (engenheiro que aos treze anos teve doença reumática Miles Lowell Edwards, 1898-1982).

Meio século se passou e o dramático de todas as próteses valvares disponíveis – cada uma com o seu plus pretendido – é que tão logo ela cumpre a função de comporta, tão logo é semente de brotos de degeneração, calcificação ou trombose13.

IV. Uma boa idéia, mas...

Destaque: "é inútil lutar por uma idéia, quando ela é boa segue o seu caminho sozinha..." (Roger Fournier - 1954-1989).

Investir numa não-maleficência da prótese-dependência pulmonar é como se poderia caracterizar, do ponto de vista bioético, a operação valvar de translocar a valva pulmonar como substituto da valva aórtica. A operação idealizada há cerca de quarenta anos por Donald Ross, um epônimo nascido na África do Sul e agraciado como Sir, tem reprodutibilidade complexa, por isso é daquelas técnicas cirúrgicas que acabam adquirindo o rótulo de experiência que dá certo nas mãos de determinadas equipes.

O princípio é defensável à luz do que sabemos acontecer com uma bioprótese implantada no chamado coração esquerdo de jovens; contudo, os dados disponíveis não permitem avançar em análises de beneficência.

O que ocorre, habitualmente, é que o cardiologista-navegador cujo Serviço não a pratica não costuma mencioná-la como opção de decisão para o paciente-piloto que poderia satisfazer critérios de inclusão para a técnica.

V. Síndrome de abstinência

Destaque: "o que não podemos dispensar, não possuímos, nos possui..." (Ivern Ball).

As incertezas provocam efeitos na beira do leito, nos atraem para o abuso da alta tecnologia e seduzem a "síndrome do último artigo". E é justamente nas condições de dúvida que cresce a influência da intuição, aquele curto-circuito obscuro nas razões, que se vale de algumas "regras pessoais", redes difusas criadas no entorno da vivência e que participam da composição da expertise14.

Intuímos cada excisão de uma valva lesada como alea jacta est. Lançada ao encontro da realidade da beneficência hemodinâmica, submissa às imperfeições do artefato. Sintetizada no velho chavão: a substituição valvar é a troca de uma doença (já sintomática) por outra (ainda assintomática).

De um lado, o benefício clínico, alicerce da sobrevida com qualidade; de outro, a dura verdade que se verifica no obituário dos portadores de prótese valvar: independentemente do tipo de prótese, a mortalidade é superior à dos de faixa etária semelhante que vivem com todas as suas valvas naturais, e cerca de 50% das causa mortis são diretamente relacionadas à prótese valvar.

É sob essa ênfase da medicina como a ciência das probabilidades e arte das incertezas que se cria uma relação de dependência, que, como qualquer outra, associa boas e más experiências que permeiam o estilo de vida, muitas delas fruto de boas e más decisões.

A boa experiência é a recuperação das atividades perdidas, modificadas ou evitadas no decorrer da história natural da cardiopatia que o portador de valvopatia espera manter pelos bem-fazeres de uma prótese-dependência15; ela será original para aquele paciente, mas, ao mesmo tempo, cópia de tantas outras na óptica do cardiologista de ofício.

A má experiência acontece quando, após algum tempo de bem-estar, manifesta-se a terrível realidade de qualquer dependência: síndrome de abstinência. Na síndrome de abstinência da prótese, a função de valva falta ao sangue circulante e o cardiologista administra uma "nova dose" sob a denominação de retroca, não sem antes acontecer nova batida de martelo.

VI. "Ajoelhou, tem que rezar"

Destaque: "dificuldade de prever o comportamento de qualquer pessoa, o nosso inclusivamente..." (Gustave Le Bon, psicólogo/sociólogo francês - 1841-1931).

Ajoelhar

Atos iniciados requerem compromisso com uma seqüência de interdependências. Buscamos uma frase que sintetizasse esse comportamento e encontramos "Ajoelhou, tem que rezar". É um provérbio amigo da bioética.

Ajustando-o ao tratamento cirúrgico da valvopatia, esse ensinamento da sabedoria popular poderia aceitar uma paráfrase: "Operou, tem que REZAR. Isso porque quem expõe o campo operatório tem que fazer combinações de Reparar (folhetos da valva mitral com prolapso), Eliminar (uma aurícula gigante), Substituir (a valva por uma prótese), Adicionar (um anel constritor) ou Remover (a valva pulmonar para a posição aórtica).

O esse – substituir a valva por uma prótese – é o terceiro método terapêutico após muitos anos de vigilância clínica sobre a valva lesada (primeira opção) e quando não se reconhece chance de a reparar (segunda opção), o erre inicial de rezar15.

Ao nos certificarmos de que ocorreu inapagável mudança na qualidade de vida do portador de valvopatia, mudamos a apreciação de não-maleficência que a classe funcional I/II fazia predominar sobre a de beneficência virtual quanto ao implante de prótese valvar16,17. Invertemos imediatamente a relação beneficência/não-maleficência da prótese valvar e aconselhamos o paciente a se desfazer da valva gerada no útero materno e aceitar uma concebida numa matriz industrial. Que fique claro: classe I funcional é classe III de recomendação cirúrgica, e classe III funcional é classe I de recomendação cirúrgica; assim é o código lingüístico do cardiologista para indicação cirúrgica em valvopatia.

