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Valvulopatia carcinoide do coração: ainda um enigma e um desafio

PONTO DE VISTA

Valvulopatia carcinoide do coração. Ainda um enigma e um desafio

Paulo Roberto Barbosa Evora; Solange Bassetto; Viviane S. Augusto; Walter V. A. Vicente

Departamento de Cirurgia e Anatomia, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Brasil

Correspondência Correspondência: Paulo Roberto Barbosa Evora Rua Rui Barbosa 367/15 - Centro 14015-120 - Ribeirão Preto, SP - Brasil E-mail: prbevora@cardiol.br, prbevora@fmrp.usp.br

Palavras-chave: Tumor carcinoide, doença das valvas cardíacas/cirurgia, doença das valvas cardíacas/mortalidade.

Carcinoide é um tumor raro da linhagem de células neuroendócrinas, que ocorre em 1,2 a 2,1 por 100 mil pessoas por ano. Ao diagnóstico, 20% a 30% dos pacientes têm doença disseminada e consequente doença cardíaca, a qual afeta 40% dos pacientes causando grande morbidade e mortalidade na síndrome carcinoide. Tumores cardíacos primários carcinoides não foram relatados e, raramente, massas tumorais metastáticas foram encontradas no miocárdio, geralmente em conjunto com comprometimento valvular. Acredita-se que comprometimento cardíaco ocorre quando a serotonina e outras substâncias ativas são liberadas a partir de metástases hepáticas ou tumores carcinoides primários de ovário, ignorando o metabolismo no fígado. A doença cardíaca carcinoide tipicamente envolve as válvulas tricúspide e pulmonar, causando insuficiência cardíaca direita. Envolvimento das válvulas do lado esquerdo é raramente relatado (<10% dos pacientes). Assim, a doença carcinoide mitral e aórtica pode ocorrer com mais frequência em pacientes com comunicação interatrial ou forame oval patente com o desvio sanguíneo da direita para a esquerda. Porém, o comprometimento cardíaco pode também ocorrer na ausência desse desviopor associação com carcinoide broncopulmonar ou com níveis elevados de serotonina circulante1-3.

Sobrevida de três anos é de 31% em comparação a percentual de 68% para indivíduos sem evidências ecocardiográficas de envolvimento cardíaco3. Análise recente de 200 casos de doença cardíaca carcinoide demonstrou aumento na sobrevida média de 1,5 anos para 4,4 anos ao longo das últimas duas décadas4. Esse aumento da sobrevida pode refletirmelhor resultado geral e o uso mais frequente de cirurgia valvular. O prognóstico melhorou, ainda,como consequênciada citorredução cirúrgica, terapia ablativa de metásteses hepáticas e uso de somatostatina, mas não existem evidências robustas de tais correlações. Entretanto, muitos pontos ainda precisam de evidências sólidas para o estabelecimento de consensos dessa abordagem cirúrgica: 1) Qual o momento da indicação cirúrgica? 2) Qual o risco cirúrgico? 3) Qual a evolução dos pacientes operados? 4) Plastias valvulares, próteses biológicas ou próteses mecânicas? 5) Qual o papel dos inibidores da serotonina após a cirurgia?

A primeira cirurgia de válvula cardíaca para doença carcinoide cardíaca foi realizada em 19635. Apesar das evidências iniciais de paliação prolongada, a mortalidade foi considerada inaceitavelmente elevada (20%-50%). Nas séries posteriores, a redução da mortalidade perioperatória para menos de 10% e a melhora sintomática acentuada aumentaram o entusiasmo pelacirurgia. Em duas décadas (1980-2000),uma análise retrospectiva de 87 indivíduos com doença carcinoide cardíaca atendidos em uma só instituição revelou que a mortalidade perioperatória foi reduzida de 25% na década de 1980 para 9% nos últimos cinco anos do estudo4. Durante o mesmo período, o percentual de pacientes submetidos à cirurgia aumentou de 18% para 64%. Assim, a cirurgia que antes era realizada apenas em pacientes gravemente sintomáticos, é agora proposta para aqueles que estão apenas levemente sintomáticos, pois é evidente que a progressão de insuficiência cardíaca aumenta ainda mais a mortalidade perioperatória.O número de pacientes operadosrelatados ainda é muito pequeno para o estabelecimento de evidências quanto ao momento cirúrgico, incluindo a proposta do tratamento cirúrgico para pacientes assintomáticos com a finalidade de mudar a história natural da doença. Como a doença é relativamente rara, é possível que os exames de imagem e biomarcadores venham a ter um papel importante nesse cenário6.

