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Debate propositivo sobre os biossimilares de enoxaparina no Brasil

Resumos

Algumas patentes das heparinas de baixo peso molecular expiraram e outras estão vencendo. Versões biossimilares desses fármacos estão disponíveis para o uso clínico em vários países. Entretanto, ainda persiste ceticismo sobre a possibilidade de se obter preparações semelhantes ao medicamento original em razão do complexo processo para gerar heparina de baixo peso molecular. Nosso laboratório analisou, nos últimos anos, amostras de enoxaparina disponíveis para uso clínico no Brasil. Já analisamos 30 lotes distintos e 70 produtos acabados. Essas preparações foram avaliadas quanto à estrutura química, distribuição de peso molecular, atividade anticoagulante in vitro e efeitos farmacológicos em modelos animais de trombose e sangramento. Claramente, nossos resultados indicam que as preparações biossimilares de enoxaparina são semelhantes ao medicamento original. Nossos resultados indicam que essas versões biossimilares de enoxaparina são uma alternativa terapêutica válida, mas que requerem regulamentação adequada para assegurar o atendimento de requisitos regulatórios apropriados.

Enoxaparina; heparina; heparina de baixo peso molecular; fibrinolíticos


Algunas patentes de las heparinas de bajo peso molecular caducaron y otras van por el mismo camino. Versiones biosimilares de esos fármacos están disponibles para el uso clínico en varios países. Sin embargo, todavía persiste el escepticismo sobre la posibilidad de obtener preparaciones similares al medicamento original en razón del complejo proceso para producir la heparina de bajo peso molecular. En los últimos años, nuestro laboratorio analizó muestras de enoxaparina disponibles para el uso clínico en Brasil. Ya hemos analizado 30 lotes distintos y 70 productos acabados. Esas preparaciones fueron evaluadas en cuanto a la estructura química, distribución de peso molecular, actividad anticoagulante in vitro y efectos farmacológicos en modelos animales de trombosis y sangramiento. Lógicamente que nuestros resultados indican que las preparaciones biosimilares de enoxaparina son similares al medicamento original. Nuestros resultados dan fe de que esas versiones biosimilares de enoxaparina son una alternativa terapéutica válida, pero que requieren una reglamentación adecuada para garantizar la atención de los requisitos reglamentarios pertinentes.

Enoxaparina; Heparina; Heparina de Bajo Peso Molecular; Fibrinolíticos


Some patents of low-molecular-weight heparins (LMWHs) have expired and others are about to expire. Biosimilar versions of those drugs are available for clinical use in several countries. However, skepticism persists about the possibility of obtaining preparations similar to the original drug, because of the complexity of the process to generate LMWHs. In recent years, our laboratory has analyzed biosimilar samples of enoxaparin available for clinical use in Brazil (30 different batches and 70 finished products). Those preparations were assessed regarding their chemical structure, molecular weight distribution, in vitro anticoagulant activity, and pharmacological effects in animal models of thrombosis and bleeding. Our results have clearly shown that biosimilar preparations of enoxaparin are similar to the original drug. Our results have shown that those biosimilar versions of enoxaparin are a valid therapeutic alternative, which are, however, in need of appropriate regulation to ensure compliance with regulatory requirements.

Enoxaparin; heparin; heparin, low-molecular weight; fibrinolytic agents


PONTO DE VISTA

Debate propositivo sobre os biossimilares de enoxaparina no Brasil

Paulo A.S. Mourão; Bianca F. Glauser; Bruno C. Vairo; Mariana S. Pereira

Laboratório de Tecido Conjuntivo, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho - Instituto de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência Correspondência: Paulo A.S. Mourão Laboratório de Tecido Conjuntivo, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e Instituto de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro Caixa Postal 68041, Rio de Janeiro, RJ 21941-590, Brasil E-mail: pmourao@hucff.ufrj.br

