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Tratamento percutâneo de fístula coronariana com repercussão clínica em adulto

RELATO DE CASO

Tratamento percutâneo de fístula coronariana com repercussão clínica em adulto

Fabio Solano F. SouzaI; André GoyannaII; Humberto Álvaro GonçalvesII; Adriano Lopes AvelarIII; Antônio Gilson Lapa GodinhoI; Nilson Borges RamosI

IServiço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do Núcleo Pró-Saúde em Cardiologia, Hospital da Sagrada Família, Salvador, BA

IIRadiologia Intervencionista, Hospital da Sagrada Família, Salvador, BA

IIIServiço de Cardiologia do Hospital Dom Pedro, Feira de Santana, BA - Brasil

Correspondência Correspondência: Fabio Solano F. Souza Hospital da Sagrada Família, Serviço de Hemodinamica Rua Plinio de Lima, 01 Bonfim, Salvador, Bahia. CEP 40415-065 E-mail: fabiosouza@cardiol.br, fabiosolano@hotmail.com

Palavras-chave: Fístula Arteriovenosa / complicações; Embolização Terapêutica / métodos; Isquemia Miocárdica.

Introdução

As fístulas coronarianas são anomalias congênitas ou adquiridas, raras, que geralmente comunicam a circulação coronariana com outras estruturas vasculares ou câmaras cardíacas1-3. Embora representem, por vezes, apenas um achado incidental à angiografia diagnóstica1, elas podem se manifestar clinicamente na infância ou na idade adulta por shunt ou "roubo" de fluxo coronariano, motivando seu fechamento por abordagem cirúrgica ou endovascular4,5. O tratamento endovascular tem se tornado a opção preferencial na maioria dos casos, não apenas em função das vantagens de um procedimento realizado por via percutânea, mas também por sua eficácia e segurança comprovadas6,7.

Relato do caso

NCR, 59 anos, masculino, portador de hipertensão arterial, apresentava-se com queixa de fadiga fácil, dispneia e desconforto precordial aos esforços moderados, com melhora em repouso, sintomas iniciados há 6 meses. Não possuía antecedentes de doença coronariana na família, ou outros fatores de risco para doença aterosclerótica. Após avaliação cardiológica, foi iniciado tratamento farmacológico com Ácido Acetilsalicílico (AAS), betabloqueador e Inibidor da Enzima Conversora da Angiotensina (iECA), e solicitada cintilografia miocárdica.

As imagens cintilográficas, obtidas após estresse físico associado ao uso de dipiridamol (em função do uso do betabloqueador), mostraram padrão isquêmico na parede apical e inferior do ventrículo esquerdo, além de disfunção sistólica do ventrículo esquerdo após o estresse, evidenciada por dilatação miocárdica transitória. O estudo eletrocardiográfico mostrou infradesnivelamento do segmento ST de 1,5 mm em derivações precordiais, e de 1,0 mm em DII e aVF, após 3 minutos de esforço, além do aparecimento de extrassístoles ventriculares frequentes após injeção de dipiridamol. Um ecocardiograma transtorácico realizado dias após a cintilografia mostrou função sistólica preservada em repouso e hipertrofia ventricular esquerda leve, de padrão concêntrico e sem alterações segmentares da contratilidade.

O paciente referiu apenas melhora parcial dos sintomas com o uso das medicações e foi encaminhado para realização de cateterismo cardíaco. A cineangiocoronariografia mostrou circulação coronariana sem lesões ateroscleróticas obstrutivas significativas (apenas irregularidades parietais), com padrão de dominância direita. Foi identificada grande fístula (Figura 1) comunicando o terço proximal ectasiado da Artéria Descendente Anterior (DA) com o tronco da Artéria Pulmonar (AP). Após discussão do caso com o paciente e seu cardiologista, foi optado pelo fechamento da fístula por via percutânea.


O procedimento foi realizado por punção da artéria femural direita e uso de introdutor 7F. Após a cateterização seletiva da coronária esquerda com um cateter-guia JL, um longo fio-guia 0,014" extrassuporte com ponta flexível foi manipulado até a DA e para o interior da fistula. Um microcateter foi manipulado por meio do fio-guia para o interior da fistula, até o segmento curvo mais próximo da AP. Onze espirais de platina de destaque controlado (AxiumTM, eV3, Irvine, CA, EUA) foram liberadas no interior da fístula (Figura 2A), de forma sequencial, até a obstrução total do fluxo sanguíneo pela mesma (Figura 2B). O procedimento foi finalizado sem intercorrências.


Após o fechamento da fístula coronariana, o paciente foi acompanhado, em nível ambulatorial, sem uso de betabloqueador, e referiu melhora total dos sintomas descritos e de sua limitação funcional. Uma angiografia de controle foi realizada após 7 meses (Figura 2C), observando-se patência preservada da DA, com bom fluxo distal e ausência de trajeto fistuloso. O paciente permaneceu assintomático após 2 anos de acompanhamento clínico, mantendo atividades físicas regulares. Novos testes provocadores de isquemia não foram realizados, em função da boa evolução clínica e por opção médica.

