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Comparação do desfecho entre a cardiopatia chagásica e a miocardiopatia dilatada idiopática

Resumos

FUNDAMENTO: Pouco se sabe sobre o desfecho dos pacientes com cardiopatia chagásica, em comparação aos pacientes com miocardiopatia dilatada idiopática na era contemporânea. OBJETIVO: Comparar o desfecho dos pacientes chagásicos com insuficiência cardíaca sistólica crônica decorrente da cardiopatia chagásica ao observado em pacientes com MDI na era contemporânea. MÉTODOS: Foi incluído um total de 352 pacientes (246 com cardiomiopatia chagásica e 106 com miocardiopatia dilatada idiopática), seguidos prospectivamente em nossa Instituição, de janeiro de 2000 a janeiro de 2008. Todos os pacientes receberam tratamento clínico contemporâneo padrão. RESULTADOS: Na análise multivariada com o modelo de risco proporcional de Cox, o uso da digoxina (relação de risco = 3,17; intervalo de confiança de 95%, de 1,62 a 6,18; p = 0,001) necessitou de suporte inotrópico (relação de risco = 2,08; intervalo de confiança de 95%, de 1,43 a 3,02; p < 0,005). A fração de ejeção do ventrículo esquerdo (relação de risco = 0,97; intervalo de confiança de 95%, de 0,95 a 0,99; p < 0,005) e a etiologia da cardiopatia chagásica (relação de risco = 3,29; intervalo de confiança de 95%, de 1,89 a 5,73; p < 0,005) foram associadas positivamente à mortalidade, enquanto a terapia com betabloqueadores (relação de risco = 0,39; intervalo de confiança de 95%, de 0,26 a 0,56; p < 0,005) foi associada negativamente à mortalidade. A probabilidade de sobrevida para pacientes com cardiomiopatia chagásica em oito, 24 e 49 meses foi de 83%, 61% e 41%, respectivamente. Já para pacientes com cardiomiopatia dilatada idiopática, foi de 97%, 92% e 82%, respectivamente (p < 0,005). CONCLUSÃO: Na era atual do tratamento da insuficiência cardíaca, os pacientes com cardiomiopatia chagásica têm um desfecho pior em comparação aos pacientes com cardiomiopatia dilatada idiopática.

Doença de chagas; cardiomiopatia chagásica; cardiomiopatia dilatada; tripanossomose


BACKGROUND: Little is known about the outcome of patients with Chagas cardiomyopathy in comparison to that of patients with Idiopathic Dilated Cardiomyopathy in the contemporary era. OBJECTIVE: To compare the outcome of chagasic patients with chronic systolic heart failure secondary to Chagas cardiomyopathy with that observed in patients with IDC in the contemporary era. METHODS: A total of 352 patients (246 with Chagas cardiomyopathy, 106 with Idiopathic Dilated Cardiomyopathy) prospectively followed at our Institution from January, 2000 to January, 2008 were included. All patients received standard contemporary medical therapy. RESULTS: In Cox proportional hazards model multivariate analysis, digoxin use (Hazard Ratio=3.17; 95% Confidence Interval 1.62 to 6.18; p=0.001), need of inotropic support (Hazard Ratio=2.08; 95% Confidence Interval 1.43 to 3.02; p<0.005), left ventricular ejection fraction (Hazard Ratio=0.97; 95% Confidence Interval 0.95 to 0.99; p<0.005), and Chagas cardiomyopathy etiology (Hazard Ratio=3.29; 95% Confidence Interval 1.89 to 5.73; p<0.005) were positively associated with mortality, whereas Beta-Blocker therapy (Hazard Ratio=0.39; 95% Confidence Interval 0.26 to 0.56; p<0.005) was negatively associated with mortality. Survival probability for patients with Chagas cardiomyopathy at 8, 24, and 49 months was 83%, 61%, and 41%, respectively, and for patients with Idiopathic Dilated cardiomyopathy 97%, 92%, and 82%, respectively (p<0.005). CONCLUSION: In the current era of heart failure therapy, patients with Chagas cardiomyopathy have a poorer outcome in comparison to patients with Idiopathic Dilated Cardiomyopathy.