Rezar

A força comunicativa do ouve tudo bem (sentido médico-paciente) e diz o que lhe convém (sentido paciente-médico) é fator de estabilidade do vínculo médico-paciente diante da impossibilidade de qualquer prognóstico cursar em céu de brigadeiro a bordo de um ideal "clone de valva".

A comunicação "de rotina" sem adaptações em feedback é piloto automático insensível às turbulências da rota traçada na longitude da pluralidade de próteses autorizadas e na latitude da escassez das endossáveis na óptica de cada equipe. Suficientemente impositiva, a informação acaba por criar mais do que uma opinião, uma crença.

O cardiologista conhece as turbulências. Elas acontecem em meio à formação de nuvens carregadas de intercorrências causadas pela prótese-dependência e com muitos relâmpagos, descargas de frustrações. Altos e baixos é que não faltam, o que parece bom pela cardiologia pode repercutir mal para o portador de valvopatia. A boa e ética comunicação é cinto de segurança quando a força da natureza mostra a sua superioridade sobre a ciência e provoca, por exemplo, uma aterrorizante chuva de trombo.

Prioridade da nossa profissão é o empenho para que o bom resultado aconteça; prioritário do paciente é o resultado acontecido, a prótese funcionando como padrão de valva. Por isso, mesmo tendo ocorrido uma tomada de resolução de modo racional no pré-operatório, segundo critérios claros, a compreensão intelectual do assunto pode não ser o suficiente no pós-operatório. Em outras palavras, o conhecimento antecipado sobre os prós e os contras da prótese implantada pode não ser suficiente para ajudar o paciente a lidar com os desejos mais imediatos de retornar a sua rotina de vida.

Quando transmitimos probabilidades, o paciente pode fazer "tradução simultânea" como promessa, é o desejo dele. Em nome da harmonia, devemos estar dispostos a proceder a tantas decodificações quantas forem necessárias na ante-sala da tomada de decisão; o objetivo é evitar que o turbilhonamento hemodinâmico se torne um turbilhão ético, ou mesmo a transformação do sopro do coração num ruído na consciência do cardiologista.

Perde-se a valva natural e ganham-se compromissos com a prótese valvar; um dos novos desafios, talvez o mais crítico, é o equilíbrio diário entre antitrombose e anti-hemorragia.

A cicatrização e a melhora clínica pós-operatória marcam o início da observância dos compromissos com a prótese-dependência tomados no pré-operatório. É quando os ônus ficam pelos muitos desacordos sobre legitimidade, representatividade, reprodutibilidade e validade do conhecimento sobre prótese valvar. É quando o adequado conteúdo da informação pré-operatória contribui para eliminar uma sensação de surpresa com realidades.

O compromisso com a prótese-dependência necessita ser o mais amplo possível, razão pela qual inclui a prática de bons hábitos de vida; um deles, a abstenção de fumo, ganha importância na medida em que se mostrou fator de risco para reoperação de bioprótese e fenômeno tromboembólico no decorrer de prótese-dependência3. O conhecimento sobre a sua valvopatia contribui para o paciente parar de fumar; 48% dentre 215 portadores de valvopatia que se tornaram ex-fumantes associaram a mudança de hábito com a cardiopatia, ou porque "quem sofre do coração não deve fumar" (36%) ou porque "foram operados" (12%) – dados do InCor.

VII. Emocionalmente pecilotermo

Destaque: "tenho fases como a lua..." (Cecília Meirelles - 1901-1964).

Uma das primeiras lições de clínica é a diferença entre sintoma e sinal. O aspecto subjetivo da dispnéia é mais bem sentido pelo portador de valvopatia; o objetivo do agravamento do sopro da valvopatia que justifica o sintoma é mais bem intuído pelo médico. Nesse contexto é simples. Mas a simplicidade encolhe quando um estrabismo de foco ocorre: o portador da valvopatia ressalta a apreensão de momento, dominado que está pela angústia da falta do ar para respirar; o cardiologista remete-se ao longo prazo da beneficência pela prótese-dependência (na retroca, a experiência vivenciada eleva o grau de objetividade do paciente).

O ambiente fica sujeito, então, aos efeitos de uma dissociação interpessoal, que em absoluto significa mais ou menos calor humano, pois decorre de uma composição de emoções que se faz necessária para a resolução clínica. Perante o desconforto, o paciente está afetivamente "quente", propenso ao imediatismo de impulsos decisórios, com estado emocional que embota a precaução com o futuro; o cardiologista, por sua vez, treinado para manter o foco de modo atemporal, antenado a 360°, está profissionalmente "frio" (hot-cold empathy gap)18.

Isso conta muito no processo de tomada de decisão, em que a responsabilidade é o preço a pagar pelo direito de se fazer as próprias escolhas; o estado afetivo "quente" provoca falsa estabilidade, porque a angústia da situação parece congelar o futuro e o portador de valvopatia reage superestimando a resolução do momento inquietante e subestimando a visão de prótese valvar como uma preferência de longo prazo; tal comportamento pode criar impasses quando o paciente, já em estado afetivo "frio", no "day after" confortável do pós-operatório tardio, passa a vivenciar o cotidiano da sua prótese-dependência e se vê diante de compromissos vitais.

