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Linfoma não Hodgkin como causa rara de insuficiência cardíaca aguda

RELATO DE CASO

Linfoma não Hodgkin como causa rara de insuficiência cardíaca aguda

Francisca Caetano; Paula Mota; Joana Trigo; Susana Basso; Luís Francisco Araújo; António Leitão-Marques

Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra - Hospital Geral, Coimbra - Portugal

Correspondência Correspondência: Ana Francisca Simões Marques Assunção Caetano Rua do Brasil, 504, 2º esquerdo CEP 3030-775, Coimbra - Portugal E-mail: franciscacaetano@sapo.pt

Palavras-chave: Insuficiência Cardíaca, Linfoma Não Hodgkin, Metástase Neoplásica.

Introdução

O tratamento adequado da insuficiência cardíaca (IC) aguda exige a identificação da etiologia e do fator precipitante subjacentes.

O diagnóstico em vida do envolvimento cardíaco por linfomas é raro e difícil1, contudo os progressos terapêuticos têm melhorado o prognóstico dessa entidade, reforçando a necessidade do diagnóstico precoce1-3.

Relato do Caso

Os autores apresentam o caso clínico de um doente de 62 anos que recorreu ao serviço de urgência por queixas de dispneia (classe IV NYHA), com três semanas de evolução, de agravamento progressivo, ortopneia, dispneia paroxística noturna, edema periférico e enfartamento pós-prandial. Havia antecedentes pessoais de hipertensão arterial e fibrilação auricular (FA), estando medicado com enalapril e amiodarona.

À admissão apresentava-se hipotenso (85/55 mmHg), taquipneico (40/min), com auscultação cardíaca arrítmica, sem sopros, auscultação pulmonar com diminuição do murmúrio vesicular em ambas as bases e fervores subcrepitantes bibasais, edema periférico. O eletrocardiograma mostrava FA com resposta ventricular controlada, esboço de supra-ST em DI e aVL, onda T invertida na parede inferior, retificação do segmento ST-T V3-V6, sem alterações dinâmicas em eletrocardiogramas seriados. A radiografia do tórax revelava aumento do índice cardiotorácico e apagamento do seio costofrênico esquerdo. Gasometricamente tinha hipoxemia com alcalose metabólica. Analiticamente: insuficiência renal (ureia 14,8 mmol/L; creatinina 155 umol/L); hipocalemia (K + 2,9 mmol/L); troponina I 0,66 ng/mL; NT-pro-BNP 4.060 pg/mL; proteína C reativa 7,6 mg/dL.

Internado na unidade de cuidados intensivos com o diagnóstico de IC aguda, foi iniciada terapêutica diurética e antibiótica endovenosa. Realizou-se ecocardiograma transtorácico (EcoTT) de cabeceira, que mostrou ventrículo esquerdo não dilatado, com comprometimento da função sistólica global (fração de ejecção 20%) e disfunção diastólica com aumento das pressões de enchimento (E' lateral 0,07 m/s; E/E'12).

No quarto dia (D) de internação, na ausência de melhora clínica realizou-se perfusão de levosimendan, sem resposta. Coronariografia excluiu doença coronária.

Em D7 mantinha taquipneia, hipotensão, FA com resposta ventricular rápida, balanço hídrico acumulado negativo, com deterioração das provas de função hepática e renal. Foi repetido o EcoTT, que detectou massa volumosa (espessura máxima 22 mm) heterogênea, de ecogenicidade intermédia, na porção basal das paredes posterior e inferior de ambos os ventrículos aparentemente aderente ao miocárdio, limitando a sua mobilidade, derrame pericárdico ligeiro, circunferencial (Figura 1). Perante esse achado, e atendendo à instabilidade clínica e hemodinâmica do doente, optou-se pela realização de TC torácica para tentativa de esclarecimento etiológico da massa. A TC revelou múltiplas adenopatias mediastínicas, formando conglomerados (7,7 cm; 6,7 cm); no nível cardíaco visualizava-se massa heterogênea e nodular (12 cm de extensão por 3 cm de espessura), envolvendo os sulcos auriculoventriculares, sem plano de clivagem com o miocárdio (Figura 2).



O estudo etiológico ainda mostrou: serologias e autoimunidade sem alterações; função tireóidea normal; marcadores tumorais com PSA seriado elevado (57,6 ng/mL).

Sendo o diagnóstico diferencial entre doença linfoproliferativa mediastínica com envolvimento cardíaco versus neoplasia oculta com metastatização mediastínica e cardíaca, o hematologista decidiu realizar ciclo empírico de quimioterapia (D8 - ciclofosfamida, prednisolona e tropissetrom), atendendo ao potencial de cura. O doente apresentou franca melhora clínica (NYHA II).

Em colaboração com a urologia, assumiu-se o diagnóstico clínico de carcinoma da próstata, não se podendo excluir a hipótese de metastatização mediastínica e cardíaca, e foi iniciado agonista LH-RH.