Chagas disease; chagas cardiomyopathy; cardiomyopathy; dilated; trypanosomiasis


Comparação do desfecho entre a cardiopatia chagásica e a miocardiopatia dilatada idiopática

Amanda Pires Barbosa; Augusto Cardinalli Neto; Ana Paula Otaviano; Bianca Faria Rocha; Reinaldo Bulgarelli Bestetti

Hospital de Base de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Amanda Pires Barbosa Rua Professor Enjolras Vampré - São Manoel 15091-290 - São José do Rio Preto, SP, Brasil E-mail: amandapbarbosa@yahoo.com.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Pouco se sabe sobre o desfecho dos pacientes com cardiopatia chagásica, em comparação aos pacientes com miocardiopatia dilatada idiopática na era contemporânea.

OBJETIVO: Comparar o desfecho dos pacientes chagásicos com insuficiência cardíaca sistólica crônica decorrente da cardiopatia chagásica ao observado em pacientes com MDI na era contemporânea.

MÉTODOS: Foi incluído um total de 352 pacientes (246 com cardiomiopatia chagásica e 106 com miocardiopatia dilatada idiopática), seguidos prospectivamente em nossa Instituição, de janeiro de 2000 a janeiro de 2008. Todos os pacientes receberam tratamento clínico contemporâneo padrão.

RESULTADOS: Na análise multivariada com o modelo de risco proporcional de Cox, o uso da digoxina (relação de risco = 3,17; intervalo de confiança de 95%, de 1,62 a 6,18; p = 0,001) necessitou de suporte inotrópico (relação de risco = 2,08; intervalo de confiança de 95%, de 1,43 a 3,02; p < 0,005). A fração de ejeção do ventrículo esquerdo (relação de risco = 0,97; intervalo de confiança de 95%, de 0,95 a 0,99; p < 0,005) e a etiologia da cardiopatia chagásica (relação de risco = 3,29; intervalo de confiança de 95%, de 1,89 a 5,73; p < 0,005) foram associadas positivamente à mortalidade, enquanto a terapia com betabloqueadores (relação de risco = 0,39; intervalo de confiança de 95%, de 0,26 a 0,56; p < 0,005) foi associada negativamente à mortalidade. A probabilidade de sobrevida para pacientes com cardiomiopatia chagásica em oito, 24 e 49 meses foi de 83%, 61% e 41%, respectivamente. Já para pacientes com cardiomiopatia dilatada idiopática, foi de 97%, 92% e 82%, respectivamente (p < 0,005).

CONCLUSÃO: Na era atual do tratamento da insuficiência cardíaca, os pacientes com cardiomiopatia chagásica têm um desfecho pior em comparação aos pacientes com cardiomiopatia dilatada idiopática.

Palavras-chave: Doença de chagas, cardiomiopatia chagásica, cardiomiopatia dilatada, tripanossomose.

Introdução

A miocardiopatia dilatada idiopática (MDI) é incidente em 17,9/100000 habitantes na população em geral1. É a terceira maior causa de insuficiência cardíaca sistólica crônica2, com uma taxa de mortalidade anual de 95% em uma série baseada na população e de 69% nos coortes de referência terciária3.

A doença de Chagas, causada pelo protozoário T. cruzi e transmitida aos seres humanos por um inseto sugador, afeta cerca de 11 milhões de pessoas, enquanto outros 90 milhões estão em risco de adquiri-la na América do Sul4. A doença disseminou-se em todo o mundo por causa da imigração, com aproximadamente 750.000 pessoas afetadas que vivem fora da América do Sul hoje em dia5.

As manifestações clínicas da doença de Chagas são fenômenos tromboembólicos6,7, dor torácica8, blocos atrioventriculares9, arritmias ventriculares malignas10, morte cardíaca súbita11 e insuficiência cardíaca sistólica crônica12. O quadro clínico da insuficiência cardíaca sistólica crônica de pacientes com cardiopatia chagásica é bastante semelhante àquele encontrado em pacientes com MDI, havendo poucas exceções relatadas, com maior frequência de uso de marcapasso e amiodarona13.