Reajustes do enfoque de curto e longo prazos, ziguezagues de percepção das prioridades, justificam as cenas protagonizadas por portadores de prótese mecânica que abominam o cotidiano da anticoagulação, carrossel de ingestão diária de comprimido, controle laboratorial periódico, acerto de dose e interação medicamentosa-alimentar, tentações para a má aderência; como também por portadores de bioprótese que se angustiam pelo implacável panorama da aproximação do prazo de validade, sentindo-se "de volta para o futuro".

VIII. Novo costume: acesso pela ponte

Destaque: "a moral é a ciência dos costumes, e com eles muda. Ela difere de país para país e em nenhum lugar permanece a mesma no espaço de dez anos..." (Anatole France, pseudônimo de Jacques Anatole Thibault - 1844-1924).

William Bart Osler (1849-1919) foi um hábil captador das angústias da beira do leito carente de tecnologia e recursos terapêuticos. Foi-se a carência, permaneceram as angústias.

Paul Wood (1907-1962) expressou as angústias com a incorporação progressiva da tecnologia à beira do leito que "chocava tradições clínicas" e prenunciava mudanças de paradigma, no prefácio da primeira edição de Diseases of the Heart and Circulation (1950): "procurei o equilíbrio entre homem e instrumentos, opinião experiente e estatística, conceitos tradicionais e a heterodoxia, clínica da beira do leito e testes especiais, o prático e o acadêmico, ou seja, ligar passado e presente...".

Em 1971, as angústias do oncologista americano van Rensselaer Potter (1911-2001) com os efeitos do progresso tecnológico que trouxera eficiência à beira do leito sobre a natureza humana mentalizaram-lhe a necessidade de se criar uma ponte de segurança para o futuro, a bioética.

A ética controla o trânsito pela ponte com faróis deontológicos que podem estar verdes para a informação sobre a base de dados científicos e vermelhos para o estilo da resolução. Nesse aspecto, pareceu-nos útil compor o quadro 1 com os artigos do Código de Ética Médica, no qual há o uso explícito das palavras decisão e decidir19.


Valorizadores da ligação da biologia ao humanismo se tornaram transeuntes entusiastas da ponte de Potter; por exemplo, quando é preciso interligar força da cardiologia, aspirações do portador de valvopatia e precauções do cardiologista. É o mesmo sentido de direção intuído pelo holandês Baruch Espinosa (1632-1677); ele escreveu (os parênteses são nossos): "é pela força que se produz paz (eficácia terapêutica), é pelo desejo que nasce o direito (relação médico-paciente) e é pelo receio que corremos atrás da segurança (defesa profissional)...".

IX. Temperatura maxilar

Destaque: "a palavra tem a energia do som, os livros são apenas papel..." (Paul Claudel -1868-1955).

Quando adquirimos o conhecimento desde os artigos científicos, tais como eles são atualmente, introjetamos o estilo de redação com distanciamento da relação médico-paciente, o resultado reduzido a tabelas e gráficos e as conclusões congeladas no freezer da estatística. Em nosso freezer profissional, conservamos o conhecimento e a capacitação, mas recomenda-se não colocar a atitude, aquela maneira que as saudosas lições de clínica médica nos transmitia, a pessoa do paciente do autor antecipando o nosso paciente.

A palavra na beira do leito desejosa de simbolizar consciência social à relação médico-paciente não tolera a mesma formatação do conhecimento científico para o papel, a frieza do artigo original quanto à ordenação das evidências.

A medicina como disciplina aplicada – a utilidade do saber – rejeita as formas impessoais da medicina-ciência, as que arquivamos como saber; a comunicação cardiologista-cardiopata difere da comunicação cardiologia-cardiologista, e requer a adaptação à aproximação da beira do leito que valoriza o calor da humanização.

Nesse aspecto, parece-nos útil figurar a tecnologia do forno de microondas na beira do leito: o uso descongela o conhecimento armazenado e o torna palatável para a exposição verbal.

X. O coração tem a lei de Starling

O cardiologista tem a lei 10.241/99

Destaque: "uma coisa não é justa porque é lei, mas deve ser lei porque é justa..." (Charles-Louis de Secondat, Baron de La Brède et de Montesquieu - 1689-1755).

Somos livres fazendo tudo o que as leis permitem, e o direito decorrente não deve ficar tão somente simbólico como a monumental, fria e imóvel estátua da Liberdade (1886, o escultor alsaciano Frédéric Auguste Bartholdi, 1834-1904, usou sua própria mãe como modelo).

Em São Paulo, a representatividade, o calor e a mobilidade na comunicação médico-paciente livre e esclarecida estão dispostos na lei estadual 10.241/99; ela objetiva fundamentar consentimentos e recusas de forma clara: "o paciente tem o direito de receber informações claras, objetivas e compreensíveis, inclusive sobre o que julgar necessário além do rotineiro...".

É legal, portanto, a navegação pelo médico e a pilotagem pelo paciente, no Estado de São Paulo.

XI. Palavra de médico, ouvido paciente

Destaque: "São precisas duas pessoas para falar a verdade, uma para falar, e outra para ouvir..." (Henry David Thoreau - 1817-1862).

A comunicação sobre substitutos valvares faz parte da responsabilidade ética do cardiologista, sinal de respeito à dignidade de quem terá na prótese-dependência a continuidade da vida. Ela sobressai dentre os temas que provocam críticas e autocríticas sobre compartilhamento de informação em cardiologia.