Discussão

Fístulas coronarianas podem ser definidas como uma comunicação direta entre uma coronária e uma câmara cardíaca, grande vaso ou outra estrutura vascular, ocorrendo raramente como achado incidental em 0,1 a 0,2% das angiografias coronarianas1, e podendo ser congênitas ou adquiridas. As adquiridas podem se desenvolver a partir de traumas torácicos ou cirurgias cardíacas (principalmente quando a artéria mamária interna é utilizada), biópsia endomiocárdica, arterite de Takayasu ou, ainda, após angioplastias coronarianas2,3. Neste paciente, a fístula foi considerada como congênita em razão da ausência de intervenções ou traumas antecedentes.

As fístulas coronarianas congênitas geralmente apresentam drenagem para o ventrículo direito, átrio direito, AP ou seio venoso coronariano (em ordem decrescente de frequência). Aquelas com drenagem para o ventrículo direito costumam ser diagnosticadas na primeira infância pela presença de um sopro cardíaco ou de sintomas resultantes da presença de uma fístula calibrosa4. Nos casos de drenagem para a AP, geralmente a apresentação é insidiosa e sem sopros cardíacos, e o diagnóstico costuma ser mais tardio5, devendo este ser bem diferenciado à angiografia dos casos de origem da coronária esquerda do tronco da AP, outra rara anomalia coronariana congênita com risco potencial de morte súbita1.

O paciente do caso relatado apresentou sintomatologia de equivalência anginosa de classe funcional II a III, com teste provocativo de isquemia positivo, associada a um componente de disfunção sistólica miocárdica transitória durante o estresse. É provável que os sintomas relativos à insuficiência coronariana e ventricular esquerda tenham se desenvolvido pelo fenômeno de roubo de fluxo coronariano, associado à fistula existente em uma circulação coronariana com doença aterosclerótica incipiente. Além disso, a presença de hipertrofia miocárdica concêntrica por doença hipertensiva pode ter contribuído com o surgimento da sintomatologia descrita, em razão do aumento do consumo miocárdico de oxigênio.

O fechamento de uma fístula coronariana, por via percutânea ou cirúrgica, é indicado quando a mesma causa repercussão hemodinâmica mensurável (geralmente Qp/Qs > 2,0 ou sintomas de insuficiência cardíaca) ou isquemia miocárdica (documentada por sintomas ou testes provocativos). Atualmente, vários centros têm optado pela via percutânea, comprovadamente segura, evitando, assim, a esternotomia e a circulação extracorpórea6,7. O uso de espirais para o fechamento percutâneo de fístulas foi descrito pela primeira vez em 1990 e, desde então, o procedimento tem se tornado cada vez mais seguro, com o desenvolvimento de novos cateteres e espirais. Em 1996, Mavroudis e cols.8 recomendaram o fechamento por via percutânea em casos de ausências de múltiplas fístulas, drenagem bem definida para um único local, ausência de ramos laterais calibrosos e boa acessibilidade à coronária que supre a fístula8. Contudo, relatos de fechamentos percutâneos bem-sucedidos de múltiplas fístulas em um mesmo paciente já podem ser encontrados, tornando essa via a opção preferencial na maioria dos casos9,10.

Um total de 11 espirais foi utilizado para oclusão completa da fístula neste caso. O tamanho da primeira foi estimado por meio da medida do segmento de maior diâmetro da fístula, sendo, no mínimo, 20% maior, o que pode diminuir o risco de embolização para fora do trajeto fistuloso10. Em seguida, diâmetros progressivamente menores foram utilizados de forma sequencial, até a interrupção do fluxo local. Procura-se sempre liberar as espirais em segmentos curvos da fístula, diminuindo, assim, o risco de embolização para a circulação pulmonar.

As possíveis complicações do fechamento de uma fístula coronariana por via percutânea, embora raras, podem incluir embolização de espirais para o leito coronariano ou para o leito de drenagem da fístula, dissecção coronariana ou da fístula, isquemia miocárdica transitória e arritmias atriais transitórias7.

Conclusão

O caso relatado descreve a apresentação tardia de uma fístula coronariana da DA para a AP, que manifestou-se por isquemia miocárdica e insuficiência cardíaca, e seu fechamento por via percutânea, conduzido de forma segura e eficiente, através da embolização de espirais.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa, Obtenção de dados e Redação do manuscrito: Souza FSF; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual e Participação no tratamento do paciente: Souza FSF, Goyanna A, Gonçalves HA, Avelar AL, Godinho AGL, Ramos NB

Potencial Conflito de Interesse

Declaro não haver conflitos de interesse pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente relato não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

O presente relato não possui vinculação a programas da pós-graduação.

Artigo recebido em 5/7/12; revisado em 21/8/12; aceito em 25/3/13.

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  • Correspondência:

    Fabio Solano F. Souza
    Hospital da Sagrada Família, Serviço de Hemodinamica
    Rua Plinio de Lima, 01
    Bonfim, Salvador, Bahia. CEP 40415-065
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013
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