O desfecho é pior em pacientes com cardiopatia chagásica com insuficiência cardíaca aguda descompensada em comparação com pacientes sem cardiopatia chagásica durante um seguimento médio de 25 meses14,15. Provavelmente, esse quadro decorre de uma ativação aumentada do sistema renina-angiotensina, nível aumentado de citocinas, compromentimentos cardíacos mais graves e instabilidade hemodinâmica16. Não obstante, ainda existe uma lacuna quanto à comparação direta do desfecho de pacientes com cardiopatia chagásica e aqueles com MDI portadores de insuficiência cardíaca descompensada.

O prognóstico de pacientes com cardiomiopatia chagásica crônica parece também ser diferente do observado em pacientes com MDI. Dois estudos evidenciaram um pior prognóstico de pacientes com cardiopatia chagásica em comparação aos pacientes com MDI, entre diversas etiologias de insuficiência cardíaca17,18. Recentemente, outro estudo comparou especificamente o desfecho de pacientes com cardiopatia chagásica perante aqueles com MDI e mostrou um melhor prognóstico para pacientes com MDI19. Parece clara a necessidade de mais dados a partir da comparação direta do desfecho entre pacientes com insuficiência cardíaca crônica decorrente de cardiopatia chagásica e pacientes que sofrem de MDI.

Dessa forma, o objetivo deste estudo foi comparar o desfecho de pacientes com insuficiência cardíaca sistólica crônica decorrente da cardiopatia chagásica ao observado em pacientes com MDI na era contemporânea.

Métodos

Todos os pacientes rotineira e prospectivamente acompanhados no Ambulatório de Cardiomiopatia de nossa Instituição, entre janeiro de 2000 e janeiro de 2008, com o diagnóstico de cardiopatia chagásica e MDI, foram considerados para o estudo. O diagnóstico de cardiopatia chagásica foi realizado com base na sorologia positiva e uma fração de ejeção do ventrículo esquerdo menor que 55% no ecocardiograma, de acordo com o método Teicholz, ou uma fração de ejeção do ventrículo esquerdo menor que 50% na ventriculografia radioisotópica. O diagnóstico da MDI considerou os mesmos critérios ecocardiográficos, conforme descritos anteriormente, e a ausência de doença arterial coronariana obstrutiva concomitante. Este último quesito foi descartado por arteriografia coronária ou cintilografia miocárdica nos pacientes não receptivos à coronariografia.

A elaboração do diagnóstico consistiu em anamnese, exame físico completo, exames laboratoriais padrão, ECG de 12 derivações e Doppler ecocardiograma transtorácico. O quadro clínico, a frequência cardíaca e a pressão arterial sistêmica foram anotados na admissão. Administraram-se, para os pacientes com as Classes III/IV, conforme a Associação Cardiológica de Nova York, diuréticos, inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA), bloqueador do receptor da angiotensina (ARB) e digoxina para aliviar os sintomas. O tratamento com B-bloqueador foi iniciado imediatamente após a compensação clínica. Os pacientes com as Classes I/II, segundo a Associação Cardiológica de Nova York, eram preferencialmente tratados com betabloqueadores e IECA/BRA.

Os pacientes foram contabilizados por ocasião de seu falecimento, transplante cardíaco ou desistência espontânea.

Análise estatística

Exceto se o contrário for indicado, as variáveis contínuas com distribuição normal são apresentadas como média ± desvio padrão, ao passo que as variáveis contínuas com distribuição anormal são atribuídas como mediana (25% e 75%). As variáveis categóricas são apresentadas como números e proporções (%). As variáveis contínuas foram comparadas por meio do teste de Mann-Whitney ou o teste T para amostras não pareadas. As variáveis categóricas foram testadas pelo teste de X2. O teste de Spearman foi utilizado para estabelecer correlações entre variáveis contínuas.