Cada relação médico-paciente é uma célula moral com suas peculiaridades. Como não há dois pacientes iguais para determinado tipo de prótese valvar, após firmarmos o diagnóstico de valvopatia sem que habitualmente haja muita influência de individualizações, providenciamos a mensagem terapêutica levando em consideração a pluralidade cultural e religiosa que concorre para o modo como cada um interpreta saúde, doença e obrigações morais20.

Por entender o portador de valvopatia como parte tanto do problema como da solução, colocamos as "máquinas na pista" e abastecemos de combustível com alta octanagem moral; conseguimos, assim, o desempenho ético para construir uma rotatória para bem distribuir as informações. O resultado é que o mundo do paciente, que na visão irônica de Honoré de Balzac (1799-1850) começa na cabeceira e termina no pé do seu leito, passa a ter acesso a várias direções do conhecimento e distintas distâncias de repercussões.

Uma linguagem de utilidades e nocividades da prótese valvar é transportada para a beira do leito, um espaço orquestra que harmoniza pelo conjunto e admite solos. Ela conscientiza o portador de valvopatia que o substituto valvar não será "alma gêmea" da valva de nascimento; ela desestimula devaneios do paciente, em que pese o uso da verdade nua e crua.

Se conseguirmos ser versáteis dentro dos limites permitidos pelo conhecimento científico, precavidos para não passar argumentação "verdade absoluta" ou sermos vistos como profetas do caminho, preocupados em empregar linguagem que facilite a compreensão e atentos a um prazo final para a decisão, cumpriremos passos importantes para a qualidade da comunicação entre navegador e piloto sobre os caminhos da prótese-dependência.

Vale "escrever e ensaiar o roteiro", embora quando "o coração fala", como disse o filósofo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), não há necessidade de preparar o discurso. Há que se evitar a falta de esclarecimento que se comporta como se estivéssemos mentindo para ele, pois estaríamos alimentando expectativas equivocadas. O tour verbal não deve deixar sem visita tanto pontos marcantes como ênfases e pausas pedagógicas marcadores da atenção ao "como estamos nos saindo".

Sair-se bem é cuidar para não fazer um diálogo de uma pessoa só; é analisar a cada deixa da fala como estamos falando e ouvindo; é fazer reajustes diante das imprevisibilidades de percurso.

Para aclarar e esclarecer, a disponibilidade de tempo contagia. Ademais, ouvir-nos falar evita hiperfluxo ou hipofluxo verbais, e ouvir-nos ouvir nos resguarda de outras ocupações da mente no decorrer do diálogo com o paciente.

Vale salientar, contudo, que a pró-atividade do portador de valvopatia no compartilhamento da informação é heterogênea.

Há ocasiões em que nós nos sentimos aquele professor perante alunos com estimulante interatividade, despertados pelo interesse do portador de valvopatia em bem conhecer a prótese valvar, que lhe faz perguntar, pesquisar e dar opinião.

Há outras ocasiões em que nos sentimos praticando uma desoladora obrigação cartorial, nada mais do que "reconhecendo a firma" de uma aceitação, pois o que predomina no paciente é a reação de passividade, o ignorar, o distanciamento.

A relação navegador-piloto admite a heterogeneidade do aspecto de interesse que o portador de valvopatia privilegiará na informação sobre o tipo de prótese valvar21,22. Para uns, ele é o risco presumido – por exemplo, familiares de idosos distinguem-no para expressar que a expectativa de vida não justifica a operação; para outros, ele é o benefício esperado – por exemplo, um jovem incapacitado entende que a perspectiva de poder resgatar a qualidade de vida supera qualquer grandeza de risco. Por isso, é prudente evitar projetar no piloto-portador de valvopatia o mesmo raciocínio plural sobre risco-benefício a que nos obrigamos sobre porquês, onde, como e quando. Cada paciente pode ver a questão de acordo com a parábola dos cegos e o elefante.

Em suma, a excelência da comunicação médico-paciente subentende levar em consideração a conjuntura em que se apresentam problemas e soluções, razão pela qual não basta a apresentação estereotipada deles, ou como querem alguns, a apresentação por escrito do que irá ou poderá acontecer, que não necessariamente provocará discussão.

XII. Diretriz é pré-conceito

Experiência é pós-conceito

Destaque: "o sábio não tem conceitos inflexíveis, adapta-se aos dos outros..." (Lao-Tsé -570 -490).

Devemos transmitir informações ao paciente como experiência por nós acumulada, ou como a melhor evidência construída na literatura por meio de observações clínicas estruturadas?

A beira do leito é complexa o bastante para que nos limitemos a um simples copy-paste de uma diretriz que funcione como nosso supervisor, visto que uma recomendação para a doença pode não assegurar a decisão certa para todos os doentes. Diretrizes dão o mapa da estrada principal; são, portanto, úteis ao navegador, mas não sinalizam os preciosos atalhos da experiência.