RESUMO

Algumas patentes das heparinas de baixo peso molecular expiraram e outras estão vencendo. Versões biossimilares desses fármacos estão disponíveis para o uso clínico em vários países. Entretanto, ainda persiste ceticismo sobre a possibilidade de se obter preparações semelhantes ao medicamento original em razão do complexo processo para gerar heparina de baixo peso molecular. Nosso laboratório analisou, nos últimos anos, amostras de enoxaparina disponíveis para uso clínico no Brasil. Já analisamos 30 lotes distintos e 70 produtos acabados. Essas preparações foram avaliadas quanto à estrutura química, distribuição de peso molecular, atividade anticoagulante in vitro e efeitos farmacológicos em modelos animais de trombose e sangramento. Claramente, nossos resultados indicam que as preparações biossimilares de enoxaparina são semelhantes ao medicamento original. Nossos resultados indicam que essas versões biossimilares de enoxaparina são uma alternativa terapêutica válida, mas que requerem regulamentação adequada para assegurar o atendimento de requisitos regulatórios apropriados.

Palavras-chave: Enoxaparina, heparina, heparina de baixo peso molecular, fibrinolíticos.

Introdução

As heparinas de baixo peso molecular (LMWHs) são um grande avanço na prevenção e no tratamento das doenças tromboembólicas e cardiovasculares. Os estudos comparativos desses fármacos com as heparinas não fracionadas (UFHs) revelam que as LMWHs possuem efeito inexpressivo no risco de sangramentos; têm vida média mais longa; apresentam efeito terapêutico mais duradouro; e possibilidade de administração por via subcutânea. Ademais, as LMWHs podem ser prescritas para uso em pacientes ambulatoriais sem as exigências de monitoramentos laboratoriais.

Algumas patentes das LMWHs expiraram e outras estão vencendo. Versões biossimilares desses fármacos estão disponíveis para o uso clínico em vários países, incluindo Brasil e Estados Unidos. Elas permitem a redução do custo das LMWHs.

A introdução desses biossimilares de LMWHs levantou o debate sobre suas similaridades com o fármaco original. No Brasil, ele ficou restrito a poucas discussões públicas e a duas publicações recentes1,2. Contudo, no exterior, o debate foi muito mais desafiador. Por exemplo, propunha que açúcares cíclicos estariam envolvidos no mecanismo de ação do fármaco e estariam diminuídos nos biossimilares de enoxaparina. Por falta de publicações consistentes que confirmassem tal hipótese o debate arrefeceu.

Outro aspecto introduzido foi o da impossibilidade de se demonstrar similaridade entre preparações de heparina. As heparinas não possuem um peso molecular preciso, pois são misturas de produtos com vários pesos moleculares e com estrutura heterogênea. Assim, seria possível assegurar similaridade entre preparações de heparina?

O questionamento levantou um tema relevante sobre a ação de fármacos. Demonstrar a similaridade entre duas moléculas, com peso molecular reduzido, usando os atuais métodos físico-químicos, é exequível e mesmo fácil de fazer. Mesmo para uma proteína é factível, com o uso de métodos correntes de sequenciamento de aminoácidos, associados à determinação da conformação por métodos físico-químicos e ao estabelecimento do padrão de glicosilação.

Nosso laboratório publicou recentemente relatos de similaridades entre preparações de enoxaparina3 e dissilaridades entre UFHs4. Se asseguramos que um produtor obteve lotes similares de enoxaparina, por que não podemos, com o uso das mesmas metodologias, assegurar que uma preparação biossimilar é similar à enoxaparina original? Sim, esse é o princípio básico dos conceitos farmacopeicos. Logo, o debate sobre a dificuldade de se assegurar similaridade entre preparações de LMWHs também arrefeceu.

Desanuviada essa discussão conceitual, empreendida no exterior, a questão essencial para nós é: os biossimilares de enoxaparina disponíveis no Brasil são semelhantes à medicação original?

Os dois artigos publicados recentemente1,2 nesta revista apenas emitem informações sobre as exigências para os ensaios clínicos com esses fármacos, mas não nos apresentam dados que nos permitam responder à questão essencial da similaridade entre eles. De fato, são artigos de opinião.

O estudo de um determinado fármaco, molécula ou composto tem etapas bastante definidas que devem ser seguidas, como formulado em alguns manuais propostos para a análise de versões biossimilares de LMWHs5. A sequência das etapas envolve a determinação da estrutura da molécula; seus efeitos biológicos in vitro; ensaios em modelos farmacológicos (incluindo experimentos em modelos animais); farmacodinâmica e/ou farmacocinética; e, finalmente, os testes clínicos.