Um modelo de risco proporcional de Cox foi utilizado para descobrir preditores independentes de mortalidade para a população do estudo. As variáveis associadas à mortalidade no modelo univariado com nível de p < 0,05 foram inseridas no modelo multivariado com uma abordagem mais recente. Quando várias variáveis contínuas foram correlacionadas no modelo univariado, apenas aquela com um coeficiente de Wald maior foi incluída no modelo multivariado.

A curva ROC foi utilizada para escolher o melhor ponto de corte de uma variável contínua para predizer a mortalidade. Uma área sob a curva maior que 0,50 foi considerada estatisticamente significativa.

A probabilidade de sobrevida foi estimada pelo método de Kaplan-Meier. A comparação da probabilidade de sobrevida entre os grupos foi realizada com o teste de log-rank. Em todas as circunstâncias, um valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente relevante.

Resultados

Um total de 352 pacientes satisfez os critérios e foi incluído no estudo. Foram diagnosticados 246 pacientes (70%) com cardiopatia chagásica e 106 (30%) com MDI. A Tabela 1 mostra as características basais dos pacientes com Chagas e MDI. Vinte pacientes com cardiopatia chagásica foram submetidos a transplante cardíaco e foram contabilizados na época do procedimento cardíaco.

Os pacientes com cardiopatia chagásica precisaram de um maior suporte inotrópico e apresentaram menor gravidade do quadro funcional e menor frequência cardíaca, em comparação aos pacientes com MDI. Em contraste, observou-se que os pacientes com MDI apresentaram um período de seguimento maior e uma proporção de uso de tratamento com betabloqueadores, em comparação aos pacientes com cardiopatia chagásica.

A Tabela 2 mostra os achados eletrocardiográficos, bem como as características ecocardiográficas. Os pacientes com cardiopatia chagásica apresentaram maior proporção de bloqueio completo de ramo direito, associado ao bloqueio fascicular anterior esquerdo no eletrocardiograma de 12 derivações, maior proporção de uso de marcapasso e menor proporção de bloqueio completo de ramo esquerdo, quando comparados aos pacientes com MDI. No ecocardiograma, os pacientes com cardiopatia chagásica apresentaram maior proporção de anormalidades na movimentação segmentar da parede, enquanto os pacientes com MDI foram encontrados com maior diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo. A média da fração de ejeção do ventrículo esquerdo foi maior em pacientes com cardiopatia chagásica, em comparação àqueles com MDI.

Os resultados da análise univariada e multivariada pelo modelo de risco proporcional de Cox são apresentados na Tabela 3. Fundamentalmente, a etiologia da doença de Chagas foi considerada um poderoso preditor da mortalidade por todas as causas para a população do estudo.

A duração do seguimento foi de 28 ± 27 meses. No geral, 135 pacientes (38%) morreram durante o período do estudo: 109 no grupo de pacientes com cardiopatia chagásica e 16 (15%) no grupo de pacientes com MDI (p < 0,005). A probabilidade de sobrevida dos pacientes com cardiopatia chagásica em oito, 24 e 49 meses foi de 83%, 61%, e 41%, respectivamente, ao passo que a probabilidade de sobrevida para pacientes com MDI em oito, 24 e 49 meses foi de 98%, 92% e 82%, respectivamente (p < 0,005). A Figura 1 ilustra esses dados.


A probabilidade de sobrevida para pacientes com suporte inotrópico em oito, 26 e 47 meses foi de 69%, 47% e 28%, respectivamente, ao passo que a probabilidade de sobrevida de pacientes que não necessitam de suporte inotrópico em oito, 26 e 47 meses foi de 93%, 75% e 63%, respectivamente (Figura 2).


Os pacientes que receberam tratamento com betabloqueadores tinham uma probabilidade de sobrevida em oito, 26 e 47 meses de 95%, 85% e 77%, respectivamente, enquanto a probabilidade de sobrevida de pacientes aos quais não se administraram betabloqueadores em oito, 26 e 47 meses foi de 79%, 50% e 30% (p < 0,05), conforme demonstrado na Figura 3.