Conflitos entre o conhecimento científico de uma diretriz e atitudes de humanização geram reflexões sobre o melhor ajuste que devemos praticar entre objetivos da medicina – dos quais somos agentes – e objetivos da sociedade – de que o portador de valvopatia é membro. Uma exposição eticamente correta não admite espaço para dissimulações sobre as próteses valvares. Definitivamente, não há oportunidade para a meia-verdade, como pretende o marketing que oferece um produto como seminovo, ressaltando benesses e tenta ocultar o semivelho complementar. Muitos, certamente, já pensaram como se segue23: "eu gasto muito tempo analisando cada diretriz publicada, mas nenhuma me explica como devo me comportar perante meus pacientes mais durões..." e "eu não posso forçar esta mulher decidida a aceitar a última diretriz da American Heart Association, mas ela deseja se comprometer desde que nos seus termos...".

O reconhecimento que a indicação da diretriz pode diferir da preferência do paciente, e com heterogeneidades individuais, tem grande impacto na humanização da beira do leito. Diretrizes são, sem dúvida, valiosas para reduzir a nossa habitual intolerância às incertezas, transformando-as em razoáveis certezas (beneficência); mas como as incertezas de ordem individual (exigentes de não-maleficência) não podem ser por elas eliminadas da mesma forma, é prudente reconhecermos: diretriz não é um capataz da nossa reputação.

XIII. Sensatez numa geração

Absurdo na seguinte, ou vice-versa

Destaque: "A humanidade que deveria ter seis mil anos de experiência, recai na infância a cada geração..." (Tristan Bernard - 1866-1947).

Quem lida diariamente com a especialização em cardiologia não pode deixar de reconhecer que há um conflito de gerações quanto à visão de fundamentar a informação ao paciente pelas evidências da cardiologia ou pela vivência do cardiologista24. É o tempo que ajusta a visão científica que admite o duplo-cego e o olho clínico que exige os dois olhos bem abertos.

Cardiologistas mais experientes sobre prótese-dependência chegam ao paciente carregando sua bagagem de mão cheia de "metanálises" de uma fonte única – a do seu cenário de trabalho; os não tão experientes tendem a priorizar a informação da literatura e reduzem a confiabilidade na vivência, entendendo como "experiências de um só caso". O estilo da comunicação ao paciente assim caminhará mais para o lado das ciências humanas ou mais para o lado das ciências exatas.

A combinação dos jovens e dos não tão jovens nos Serviços é hipocrática: "aquele que me ensinou esta arte... ter seus filhos por meus próprios irmãos... ensinar-lhes esta arte..."; por 25 séculos (cem gerações) tem sido profícuo ter juntas a agitação e a estabilização intelectuais, até porque as faixas de números de CRM corrigem reciprocamente os seus equívocos. A gangorra da eficiência assim se equilibra.

XIV. Leigo, pero no mucho

Destaque: "Há dois tipos de conhecimento: o que sabemos do assunto e o que sabemos onde buscar informação sobre ele..." (Samuel Johnson - 1709-1784).

As bibliotecas eletrônicas, apesar de terem suscitado o risco de acarretar desprofissionalização e queda da autoridade do médico, têm sido ferramenta estratégica para quem procura informações sobre saúde.

Para os portadores de valvopatia há sites especiais como ValveReplacement.com/Forums, que permite a participação de pacientes com valvopatia em vários níveis de discussão sobre o tema: "sou uma mulher de 27 anos... tenho insuficiência mitral... preciso decidir entre prótese biológica e mecânica... o médico disse que anticoagulante seria perigoso numa futura gestação... por outro lado, quem gostaria de passar por uma nova operação daqui a alguns anos?... estou deprimida, receosa de fazer a escolha errada, não somente por mim como também pelo planejamento de minha família... Preciso de conselho Se houver alguém que passou pela mesma situação... por favor e obrigada!..."

Centros universitários também disponibilizam contatos eletrônicos para a obtenção de informações e orientações ao portador de valvopatia, como a Harvard University25: "estou próximo de receber um implante de prótese valvar na posição aórtica; aprecio a condição de maior durabilidade da prótese mecânica sobre a bioprótese, porém, fico apreensivo com a necessidade de usar anticoagulante oral para prevenir trombos; ouvi falar que há novidades sobre prótese mecânica que dispensa o anticogulante, só exige aspirina. É verdade?...".

Quantos pacientes poderiam se utilizar desse expediente? A resposta é difícil, mas devemos presumir que haveria demanda crescente entre nós; o essencial dessa realidade de informação é que a orientação seja qualificada tanto quanto possível por instituições reconhecidas pela experiência com prótese-dependência.

XV Filtro valvar

Destaque: "muitas vezes é preciso mudar de opinião para permanecer sempre no mesmo partido..." (Jean-François Paul, cardeal de, Retz - 1613-1679).

A literatura médica não é exatamente uma lei, mas é categórica. Acontece que nem sempre o academicamente respeitável se mostra consensual na beira do leito de cardiologia.

Admitindo-nos navegadores experientes quanto aos rumos da prótese valvar, afunilamos as coordenadas até o máximo que entendemos preservar níveis aceitáveis de beneficência/não-maleficência para o paciente; exemplo é desaconselhar o implante de prótese mecânica na posição mitral para um jovem que tem alto risco hemorrágico, pois ela é xifópaga com anticoagulante.

À beira do leito tem um filtro ético-científico com poros ajustados para a obtenção de um ultrafiltrado de opções que seja claro para a circunstância.

A filtragem dos tipos de prótese valvar disponíveis deve ser feita, conceitualmente, de modo isento de partidarismos; não obstante, praticamos vieses pessoais geminados com análises científicas da literatura e acúmulos críticos da beira do leito.