Posteriormente foi identificada adenopatia supraclavicular cuja anatomia patológica permitiu o diagnóstico de linfoma não Hodgkin difuso de grandes células B (D16), segundo a classificação REAL, estádio IV (sistema de estadiamento Ann-Arbor). Biópsia e aspirado de medula óssea sem alterações.

Em D30 realizou-se o segundo ciclo de quimioterapia direcionado (rituximabe, ciclofosfamida, adriamicina, vincristina e prednisolona - R-CHOP) sem intercorrências. EcoTT pré-alto mostrou diminuição significativa da massa, visualizando-se apenas imagem hiperecogênica com 8 mm de espessura na porção basal da parede posterior do ventrículo esquerdo.

Na TC torácica de controle observou-se diminuição franca das adenopatias mediastínicas sem critérios de adenomegalia e desaparecimento da massa cardíaca. O doente teve alta em D35, classe II NYHA, com funções renal e hepática normalizadas.

Discussão

As massas cardíacas são potencialmente letais, independentemente de serem benignas ou malignas. Quase 75% são benignas; a metastatização é a forma maligna mais frequente (10-12%) associada a mau prognóstico4.

O linfoma é a terceira causa de metastatização cardíaca, em termos absolutos, depois do câncer do pulmão e da mama; em termos relativos, ocupa o segundo lugar, depois do melanoma1. O envolvimento cardíaco por linfoma, documentado em autópsia, representa 13,6% dos tumores metastáticos do coração1.

As técnicas modernas de imagem têm proporcionado aumento do diagnóstico de lesões cardíacas.

O linfoma difuso de grandes células B (LDGC) é o mais comum dos linfomas não Hodgkin (31%), sendo rapidamente fatal quando não tratado3.

O atingimento cardíaco poderá ocorrer de três formas: continuidade a partir de lesões intratorácicas, envolvendo o pericárdio parietal e depois o coração, disseminação linfática retrógrada ou via sanguínea4.

A sua apresentação clínica é determinada por numerosos fatores: localização, tamanho, velocidade de crescimento, grau de invasão e friabilidade do tumor. O LDGC caracteriza-se por elevada velocidade de crescimento, apresentando-se como massa causando sintomas quando infiltra tecidos ou órgãos.

O espectro de manifestações cardíacas é amplo, desde a ausência de clínica à IC, derrame pericárdico ou arritmias3,5,6. Raramente o envolvimento cardíaco é a manifestação inicial do linfoma7, surgindo em média 20 meses após o diagnóstico inicial4.

A radiografia do tórax tem pouca sensibilidade e especificidade como arma diagnóstica, contudo pode mostrar alterações: desvio da traqueia, cardiomegalia, sinais de IC e alterações da silhueta cardíaca.

O EcoTT é um método sensível para a identificação de envolvimento cardíaco por linfomas, que mais frequentemente se apresentam como massas nodulares ou polipoides nas cavidades direitas, sendo a infiltração miocárdica variável6. Existem poucos casos descritos na literatura7,8 que documentam a ação restritiva/constritiva da neoplasia, condicionando IC diastólica como mecanismo fisiopatológico subjacente.

A TC torácica foi o exame de imagem que permitiu a orientação diagnóstica ao mostrar a morfologia, a localização e a extensão da massa cardíaca, bem como as múltiplas adenopatias mediastínicas. A metastatização cardíaca por linfoma surge na TC torácica como nódulos focais nas paredes cardíacas e no pericárdio4.

A ressonância magnética seria a técnica de excelência, permitindo a diferenciação entre tumor e miocárdio, contudo exige estabilidade hemodinâmica.

O diagnóstico anatomopatológico das massas cardíacas é essencial. Tradicionalmente era necessária a realização de toracotomia; atualmente existem procedimentos menos invasivos, como a biópsia endomiocárdica e a biópsia percutânea intracardíaca, guiadas por fluoroscopia. A realização dessas técnicas foi ponderada, mas elas não foram realizadas atendendo à situação hemodinâmica do doente.

Avanços no tratamento, incluindo a adição de rituximabe (anticorpo monoclonal anti-CD20) ao tradicional esquema com CHOP, associaram-se a uma melhora na taxa de sobrevida (61% de remissão completa).

Este caso representa uma forma de apresentação rara de envolvimento cardíaco do LDGC. Caracterizou-se pela enorme dificuldade diagnóstica associada à instabilidade hemodinâmica do doente, exigindo a realização de terapêutica citotóxica empírica.

Contribuição dos autores

Concepção e desenho da pesquisa e Redação do manuscrito: Caetano F; Obtenção de dados: Trigo J, Basso S, Araújo LF; Análise e interpretação dos dados: Caetano F, Mota P, Trigo J, Basso S; Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual: Mota P, Leitão-Marques A; Realização de ecocardiograma: Trigo J; Realização de TC torácica: Basso S; Hematologista colaborante no caso clínico: Araújo LF.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 28/3/12; revisado em 30/3/12; aceito em 24/10/12.

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  • Correspondência:

    Ana Francisca Simões Marques Assunção Caetano
    Rua do Brasil, 504, 2º esquerdo
    CEP 3030-775, Coimbra - Portugal
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013
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