Os pacientes tratados com digoxina apresentaram uma probabilidade de sobrevida em oito, 26 e 47 meses de 84%, 61% e 45%, respectivamente. Já os pacientes que não passaram por tratamento com digoxina apresentaram uma probabilidade de sobrevida em oito, 26 e 47 meses de 98%, 91% e 84%, respectivamente (p < 0,05). A Figura 4 exibe esses dados.


Uma fração de ejeção do ventrículo esquerdo menor que 32% foi o melhor ponto de corte para predizer a mortalidade. A probabilidade de sobrevida para pacientes com uma fração de ejeção do ventrículo esquerdo menor que 32% em oito, 26 e 47 meses foi de 85%, 59% e 43%, respectivamente. A probabilidade de sobrevida para pacientes com uma fração de ejeção do ventrículo esquerdo igual ou maior que 32% em oito, 26 e 47 meses foi de 90%, 77% e 64%, respectivamente (p < 0,01). A Figura 5 ilustra esses achados.


Discussão

Esta investigação mostra claramente que a etiologia da cardiopatia chagásica é um preditor independente da mortalidade por todas as causas em uma população formada por pacientes com MDI e cardiopatia chagásica. Além disso, a probabilidade de sobrevida foi significativamente diminuída na cardiopatia chagásica, em comparação aos pacientes com MDI.

A comparação dos desfechos entre pacientes com cardiopatia chagásica e MDI vem sendo pouco relatada. Freitas e cols.18 estudaram 1.220 pacientes com insuficiência cardíaca aguda (Classes III/IV, conforme a Associação Cardiológica de Nova York): 454 deles (37%) com MDI e 242 (20%) com cardiopatia chagásica. Observou-se que a etiologia da cardiopatia chagásica da insuficiência cardíaca se associava ao pior desfecho naquela população. No entanto, em comparação ao nosso trabalho, a população estudada por Freitas e cols.18 difere em relação à heterogeneidade dos pacientes, à gravidade da síndrome e à falta do tratamento com betabloqueadores.

Muito recentemente, Nunes e cols.19 realizaram uma comparação específica do desfecho entre pacientes com cardiopatia chagásica e com MDI. Estudaram-se 287 pacientes (224 com cardiopatia chagásica e 63 com MDI), idade média de 49 ± 13 anos, seguidos, em média, por 39 meses. Constatou-se que a Classe segundo a Associação Cardiológica de Nova York, a fração de ejeção do ventrículo esquerdo, a função do ventrículo direito, conforme o método de Tei, e o volume do átrio esquerdo foram preditores independentes da mortalidade por todas as causas. Além disso, observaram menor probabilidade de sobrevida em pacientes com doença de Chagas, em comparação aos pacientes com MDI. Nossa investigação e o trabalho de Nunes e cols.14 difere pelo menor tamanho da amostra de pacientes inscritos, pelo baixo percentual de pacientes em tratamento com betabloqueadores, pela proporção de mortalidade total em ambos os grupos e pelo tipo de preditores de mortalidade.

O mau prognóstico de pacientes com cardiopatia chagásica, em comparação aos pacientes com MDI, e os determinantes prognósticos observados neste estudo podem estar relacionados às peculiaridades da cardiopatia chagásica. Acredita-se que a interação da autoimunidade, o espasmo microvascular e a disfunção autonômica desempenham um papel central na patogênese da cardiopatia chagásica20.

Na verdade, a associação de um inflitrado de células mononucleares por todo o miocárdio com grandes áreas de fibrose confluente21, semelhante ao que acontece em pacientes com cardiomiopatia por catecolamina22 e que não visto nos pacientes com MDI23, pode levar a um processo de remodelação ventricular mais grave e, por fim, à morte. A presença de células inflamatórias do miocárdio é capaz de produzir TNF e interleucina 6, que são aumentados no soro de Chagas, mas não em pacientes com MDI, e são marcadores de prognóstico de desfecho desfavorável24. Além disso, a hiperatividade simpática vista apenas em pacientes com cardiopatia chagásica pode agravar o processo de remodelagem25. A presença de espasmo microvascular pode provocar isquemia miocárdica, e a presença de alterações na matriz intersticial26 pode agravar a isquemia miocárdica, estimulando, assim, o remodelamento ventricular21 em pacientes com cardiopatia chagásica, um fenômeno ainda não detectado em pacientes com MDI. Em conjunto, esses resultados impõem maior risco de morte aos pacientes com cardiopatia chagásica, em comparação aos pacientes com MDI.