Sustentamos verdadeiras ideologias que, quer queiramos ou não, nos compelem à filiação ao PPB (Partido da Prótese Biológica) ou ao PPM (Partido da Prótese Mecânica), com direito a troca pelo convencimento de uma nova comunicação científica. A bancada do PPB pareceu manter-se majoritária no congresso nacional da cardiologia brasileira.

XVI. Comunicação aberta

Tipo de prótese fechado

Destaque: "os homens a quem se fala não são aqueles com quem se conversa..." (Jean-Jacques Rousseau - 1712-1778).

Parece-nos bem-vindo considerar a comunicação entre navegador-cardiologista e portador de valvopatia-piloto através da Janela Johari26; ela é ferramenta útil para ampliar a visibilidade sobre aspectos de natureza pessoal no processo de informar-opinar-decidir-concordar e assim contribuir para aprimorar a interação (quadro 2).


Acompanhemos a pertinência do uso da Janela Johari por meio do caso de STN, um comerciante de 42 anos de idade, os 25 últimos em convivência com o diagnóstico de dupla disfunção mitral. Há quatro meses, STN soube que o seu caso atingira os critérios para tratamento cirúrgico da valva mitral. Nesse quadrimestre, STN compartilhou muitas informações com o seu cardiologista. No momento, eles estão fazendo uma consulta pré-operatória imediata; o que ambos já sabem um do outro corresponde à conjunção aberta da Janela Johari. Diríamos que os "velhos amigos" removeram tapumes, mas não todos os idealmente necessários. STN e seu cardiologista estão dando ênfase ao diálogo sobre o tipo de prótese valvar a ser implantada; novas informações técnicas são passadas a STN, aumentando a dimensão da conjunção aberta. É importante reduzir a zona cinzenta para se obter a plenitude da comunicação, o que depende de quantos outros tantos tapumes possam ser retirados pela expansão da conjunção aberta na direção das conjunções secreta e cega. Pela iminência do ato operatório, STN sentiu-se à vontade para revelar certos valores pessoais que julgou estarem livres dentro de si para tal, os quais nunca poderiam ser de outra forma conhecidos pelo médico (conjunção secreta) – a identidade de STN ficou mais conhecida do cardiologista e, dessa forma, mais alguns tapumes foram postos abaixo, ampliando a conjunção aberta. O médico, por sua vez, percebeu que STN apresentava expressões de linguagem corporal em conflito com as verbais; só depois que o médico as apontou é que STN se deu conta delas (conjunção cega) – a conscientização de mecanismos de defesa pode ser útil para eliminar comportamentos, sentimentos e motivações negativos; outros tapumes caíram dessa forma, o que alargou a conjunção aberta. À véspera da operação, a interpretação de um sonho de STN revelou um aspecto importante para a fase transoperatória da relação médico-paciente, até então ignorado por ambos (conjunção desconhecida).

Por essa janela de comunicação, o cardiologista-navegador passou a conhecer melhor o paciente-piloto, e esse àquele; a dinâmica contribuiu para a qualidade da informação na tomada de decisão.

XVII. Decidir, conjugando no futuro

Destaque: "desejamos aprender a nadar e ficar com um pé no chão ao mesmo tempo..." (Marcel Proust - 1871-1922).

Seja bem-vindo ao mundo da prótese: quando é chegada a hora de dizer ao paciente, será que procedemos como bússola, nos sentindo na função de navegador e evitamos nos comportar como algemas no paciente-piloto?

É importante que os Serviços tomem a decisão: como se decide quem é que decide o tipo de prótese valvar a ser utilizada? A repetição não é apenas reforço pela semântica. É que as vantagens e desvantagens são diferenças que podem ter uma opção certa num teste de múltipla escolha aplicado ao médico, mas que podem também admitir todas acima ou nenhuma acima quando quem responde é o paciente.

Indefinições sobre a prótese valvar a ser implantada soam como omissão pré-operatória, infidelidade à responsabilidade profissional e caminho para divórcio da ética pelo médico.

Parte-se do princípio que o cardiologista tem a supremacia e o portador de valvopatia, a preferência. A supremacia está na força da ciência sustentando benefícios e a preferência representa o direito de ter o proveito. Por associar força e justiça ao seu modo, a tomada de decisão sobre prótese valvar é uma atuação também política. Ela administra variáveis não diretamente relacionados à moléstia, que diríamos fatores não-médicos partícipes do processo decisório; eles incluem características do paciente (classe social, etnia, sexo, faixa etária, grau de otimismo, maturidade emocional), estilo do Serviço, sistema de saúde e a ambientação da seqüência de fatos27.

Eu decidirei

O dialeto heteronômico da beira do leito costuma ter consonância com o esperanto de normas e diretrizes; é linguagem dos protocolos assistenciais que não costuma promover a ampla liberdade de decisão pelo paciente.

No Brasil, onde remanesce o estreptocococo reumatogênico e cresce a envelhescência valvar, o martelo verde-amarelo que sentencia qual das próteses valvares deve passar um certo número de anos sob "trabalho forçado", incessante de sístoles e diástoles, por um multifatorial de razões parece estar mais na mão do cardiologista do que na do portador de valvopatia. A figura do cardiologista, heteronômica como tutor assim prevaleceria sobre a autonômica como conselheiro; afinal, a cardiologia é escrita por cardiologista, segundo o que lhe parece ser a melhor "verdade provisória", assim como a história é escrita pelo vencedor que, porém, não costuma ter hesitação sobre devido e indevido.