O risco cirúrgico, embora decrescente, ainda é maior do que o risco cirúrgico das valvulopatias reumáticas e degenerativas. Nessa perspectiva, já existem evidências quanto à utilização de inibidores da serotonina, no caso de ocorrência intra e perioperatória da crise carcinoide, bem como a segurança da sua interação com drogas vasoativas. No caso do comprometimento hepático, a incidência de maior sangramento pode ser um fator comprometedor com alguma evidência do efeito benéfico da aprotinina pela inibição do sistema cinina-calicreína7.

A substituição da válvula cardíaca e/ou de "reparação" para a doença cardíaca carcinoide é cada vez mais aceita, mas, no entanto, os resultados nem sempre são favoráveis. Em um relatório prévio da Mayo Clinic, 9 dos 26 pacientes morreram no início do período perioperatório e outras 9 pessoas,em uma média de 19 meses após a cirurgia. Embora a mortalidade tenha sido maior, a sobrevida tardia (8 de 26 pacientes) resultou numa diminuição considerável (2 pacientes) ou eliminação (6 pacientes) de sintomas8. Relatório posterior da mesma instituição apresenta os resultados em 11 pacientes com doença cardíaca carcinoide que foram submetidos a operação para a válvulas esquerdas e dIreitas1. A válvula tricúspide foi substituída em todos os 11 pacientes;a pulmonar, em 3 (valvectomia, em 7); a válvula mitral, em 6 (plastia, em 1); e da válvula aórtica, em 4 (plastia, em 2). Houve duas mortes perioperatórias e quatro mortes adicionais em um período médio de 41 meses. Todos, exceto um sobrevivente cirúrgico, melhoram > 1 a classe funcional9.

A substituição de válvulas lesadas por próteses mecânicas foi recomendada anteriormente, em razão do medo da degeneração prematura da bioprótese. Nos últimos anos, o uso de próteses biológicas tem se tornado mais aceito e, em muitos casos, de preferência, por provável expectativa de vida menor que a duração dabioprótese. A prótese mecânica não teria risco de provável degeneração induzida pelo hormônio carcinoide.Entretanto, a anticoagulação obrigatória representa risco considerável para sangramento durante embolização da artéria hepática ou procedimentos cirúrgicos citoredutores realizados para alcançar o controle hormonal6. A "história sem fim" sobre a escolha da prótese está, fortemente, presente no tratamento da valvulopatia carcinoide. Algumas considerações, ainda que especulativas, merecem um exercício mental. A utilização de próteses biológicas seria, aparentemente, mais lógica embasada em três pontos capitais: a) a não necessidade de anticoagulação em pacientes com chance de hepatopatia; b) experiência europeia mostra que a degeneração de biopróteses não foi significante, sugerindo não influência da doença carcinoide no processo de degeneração; e c) a expectativa de vida dos pacientes, mesmo jovens, foi menor do que a durabilidade da bioprótese. Já as plastias isoladas, também aparentemente, não seriam opção lógica por manter o tecido valvular doente. Existem poucos relatos de casos de trocas das quatro válvulas cardíacas, sendo a maior experiência a relatada pela Mayo Clinic10. Não há consenso sobre a escolha da prótese, embora a aparente lógica da opção pela bioprótese,a terapêutica deve ser individualizada.

Porque enigma e desafio? Alguns dados ainda enigmáticos seriam: 1) o desconhecido papel da serotonina na doença da valvulopatia; 2) contra a hipótese da presença de comunicação interatrial como condição para as valvulopatias esquerdas, existem casos descritos de valvulopatias esquerdas sem a presença dessa comunicação; 3) a história natural da doença ainda é imprecisa e a doença poderia ser subestimada. Alguns destaques "desafiantes" seriam: 1) o diagnóstico precoce embasado em exame de imagem e biomarcadores mais precisos, 2) qual o momento cirúrgico ideal? 3) embora haja preferência pelas biopróteses, surgiriam possíveis tratamentos que invertessem o binômio duração da prótese/sobrevida do paciente? 3) tem sentido associarem-se plastias a trocas valvulares?. Enfim, essas dúvidas foram motivantes desse texto, ressaltando-se que o número crescente de publicações sobre a doença carcinoide cardíaca pode lhe dar característica de doença emergente merecendo maior atenção de pesquisadores básicos, clínicos e cirurgiões.

Uma busca com indicadores amplos (carcinoid and brazil), utilizando os bancos de dados MEDLINE, SCIELO e LILACS, revelou apenas 29 publicações brasileiras sobre os sistemas digestivo e respiratório sem menção a comprometimento cardíaco. Assim, o problema não existe no Brasil ou está sendo subestimado, vindo ao encontro da motivação desse "Ponto de Vista".

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 21/03/11; revisado recebido em 21/03/11; aceito em 26/04/11.

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  • Correspondência:

    Paulo Roberto Barbosa Evora
    Rua Rui Barbosa 367/15 - Centro
    14015-120 - Ribeirão Preto, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Nov 2011
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