Neste estudo, o uso da digoxina foi um preditor independente de mortalidade por todas as causas. Em pacientes com cardiopatia chagásica, evidenciou-se que o tratamento com digoxina tem sido um preditor independente de mortalidade27. Ademais, constatou-se que o nível de digoxina no soro é inadequado em quase metade dos pacientes com cardiopatia chagásica28. No contexto dos pacientes com MDI, uma análise multivariada realizada em 180 pacientes mostrou que o uso da digoxina não é um preditor independente de mortalidade por todas as causas29. Nosso estudo, portanto, sugere que o uso da digoxina pode estar associado à mortalidade em pacientes com MDI e cardiopatia chagásica e que, talvez, o nível de digoxina no soro pode ser medido para evitar a toxicidade com digoxina e a morte nesses pacientes.

Outro achado interessante desta investigação refere-se à capacidade da subutilização dos betabloqueadores para prever a mortalidade por todas as causas. A falta de betabloqueadores foi descoberta como um preditor de mortalidade por todas as causas em pacientes com cardiopatia chagásica27. Além disso, um estudo de uma pequena população de pacientes30, randomizado e retrospectivo31, sugeriu impacto benéfico em relação à mortalidade de pacientes com cardiopatia chagásica. Inexiste um estudo específico de pacientes com MDI que mostre o efeito benéfico dos betabloqueadores na mortalidade. Este estudo, portanto, pode sugerir um papel para o tratamento com betabloqueadores para pacientes com as duas condições.

A fração de ejeção do ventrículo esquerdo e o suporte inotrópico são indicadores de prognóstico bem conhecidos para pacientes com cardiopatia chagásica27,31. No entanto, não foram identificados como marcadores prognósticos em pacientes com MDI na era contemporânea. Dessa forma, este estudo também pode sugerir um papel para essas variáveis no prognóstico de pacientes com MDI.

A principal limitação deste estudo é sua natureza observacional. Por essa razão, os indicadores de prognóstico identificados - uso de betabloqueadores e digoxina - devem ser recebidos com cautela, por causa do potencial de risco de superestimação e viés de seleção, uma vez que os pacientes poderiam ser incapazes de tolerar o uso de betabloqueadores. Portanto, nosso estudo deve ser considerado uma postulação de hipóteses, e a associação de drogas à mortalidade deve ser testada em um ensaio randomizado.

No entanto, utilizamos um modelo de risco proporcional de Cox, no qual uma variável explicativa controla a outra, e vice-versa, minimizando, assim, o potencial do viés. Além disso, nossos dados foram coletados prospectivamente em pacientes seguidos em um ambulatório especializado no tratamento da insuficiência cardíaca, e todos os pacientes receberam o mesmo tratamento, de acordo com evidências e sob a supervisão do mesmo médico. Portanto, neste estudo, o reconhecimento de preditores de mortalidade por todas as causas em pacientes com cardiopatia chagásica e MDI pode ter algum valor na prática clínica, na medida em que os determinantes prognósticos podem influenciar a tomada de decisões relacionadas às abordagens terapêuticas.

Em conclusão, os pacientes com cardiopatia chagásica têm um pior prognóstico em comparação aos pacientes com MDI no tratamento da insuficiência cardíaca atualmente.

Artigo recebido em 24/03/11; revisado recebido em 09/05/11; aceito em 13/05/11.

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  • Correspondência:

    Amanda Pires Barbosa
    Rua Professor Enjolras Vampré - São Manoel
    15091-290 - São José do Rio Preto, SP, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Revisado
      09 Maio 2011
    • Recebido
      24 Mar 2011
    • Aceito
      13 Maio 2011
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