O Serviço que limita o processo de decisão pelo paciente por meio de uma rotina institucional está definindo um estereótipo entre beneficência e não-maleficência válido para a valvopatia, independentemente de quem seja o portador dela. Seria como o navegador preferir a impessoalidade do piloto automático. Peculiaridades regionais justificariam um reducionismo responsável; uma das comuns é a deficiência na confiabilidade do controle de anticoagulação oral, presente em muitas regiões de nosso país.

A incerteza reforça o conceito que circunstâncias de crise aumentam o peso da carga sentida numa escolha e compelem ao porto seguro do enquadramento em rotinas pré-determinadas por uma concepção mais coletiva do que individual. E a habitualidade passa uma visão positiva da conduta, cuja construção costuma ser temperada por viés egocêntrico sintetizado como: doutores crêem que seus pacientes evoluem melhor do que os dos colegas28.

A intimidade da beira do leito nos sussurra que há uma certa relação entre grau de confiança e uso da heteronomia. Nível alto de segurança na opinião do médico, inclusive o extremo da chamada confiança cega, o aconchego que neutraliza desconforto, medo ou fobia do paciente pela postura tecnocientífica e moral do médico, dá ensejo ao heteronômico.

Vale ressaltar que nas instâncias em que há o predomínio da relação instituição-doença sobre a médico-doente, o paciente tende a ser inserido no conceito de homem-massa do espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955): seus interesses clínicos são mais radicalmente representados por uma instância superior e há menor oportunidade de opções e de escolhas.

Tu decidirás

Ele decidirá

Postar-nos a favor da autonomia não é achar que a nossa opinião de médico ficará em segundo plano, por conta do "respeito à diversidade". Muito pelo contrário, é lutar para preservar o direito de opinião, só que de ambos, assim como o exercício da dúvida (dualidade da própria opinião) é apreciado, pois pondera a melhor terapêutica ao diagnóstico e ao prognóstico.

Uma coisa é termos firmeza na opinião (própria); outra é respeitar a opinião (alheia). Uma coisa é fazermos seleção fundamentada em uma das curvas actuariais; outra coisa é renunciar às demais curvas actuariais. Uma coisa é considerarmos a decisão como a "boa"; outra coisa é testemunharmos o esperado bom resultado.

Na função de navegador reduzimos a assimetria de informação, compomos a ação latente e aguardarmos o arbítrio do paciente responsável pela pilotagem na decisão; essa prerrogativa, ele deverá exercer de modo livre e esclarecido, de acordo com o norte que pressente como mais benéfico do que maléfico (objetivo da ética médica).

Essa forma de pensar parece-nos conceitualmente válida porque a decisão sobre tipo de prótese valvar é habitualmente tomada em caráter eletivo; assim, costuma haver tempo suficiente para o portador de valvopatia refletir sobre a carência de idealidade, dentro do conceito que não haverá benefício à saúde sem risco à vida e sem um preço a pagar – reoperação da bioprótese ou cuidados antitrombóticos.

Somente o paciente é quem pode distribuir as informações, conforme lhe soaram, para o lado positivo ou negativo de seus valores29. A distribuição exigirá, por sua vez, a iniciativa e a coragem das responsabilidades decisórias conforme a reflexão do inglês Bertrand Russell (1872-1970): "a liberdade é um requisito indispensável para a obtenção de muitas coisas valiosas; mas essas coisas valiosas têm de partir dos impulsos, desejos e crenças daqueles que desfrutam dessa liberdade...".

É fato, entretanto, que conta o hábito, o paciente pode não estar, como o médico, acostumado a ir em frente em meio a muitos detalhes, e por isso, enrosca-se nos detalhes; daí muitos preferirem lavar as mãos, endosso irrestrito para não enfrentarem o dilema, e, assim, cassam-se a si próprios a carta de piloto. Convenhamos, nada é mais desgastante na relação médico-paciente do que a indecisão; por isso, há decisões que são simples formalidades.

A seguinte conclusão de um artigo canadense recente reforça a tendência atual30: "o tipo de bioprótese não influencia a sobrevida em médio prazo e a morbidade prótese-dependente na faixa etária de 45 a 65 anos; assim a escolha de qual bioprótese deve ser determinada por patient-surgeon preference...".

O quadro 3 relaciona dados essenciais para o processo decisório sobre prótese valvar pelo paciente-piloto, de acordo com proposta para a valorização ética na tomada de decisão31.


Piloto costuma ter co-piloto, e grande porcentual de pacientes, cada qual ao seu modo, e sob influência cultural, literalmente, abre mão do cabo do martelo ao colocar membros da sua família num status expressivo de poder decisório.

Nesse aspecto, não importa o quanto os familiares entrem em sintonia; não devemos descuidar de nos assegurar da opinião do próprio paciente, se ele for uma pessoa de fato capaz; entretanto, se incapaz, nem sempre fica claro quem devemos entender como sendo o representante legal expresso no art.46 do Código de Ética Médica – é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo à vida . O que temos observado é que costuma haver um líder que funciona como um porta-voz familiar.