Análises de biossimilares de enoxaparinas disponíveis no Brasil

Nosso laboratório analisou amostras biossimilares de enoxaparina disponíveis para uso clínico no Brasil (30 lotes distintos e 70 produtos acabados)3. Esses compostos foram inicialmente analisados pelas metodologias descritas nas Farmacopeias americana e europeia6. Os resultados mostraram uma clara similaridade entre os biossimilares de enoxaparina disponíveis no Brasil e a medicação original (fig. 1). Para os espectros de ressonância magnética nuclear de próton (1H-RMN) foi utilizado o mais moderno espectrômetro disponível comercialmente. É possível observar a coincidência entre as duas amostras (preto vs. azul, Painel A). Os valores quantitativos das integrais dos espectros de 1H-RMN são mostrados na tabela 1. Outros valores são apresentados na referência 3.


A análise da distribuição de peso molecular dos oligossacarídeos encontrados nas preparações de enoxaparina também mostra a similaridade entre as enoxaparinas biossimilares e a medicação original, tanto na análise por absorção a 232 nm (A232nm) quanto pelo índice de refração (preto vs. azul nos Painéis B e C, respectivamente). Os valores quantitativos da distribuição de peso molecular são apresentados na tabela 1. Finalmente, as atividades anti-Xa e anti-IIa são semelhantes para as amostras das enoxaparinas biossimilares e a medicação original (Painel D e E; tab. 1). Também analisamos 70 lotes de produtos acabados de enoxaparinas biossimilares, que mostraram 99 ± 4% (média ± DP) e 102 ± 3% do valor declarado de atividade anti-Xa e anti-IIa, respectivamente.

Estudos farmacológicos

O efeito antitrombótico da enoxaparina biossimilar foi comparado com o da enoxaparina original e da UFH em modelo clássico de trombose venosa experimental (Painel F). Claramente, a enoxaparina requer uma dose mais elevada do que a da UFH para inibir a trombose. Porém, o mais significativo foi que a enoxaparina biossimilar e a original têm curvas dose-resposta semelhantes. Finalmente, comparamos a tendência hemorrágica dessas duas LMWHs usando um modelo experimental em ratos. Os resultados também mostraram efeitos semelhantes, uma vez que ambas têm uma tendência de sangramento significativamente mais reduzida do que a UFH (Painel G).

Estudos clínicos

No Brasil, o debate sobre o uso de versões biossimilares de enoxaparina não enfatiza os estudos físico-químicos, os testes in vitro e os ensaios farmacológicos. No entanto, ressaltam o estudo clínico que é de alto custo, mais demorado e de realização muito mais complexa. A nova versão da Farmacopeia brasileira, de dezembro/2010, não contém uma monografia sobre LMWHs. Os ensaios citados são mais fáceis, de menor custo, factíveis e rápidos. Inexplicavelmente não despertam o interesse que deveriam.

Em 2009, houve um simpósio em Boston, direcionado para a discussão sobre biossimilares de LMWHs7. Durante as discussões foram-se elegendo as exigências para a aprovação de medicações biossimilares de LMWHs, inclusive para os seus estudos clínicos. No meio do simpósio, o Prof. JI Weitz (McMaster University, Canadá) fez o seguinte questionamento: "Quantos pacientes são necessários para um estudo clínico de LMWHs? Cerca de 3.000 - 4.000 pacientes? Vocês acham factível a realização desses estudos pelas empresas que propõem a comercialização dos biossimilares de LMWHs, nos vários tipos de doenças? Os fabricantes dos fármacos originais puderam custear esses estudos porque tiveram 10 anos de monopólio mundial; isso não é factível para os novos produtores. Vocês pensaram no que estão propondo?".

A partir dessa intervenção, o debate perdeu a força. Acredito que avaliações como as de JI Weitz estejam relacionadas com a decisão recente do FDA-EUA em aprovar a comercialização de uma versão biossimilar de enoxaparina com base nos estudos físico-químicos e farmacológicos, a despeito da ausência de avaliação clínica.