No exercício da co-pilotagem, familiares ampliam a conjunção aberta da Janela Johari na direção da conjunção secreta de seus próprios valores. Quem não ouviu de um familiar, algo como: "doutor, o meu marido tem veias horríveis, eu não gostaria que ele tivesse que ficar tirando sangue sempre..."; "não gostaria de ver o meu pai de novo sendo operado..."; "tanto faz, não vai faltar nada para ele...".

Dessa forma, familiares "trocam de assento com o piloto", podem dominar o maniqueísmo quanto ao que é o bem e o que é o mal para o paciente e dirigir a permissão (aceitação passiva) ou a escolha (ativa).

Esse comportamento ocorre com certa freqüência com valvopatas idosos, justamente a faixa etária mais sensível à opinião do médico23,32; familiares tomam a iniciativa e alegam que assim é necessário em virtude de declínio da capacidade decisória e resguardo emocional na velhice. Essa comunicação com quem exerce papel de filho-pai ou filha-mãe33 adquire relevância crescente no Brasil pelo aumento da prótese-dependência na chamada terceira idade; esse segmento etário representou, nos últimos dois anos, 29% das intervenções para correção de valvopatia, universo que se distribuiu em freqüência decrescente da faixa 65-69 anos (34%) a 85-95 anos (2,4%) – dados do InCor.

XVIII. Epílogo

Destaque: "a quem escreve, é-lhe dado inventar uma fábula, não a moralidade desta fábula..." (inglês nascido na Índia, prêmio Nobel da paz, Rudyard Kipling, 1865-1936).

O paciente pode não aceitar a operação

A fé na autoridade da cardiologia nos assegura a maneira de enxergar "o caso clínico", a expectativa pela beneficência/não-maleficência nos hipnotiza o narcisismo e a cautela quanto aos limites da liberdade de paciente nos desperta o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): "o homem nasce livre, mas está sempre acorrentado...".

O zelo e a prudência na comunicação médico-paciente antecedem e sucedem a decisão autonômica sobre prótese valvar; antes pela qualidade da informação, depois pela sensatez da concordância.

Respeitamos o ponto de vista do paciente que, fora de iminente risco à vida, recusa a recomendação de tratamento cirúrgico da valvopatia, muito embora coloque a bioética de certa forma como anti-hipocrática; Hipócrates dava forte ênfase ao bem-estar do paciente e o seu juramento de certa maneira traz imposições.

Evitamos interpretar a atitude anticirúrgica do paciente (quem é o fim) como desobediência à cardiologia (que é o meio); o conflito tem mais chances de ter sido com a forma do bem e não com a nossa formulação em si. A contramão pelo caminho que entendemos conduta mais acertada não nos dá direito a desmerecer a sua opção, ela estimula a voltar às origens das informações, até mesmo, estimular uma segunda opinião.

Se aceitar, obriga-se à prótese-dependência

Mas quando o virtual da indicação cirúrgica se torna real preparo pré-operatório, faz-se obrigatória, nos casos pertinentes, a seleção do tipo de prótese valvar, definição que ocorre em geral às vésperas do ato operatório, fruto de nossos aspectos culturais. O planejamento antecipado, por ocasião das consultas em que a prótese valvar é apenas uma perspectiva não faz parte da nossa habitualidade. Costumamos dar como lição de casa para o paciente a pronta revelação da mudança clínica, mas não a reflexão sobre a prótese-dependência. Assim, o esclarecimento ao paciente, a cada consulta de acompanhamento, facilita marcar o momento ideal da indicação cirúrgica, mas ele, habitualmente, não provoca a escolha da prótese valvar.

A honestidade que transmitimos nas informações sobre prós e contras das várias próteses valvares, ouvida como agradável ou desagradável pelo paciente, é variável pré-operatória da qualidade de vida pós-operatória. Os marcadores de sucesso da decisão sobre prótese valvar não são apenas os dependentes da objetividade cardiológica quanto aos resultados técnicos; eles incluem os de natureza subjetiva que medem a percepção pelo próprio paciente de como ele volta a viver física, mental e socialmente o mais próximo dos dias em que era classe funcional I. Nesse aspecto, um dado positivo da prótese-dependência é que, aparentemente, a perda da valva cardíaca não traz impactos emocionais negativos como ocorre na excisão de outras estruturas do corpo.

Aqui fazemos assim

A excelência ética da cardiologia brasileira envolve o contínuo aperfeiçoamento de estratégias estruturadas para minimizar males da prótese-dependência.

O objetivo comum aos vários Serviços que se multiplicam pelo território nacional deve ser o aprumo entre a hipertrofia dos valores pessoais registrada no eticograma e a remodelação clínica disponível pela beneficência/não-maleficência.

Cada caminho verde-amarelo que conduz ao encontro de uma identidade bioética da prótese-dependência, em harmonia com nossas tradições culturais, representa um fruto que amadurece na árvore genealógica, ricamente ramificada com tantos pioneiros, da família cardiológica de nosso país.

À luz do destaque acima fica a questão para cada Serviço: as incertezas quanto à evolução refletindo sobre a responsabilidade profissional aconselham a decisão sobre prótese-dependência ser aceitação prato feito ou escolha à la carte?

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Recebido em 22/11/05

Aceito em 08/12/05

  • Correspondência:

    Max Grinberg
    Rua Manoel Antônio Pinto, 04/21A
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006
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