Assim, alguém acredita que seja factível propor às cinco empresas que comercializam enoxaparina a realização de estudos clínicos com três mil a quatro mil pacientes no Brasil, envolvendo as várias doenças que requerem LMWHs? Retomo as palavras de JI Weitz: "vocês pensaram no que estão propondo?".

Proposições

A polêmica sobre o uso de biossimilares de LMWHs no Brasil precisa passar necessariamente para uma fase propositiva. Talvez seja a oportunidade para uma associação mais estreita entre pesquisadores e órgãos reguladores, objetivando estabelecer metodologias factíveis para assegurar aos médicos e aos pacientes o uso de um fármaco com elevada eficácia terapêutica, embora ainda caro, e indisponível para a maioria da população brasileira.

Propomos as seguintes etapas:

1) Incorporar uma monografia sobre LMWHs na Farmacopeia brasileira para normalizar as análises dos lotes e produtos acabados contendo enoxaparina;

2) Estabelecer um protocolo de estudos farmacológicos a serem realizado pelas empresas que comercializam biossimilares de LMWHs;

3) Criar um Comitê de especialistas com comprovada experiência na área, para analisar os resultados de análises das versões biossimilares de LMWHs disponíveis no Brasil e, eventualmente, propor estudos adicionais.

Concluindo, precisamos nos lembrar de que a demonstração da dissimilaridade é uma empreitada fácil em ciência. Basta mostrar que duas substâncias se distinguem num único detalhe estrutural ou num determinado efeito biológico para afirmarmos que são distintas. Contrariamente, a demonstração da similaridade/igualdade é um caminho sem fim. Sempre poderemos argumentar que falta um novo aspecto a ser investigado para afirmar que não existe diferença entre elas. É preciso ser pragmático. É preciso também avaliar os dados factíveis de serem obtidos e qual o impacto da disponibilidade do fármaco para a população que necessita da medicação. Obviamente, considerando a segurança, a eficácia e o custo do produto. Esses são os desafios que precisamos enfrentar, com cientificidade e sensatez, na análise das preparações de enoxaparina disponíveis para uso clínico no Brasil.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo foi financiado pelo CNPq e FAPERJ.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de tese de Doutorado de Bianca F. Glauser pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Artigo recebido em 24/05/11; revisado recebido em 11/07/11; aceito em 12/07/11.

  • 1. Gomes M, Ramacciotti E, Litinas E, Fareed J. Considerações sobre o uso de enoxaparina genérica em síndrome coronariana aguda. Arq Bras Cardiol. 2010;95(4):551-2.
  • 2. Pinto VF, Moretti MA, Chagas ACP. Análise crítica dos critérios para a avaliação de biossimilares de heparina de baixo peso molecular. Arq Bras Cardiol. 2010;95(4):e105-7.
  • 3. Glauser BF, Vairo BC, Oliveira CPM, Cinelli LP, Pereira MS, Mourão PAS. Generic versions of enoxaparin available for clinical use in Brazil are similar to the original drug. J Thromb Haemost. 2011;9(7):1419-22.
  • 4. Aquino RS, Pereira MS, Vairo BC, Cinelli LP, Santos GRC, Fonseca RJC, et al. Heparins from porcine and bovine intestine mucosa: are they similar drugs? Thromb Haemost. 2010;103(5):1005-15.
  • 5. Harenberg J, Kakkar A, Bergqvist D, Barrowcliffe T, Casu B, Fareed J, et al. Recommendations on biosimilar low-molecular-weight-heparins. J Thromb Haemost. 2009;7(7):1222-5.
  • 6. Enoxaparin Sodium and Enoxaparin Sodium Injection Monographs. [Acesso em 2011 jun 10]. Available from:http://www.usp.org/USPNF/notices/enoxaparinsodiuminjection.html
  • 7
    The North America Thrombosis Forum. [Access in 2010 Aug 13]. Available from http://www.natfonline.org/submmit_2009.php
    » link
  • Correspondência:

    Paulo A.S. Mourão
    Laboratório de Tecido Conjuntivo, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e Instituto de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro
    Caixa Postal 68041, Rio de Janeiro, RJ 21941-590, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Jan 2012

    Histórico

    • Recebido
      24 Maio 2011
    • Aceito
      12 Jul 2011
    • Revisado
      11 Jul 2011
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